Memórias da ABC – Parte 1

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Em 1995, reunião de Walter Carvalho, Antonio Luiz Mendes, Guy Gonçalves e Lauro Escorel na tentativa de pensar numa nova forma de fundar a ABC. (Foto: Marina Mello e Souza)

Por Danielle de Noronha

Fundada em 02 de janeiro de 2000, a Associação Brasileira de Cinematografia – ABC reúne atualmente mais de 300 associados, entre profissionais das diversas áreas que compõe a cinematografia brasileira e auxiliam nas discussões para o seu aprimoramento, como diretores de fotografia, diretores de arte, técnicos de som, editores, alunos e professores. Desde a sua fundação até os dias de hoje, a ABC se aperfeiçoou, cresceu e se firmou como uma das organizações que mais trabalha para o crescimento técnico do cinema brasileiro.

A ABC é resultado do desejo de alguns diretores de fotografia em criar meios para se comunicar, trocar experiências e melhorar o modo como se faz e se consome o cinema que é produzido no país. Nas palavras de Walter Carvalho, ABC, a associação é resultado da vontade que existia nos corações de cada fotógrafo que estava envolvido em sua criação. Porém, mesmo que a concretização da ABC tenha acontecido há “apenas” 13 anos, ela é um desejo antigo, que começou a se desenvolver na década de 1970, quando a comunicação entre os diretores de fotografia – e também com os demais técnicos – era muito difícil e a profissão ainda buscava meios de ser reconhecida.

Hoje, quando vemos a intensa troca de informações que é realizada pelos sócios da ABC, não é possível imaginar o caminho que foi desbravado até chegar ao momento atual, de grande circulação de ideias e experiências. Conhecer a história da ABC anterior a sua criação é também saber mais da história da cinematografia brasileira. A partir da relação entre as memórias de diretores de fotografia, que estiveram envolvidos em alguma das primeiras tentativas de criar uma associação da classe no Brasil, buscamos contar um pouco sobre essa história, com o objetivo de compartilhar essas lembranças e não deixar que esse passado seja esquecido.

ABC: primeiras tentativas

Na década de 1970, período muito lembrado pelos diversos clássicos que o cinema brasileiro produziu, o número de diretores de fotografia, assim como de todas as áreas do cinema, era muito menor quando comparado ao número de profissionais que existem hoje no mercado brasileiro. “Uma assembleia de cineastas dos anos 1960 e 1970 cabia dentro de um fusca”, brinca Walter Carvalho. No início dessa década, a profissão ainda não era reconhecida, situação que mudou em 24 de maio de 1978, quando foi assinada a lei 6.533, que incluiu os profissionais de cinema no quadro de “Funções de Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversões”. Nesse período também, os técnicos estavam ainda mais concentrados no eixo Rio-São Paulo e, mesmo assim, a comunicação também era muito mais restrita, o que dificultava a troca de informações e o contato entre os profissionais. Além disso, no cenário daquela época, adiciona-se que grande parte dos técnicos se formou na prática, o que tornava ainda mais necessária a troca de experiências, como relembra Antonio Luiz Mendes, ABC. “Não havia muitas escolas, ainda era tudo muito incipiente. A maioria de nós era formado na prática. Se juntava a uma equipe e aprendia a fazer as coisas”, diz.

Estas questões são algumas das circunstâncias que levaram alguns diretores de fotografia a tentarem criar uma associação com os objetivos principais de suprir a falta de comunicação e aproximar os profissionais da área. O primeiro esforço com o intuito de criar a ABC foi, então, em meados de 1977, no Rio de Janeiro, conforme as lembranças de Lauro Escorel, ABC, que está atualmente em seu segundo mandato como presidente da associação. “Nós nos reunimos num grupo, dos quais eu acho que faziam parte o Walter Carvalho, Fernando Duarte, Antonio Luiz Mendes, Affonso Beato, José Medeiros, Luis Carlos Saldanha e Jorge Veras”, comenta o diretor de fotografia.

Antonio Luiz Mendes também se recorda dessas primeiras reuniões: “Nós nos reunimos no escritório do Cydno Silveira, pai do Breno Silveira, que era um fotógrafo, com o qual eu tinha uma sociedade num laboratório. Ele era arquiteto também e nós nos reuníamos no escritório de arquitetura dele. Nós nos reunimos umas duas ou três vezes ali e começamos a pensar na convocação, fizemos contatos e aí tivemos outras reuniões no MAM do Rio”, conta.

Walter Carvalho explica que nos anos 1970, o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro abrigava quase toda manifestação de arte que ocorria naquela época, também por causa da Cinemateca e do espaço ligado às artes plásticas que existia no local. Desta forma, Carvalho conta que havia uma confluência de encontros no MAM ao longo do dia. “Tudo gravitava em torno do MAM, creio que por isso as primeiras tentativas de fazer uma associação passaram por lá”, pontua. “Eu me recordo muito bem que eu fazia parte de uma forma muito intensa. Não só intensa, mas de crença, de vontade que a gente tivesse uma entidade que pudesse congregar encontros para discussões”, complementa o diretor de fotografia. Segundo as lembranças de Walter Carvalho, durante as reuniões que aconteceram no MAM foi escolhida uma diretoria, que tinha como presidente Fernando Duarte, ABC, e, além disso, lembra que também participaram dos encontros: Edgar Moura, Antonio Luiz, Lauro Escorel, Mario Silva, Jorge Monclar e Gilberto Otero.

