Cinema brasileiro, Direção de Arte e Paul Ricoeur: diálogos possíveis na narrativa cinematográfica

O Ebrio Direcao Gilda De Abreu Cinemateca Brasileira

Por Ana Carolina Borges de Lacerda

Introdução

Dessa forma, dentro da vastidão de objetos que tange a humanidade, pensaremos sobre algo específico: a narrativa. Ao pensar acerca do universo narrativo culturalmente, nós somos direcionados para inúmeros lugares, desde a tradição familiar, de avós e avôs, até uma biblioteca, com livros de literatura, por exemplo. Com isso, a narrativa se faz presente em nossas vidas, assim como mencionado por Ricoeur (2010, p. 197), “(…) a vida tem a ver com a narração foi sempre conhecido e dito”.

Dessa forma, esse estudo é iniciado com isso que perpassa a nossa esfera relacional e humana: narrativa. O ponto de partida poderia ser qualquer um, mas pela necessidade de limitação, a escolha é pensar sobre a narrativa no cinema. Essa escolha é baseada na busca de um aprofundamento sobre o cinema, mas também nas contribuições que teremos a partir das elaborações sobre cinema, filosofia e psicologia. Um momento relacional entre três campos, de uma forma bem peculiar. Afinal, não temos muitos estudos voltados para essa relação e a maior parte dos estudos é direcionada a análise psicológica de um personagem ou do texto narrativo. Aqui é se manifesta o ponto peculiar.
O aspecto do cinema a ser apresentado é o cinema brasileiro e a articulação com a Direção de Arte e seu papel para a construção de uma obra, de curta ao longa-metragem, a partir da estética. Enquanto na filosofia, trataremos da perspectiva de Paul Ricoeur (1913-2005), mas que também traz inúmeras contribuições à psicologia pela sensibilidade de elaborar sobre narrativa, tempo, símbolo, por exemplo, além do diálogo que estabelece com a psicanálise. Assim, este estudo tem como um dos objetivos a apresentação da Direção de Arte e, com isso, uma contextualização sobre o cinema, com foco na cinematografia brasileira, e a função da Direção de Arte.

Além disso, como objetivo pensar na construção da narrativa e a articulação da estética da Direção de Arte. Para nos nortear em uma concepção de narrativa, teceremos acerca desse conceito apresentado por Paul Ricoeur, que se relaciona diretamente com o tempo. Desta forma, esse estudo tem como método de pesquisa teórica, tratado por Laurenti e Araújo (2016), em que se busca uma análise sistêmica, uma rede de relação entre os conceitos a serem trabalhados, mas com o caráter exploratório.

O Cinema e a Direção de Arte

A humanidade ao longo de sua constituição e apropriação do espaço imprimiu formas de registrar de forma plural, como, por exemplo, suas atividades, relações com o sagrado. Essas formas de registro foram variáveis, desde as inscrições em pedras nas cavernas até em papel através da escrita. Hipotetizamos alguns níveis de registro: aquele que são estáticos e fixos em algum espaço, ou aqueles que utilizam da oralidade de passar de uma geração a outra. Isso consiste na forma de como a humanidade, em um determinado contexto concebeu o seu espaço e sua apropriação do mesmo para a constituição daquilo que faz ela se tornar pertencente ao espaço. Essa questão de pertencimento tange a questão da cultura. Segundo Lauxen (2014), quando Paul Ricoeur enuncia sobre cultura, ele pensa sobre um núcleo ético-mítico. Esse núcleo consiste nos valores dados pelo próprio povo, constituídos por símbolos e imagens como representação.

Com a pluralidade de manifestações da humanidade, os elementos que sobressaem a ela tende a uma sedimentação das práticas, assim, elabora-se uma tradição cultural. A constituição dessa tradição é algo que ultrapasse a temporalidade, mas que tenha a capacidade de se recriar. Dado essa explanação que Lauxen (2014) traz sobre a concepção ricoeuriana acerca da cultura, trazemos o registro como uma forma da cultura se expressar, sedimentar e se recriar. Como a forma de registro é plural, assim como a humanidade, é passível de ser estudado. “Imersos na arte de compor, com e pelas imagens, construímos um patrimônio humano com base em nossa interpretação estética sobre como configurar culturas, traduzir figuras, interpretar estilos e gêneros.” (Rocha & Eckert, 2017, p. 92). Essa discussão acerca da manifestação do registrar vem de encontro com a inserção do cinema como manifestação de registro das culturas. Essa modalidade de registro foi elencada para o estudo em questão.