Por mais que nesse momento, o desejo de união e aprimoramento da profissão fosse muito grande, esta primeira iniciativa de formar a ABC não saiu do papel. Para Walter Carvalho, uma das questões que impossibilitaram essa primeira tentativa de ir em frente foi a comunicação. “Só tinha telefone fixo, então para juntar as pessoas em torno da criação de uma associação era difícil. Por um lado era mais fácil porque era menos gente, mas era mais difícil porque tudo dependia do telefone. E como nós somos pessoas ocupadas, é difícil juntar um grupo de dez fotógrafos num mesmo dia sistematicamente, porque um sempre pode estar trabalhando, então sempre tá faltando alguém. Aos poucos, as coisas acabaram definhando, talvez por excesso de trabalho. Naquela época começou a ter mais filmagens, começou a se produzir mais, ai a ideia deu uma caída”, comenta. Antonio Mendes acredita que o contexto político – devido a ditadura – também foi um dos motivos que impossibilitaram a continuação do projeto e complementa: “Ainda houve alguns conflitos de ideias, sobre a concepção da coisa. Essa primeira tentativa de criar a ABC estava muito em cima da ASC [American Society of Cinematographers] e naquele período tinha aquela coisa “anti-americana”, pois a época era bem polarizada. Alguns diziam que era melhor fazer alguma coisa diferente. Morreu um pouco nesse conflito ideológico na criação inicial da associação”.

Lauro Escorel também tem outras lembranças sobre os motivos que impossibilitaram a fundação da ABC naquele momento. “A gente ficou um pouco na base, a gente não sabia muito bem como fazer essa parte jurídica, então a gente não chegou a registrar a ABC, por exemplo. A minha lembrança é que surgiu num certo momento uma coisa que acabou nos desmobilizando, que foi uma discussão com o pessoal do Sindicato de Artistas e Técnicos. Era um momento que se estava batalhando pelo reconhecimento da profissão e as pessoas começaram a questionar a ideia de uma associação que não fosse de caráter sindical. Isso acabou desmobilizando tudo. Acredito que essa primeira tentativa acabou durando uns oito meses, mas acabou se diluindo e o grupo se dispersou”, concluí.

Entretanto, era exatamente uma proposta de cunho mais sindical que paralelamente estava sendo discutida em São Paulo, sem nenhuma ligação com os profissionais do Rio. Segundo Lúcio Kodato, ABC, mais do que uma associação nos moldes da ABC, a discussão que estava se realizando em São Paulo naquele período era sobre questões como horas de trabalho e moldes de cachê. “Estávamos mais interessados em organizar uma associação mais voltada para as questões financeiras e de reivindicação, do que realmente tornou-se a ABC, que é totalmente não reivindicatória. Acho que uma das razões da ABC ter dado certo é por não fazer esse papel reivindicatório”, acredita Kodato. Sobre essa tentativa paulista, Kodato complementa: “Foram várias reuniões, até se chegou a formatar um estatuto, mas isso não foi pra frente por várias dificuldades, principalmente de encontros. Numa reunião tinha dez pessoas, na outra havia quinze, ai aqueles que não estavam presentes na reunião anterior começavam a discutir a mesma coisa outra vez e nunca foi pra frente, cada vez se agregava mais pessoas, mas voltava-se para as mesmas discussões. A dificuldade de reunir foi bastante grande. Isso tudo aconteceu mais ou menos na mesma data que as primeiras tentativas do Rio”.

Ainda sem muito diálogo entre o Rio e São Paulo, Walter Carvalho conta que uma nova tentativa de fundar a ABC aconteceu durante umas reuniões na produtora Zoom, de Ney Florevith, que estava localizada no Jardim Botânico, que foram seguidas de alguns encontros na casa do diretor de fotografia Fernando Duarte. “Na casa do Fernando Duarte foi no final de 1978 e eu tenho certeza porque tenho foto com data. Tem uma foto da reunião na casa do Fernando que aparece um fotógrafo que hoje trabalha só como diretor, José Joffily”, conta Walter Carvalho. “Mas essa tentativa também não foi para frente. Todos esses núcleos que a gente tentava formar desde a primeira vez, era na tentativa de firmar uma entidade de classe dos fotógrafos para conversar sobre, defender questões, debater e ficar atualizado com as novidades técnicas. E depois da casa do Fernando houve outra lacuna, que na minha lembrança foi bastante prolongada”, acrescenta.