O nascimento do cinema no final do século XIX, pelos irmãos Lumière, traduz um contexto histórico em que propiciou esse novo modo de registrar através de imagens e movimento (Barreto, 2014). Segundo Morettin (2011), às mudanças sociais e tecnológicas propiciaram o fazer cinema, como: o processo de industrialização na Europa, o desenvolvimento e ampliação da rede elétrica, os avanços na fotografia. Nos anos iniciais até 1915, a proposta do cinema era voltada para uma experimentação dos equipamentos, mas também de ser um jornal visual. A partir de 1915, o cinema passou a ter um caráter expositivo e ampliado. Tamanha a importância desse momento para o cinema foi dado a fundação da produtora Exposition Players Corporation, pelos organizadores da Panama-Pacific International Exposition. Além disso, “(…) o ano de 1915 foi um marco na história do cinema em virtude do lançamento de Nascimento de uma Nação, de David Griffith. Esse filme representou a consolidação de certo tipo de linguagem, chamado de cinema narrativo clássico” (Morettin, 2014, p. 237).

A ampliação dessa nova forma de arte veio através do desenvolvimento tanto das técnicas, dos equipamentos, quanto na popularização nas exibições. Segundo Andrew (2002), o cinema requer a matéria- prima, que consiste em o veículo, uso do espaço e tempo, além do estado das coisas. Além disso, requer métodos e técnicas, como processo criativo, desenvolvimento tecnológico, economia da produção cinematográfica, mas também a subjetividade da equipe que imprime sua singularidade na produção cinematográfica. As formas e modelos traduzem reflexões sobre a produção cinematográfica, em qual é o tipo do filme e seu posicionamento frente à arte. Por fim, seu objetivo e valor são frente ao mundo. Entendendo esse processo de produção, o cinema passou a ser utilizado como mais um instrumento ideológico, em sua ampliação e sedimentação ao longo do século XX.

É significativa, portanto, a convergência entre tal espaço de celebração e o cinema-espetáculo. Ao se consolidar como meio de comunicação de massa, o cinema passou a ser utilizado cada vez mais como ‘vitrine’ em que a nação projeta, diante de si e dos outros, as virtudes nacionais a serem celebradas em um cenário marcado pelo imperialismo. (Morettin, 2014, p. 239).

Dado essa contextualização do cinema no âmbito mundial, veremos acerca do desenvolvimento da produção cinematográfica brasileira. No Brasil, o cinema chegou rapidamente, fruto da imigração de italianos para o país, no final do século XIX. As características marcantes desse período são o registro da realidade, de forma que produzia um registro jornalístico, mas também toda a influência das técnicas e soluções cênicas, que deixa evidente a relação teatro e cinema. Nesse primeiro momento do cinema no Brasil foi considerada a época de ouro, devido ao primeiro grande ciclo de produção nacional, entre 1907 a 1911.

Com a primeira Guerra Mundial, o contexto cinematográfico modificou, agora com a indústria de Hollywood sedimentada e influenciando outros mercados do cinema. Na década de 1920 teve a primeira tentativa de formação de uma indústria cinematográfica. Na era Vargas (1930-1945) instalou-se a lei de obrigatoriedade de exibição de filmes nacionais e, principalmente, no Estado Novo, os filmes tinham ideais históricos e cívicos. A partir da década de 1940 se instalou a era dos estúdios no país, além de se estabelecer como a era Atlântida. A era Atlântica é marcada pela produção de chanchadas, com caráter mais humorístico.

Em contrapartida da era Atlântica, vinculada a fundação da empresa Atlântica, emergiu a era Vera Cruz, uma indústria cinematográfica com esse mesmo nome da era. Aqui se marca o cinema como uma expressão cultural e que produziam filmes que não se inseriram no mercado. A partir de 1950, o movimento do Cinema Novo buscou uma redefinição do cenário cinematográfico brasileiro. A era do Cinema Novo consistia em um engajamento político e social, com a representação de Glauber Rocha (1939-1981). Ele entendia que o subdesenvolvimento do cinema envolviam dois aspectos: a falência dos financiadores e dos estúdios, e, por não ter leis de proteção à indústria nacional (Ballerini, 2012).
De acordo com Ballerini (2012), além do movimento do Cinema Novo, tiveram outras eras posteriormente, como à era Marginal, também conhecida como Boca de lixo, inspirada na antropofagia de Oswald de Andrade. Essa era teve a marca de produção sobre o universo urbano, sociedade do consumo e indústria, além das comédias eróticas, conhecidas como pornochanchadas. A era Embrafilme, de 1974 a 1984, em que a Embrafilme (Empresa Brasileira de Filmes) era um apêndice do Instituto Nacional do Cinema (INC). Essa era teve incentivo ao cinema local e influência da televisão no cinema.