A lacuna foi realmente prolongada. A próxima investida levou mais de seis anos para acontecer, mas já demonstrava uma aproximação maior entre os fotógrafos, pois reuniu profissionais do Rio e de São Paulo que tinham a intenção de pensar numa associação nos moldes da ABC. Segundo as recordações de Escorel, esse encontro aconteceu no Festival de Cinema de Gramado, em 1985, que na ocasião premiou Pedro Farkas (Melhor Direção de Fotografia), Adrian Cooper (Melhor Cenografia) e Alain Fresnot (Melhor Edição) pelo filme A Marvada Carne; Romeu Quinto e Lico Marcos de Oliveira (Melhor Som) por Patriamada e José Roberto Eliezer (Melhor Direção de Fotografia – Curta-metragem) pelo trabalho em Folguedos no Firmamento.

A partir da década de 1980, o festival passou a fomentar as discussões sobre arte e cultura nos espaços do evento e foi num desses momentos que alguns diretores de fotografia se reuniram, conforme conta Escorel: “Em Gramado se reuniram representantes de diretores de fotografia do Rio e de São Paulo que fizeram um manifesto e assinaram uma espécie de assembleia, refundando uma associação brasileira de cinematografia, de caráter nacional. Estavam presentes também, que eu me lembre, Antonio Luiz Mendes, acho que o Pedro Farkas, o Lúcio Kodato, o Antônio Meliande e o Zé Bob. Só que de novo o passo era maior do que a perna e a gente não foi muito adiante”.

Entretanto, o próximo movimento que buscava a criação da ABC demorou menos tempo para acontecer e gerou alguns frutos. Foi também em 1985 que se criou o Centro Técnico Audiovisual – CTav, fruto de um acordo de cooperação entre a Embrafilme e o National Film Board – NFB, do Canadá. Walter Carvalho, que trabalhou na Embrafilme nesse período, como chefe de apoio tecnológico, conta que um espaço que pertencia ao Ministério da Educação – MEC foi ocupado e ali se fundou o centro técnico. “Eu sai da Embrafilme porque comecei a filmar muito e o centro continuou. Algum tempo depois, o Affonso Beato assumiu a direção do CTav e começa a fazer reuniões com alguns fotógrafos, quase semanais ou quinzenais, para discutir diversos problemas da profissão”, compartilha o diretor de fotografia.

Segundo Guy Gonçalves, ABC, durante alguns meses, diversos profissionais se encontravam nessas reuniões no centro, onde redigiram um estatuto e fundaram a Associação Brasileira de Tecnologia do Cinema – ABTC. “Estavam presentes Lauro Escorel,Walter Carvalho, Dr. Benedito (que era químico no Laboratorio Lider), João Carlos Horta e mais alguns fotógrafos. Me lembro que o ato de inauguração foi no CTav e eu estava na mesa cheio de esperança”, conta Gonçalves. Escorel complementa: “Se não me engano, eu fui eleito presidente nessa ocasião, mas não tenho certeza. Eu lembro que o Edgar Moura também estava muito perto da gente nesse momento”. Lauro Escorel ainda ressalta que o CTav estava muito preocupado com a excelência técnica e possuía diversos equipamentos que foram trazidos do exterior. Para ele, esse é um dos motivos que levaram diversos profissionais a se aproximarem do centro. Porém, quando a Embrafilme acabou, em 1990, toda a iniciativa realizada no centro também terminou com ela.

Abtc
Em 1989 , seminário no CTAV discute a fundação da ABTC e a necessidade de criar normas técnicas para a atividade. Na mesa: Walter Carvalho, Affonso Beato, Lauro Escorel, Guy Gonçalves e Dr. Benedito Monteiro, do Laboratório Lider.

Contudo, esse período gerou alguns frutos. Além de um grande seminário técnico que foi realizado no local, uma das principais realizações do grupo que se encontrava no CTav foi a elaboração do manual “Recomendações técnicas para projeções cinematográficas”, que resultou na norma técnica “NBR12237 – Projetos e instalações de salas de projeção cinematográfica”, publicada pela Associação Brasileira de Normas Técnicas – ABNT, em 1988. “Estávamos sempre querendo atuar para melhorar as nossas condições de trabalho e a maneira como as pessoas veem o nosso trabalho”, explica Escorel.

Com o fim da Embrafilme no início dos anos 1990, o cinema brasileiro, de um modo em geral, ficou estagnado à espera de uma “retomada”. No caso das produções, a “retomada do cinema brasileiro” ocorreu por volta de 1995, a partir da elaboração das leis de incentivo fiscal. Já a retomada da ideia que visava fundar a ABC se iniciou pouco tempo depois, contando com uma importante mudança tecnológica. “Aí já havia o famoso e-mail”, comenta Walter Carvalho. E foi de um e-mail e da “vontade nos corações” dos diretores de fotografia, muitos envolvidos desde os anos 1970, que a ABC começou a efetivamente nascer.

Acesse a segunda parte da matéria “Memórias da ABC“.

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