A queda dessa era veio com o aumento do preço dos ingressos, a televisão mais difundida, popularização do videocassete e o desagrado do governo militar pela produção. Com isso, o cinema brasileiro passou por uma crise intensa nos próximos anos, em que, no ano de 1993, não se produziu nada no país, dado às políticas nacionais. As leis do audiovisual (1992) e a Rouanet (1992), mas também a criação do Certificado de investimento audiovisual (1995) favoreceu novamente a produção nacional. No governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2003) proporcionou um cenário mais possível para o cinema brasileiro.

Essa contextualização do cinema, com enfoque na produção brasileira, traduz uma perspectiva peculiar dessa área. Com isso, observamos em como a Direção de Arte se consolidou como uma parte fundamental para a estética e produção cinematográfica. Desse modo, teceremos sobre esse ramo específico do cinema, que faz uma interlocução, quase intrínseca com o teatro. Essa relação entre o cinema e o teatro se dá pela forma de exposição, considerando que o teatro tem séculos de existências (Butruce, 2005; Butruce & Bouillet, 2017; Jacob, 2006).
Ao depararmos com um espetáculo teatral, se estabelece um pacto com o espectador para aceitação do espaço fictício. De acordo com Butruce (2005, p. 13), “(…) a cenografia é encarada como algo normal, já que o palco é rodeado por paredes e há disposição de objetos em cena que fazem parte da encenação. Dado que a ilusão da encenação teatral está às claras, o espectador participa consciente da representação que aquele cenário propõe”. Já no cinema não é possível isso, então se busca uma autenticidade no retratar.

Parte do cinema investe em criar a ilusão de realidade se apoiando na criação de uma de realidade se apoiando na criação de uma representação naturalista. Para que uma forma de representação ganhe força e forma “natural” ela terá que encobrir os artifícios que permitiriam a sua produção” (Jacob, 2006, p. 40).

Segundo Jacob (2006), a cenografia para o cinema tem como características em consistir em ser fragmentária e modular, pela preocupação de organizar o cenário pensando no que será captado pela câmera. Além disso, não necessariamente ter uma realidade ortogonal e a possibilidade de falsear a profundidade no cenário. A cenografia também tem a característica de ser alusiva, a partir da perspectiva do que será mostrado, fora a possibilidade de alteração de tamanho e proporção da realidade, além dos contrastes e texturas. Dessa forma, a cenografia possui um caráter compositivo. Por fim, ser de fácil manuseio e efêmera, dado que há o processo de produzir e desproduzir cenográfico. Essas são as características que Jacob (2006) traz sobre a cenografia cinematográfica.

A cenografia é um elemento da Direção de Arte na estrutura da produção cinematográfica. Dessa forma, a Direção de Arte abarca um núcleo dentro da elaboração de um filme. Para a elaboração e realização de um filme, essa direção é responsável pela análise técnica da arte. Essa análise técnica é realizada a partir da visualidade do filme, a sua estética. Isso consiste na construção do cenário, o espaço para a construção do cenário, ou seja, as possíveis locações. Além disso, nos elementos de produção de arte. Essa direção é também responsável pelos figurinos, com o papel de estabelecer relações da pessoa e seu entorno, mas também se adequar a estética proposta pela direção.

Para a composição da análise técnica da arte é necessário a definição da paleta cromática, que tem a função simbólica e dramática. Por exemplo, as cores imprimir sentimentos necessários, sem a necessidade de fala. Com tudo isso, o papel fundamental da pesquisa e suporte teórico que são indispensáveis. Dessa forma, a Direção de Arte é responsável pela cenografia, figurino, caracterização e, dependendo da proposta do projeto cinematográfico, efeitos especiais.

A Direção de Arte estrutura um conjunto plástico cuja materialidade escapa no momento da projeção, sendo transformada em imagem fotográfica. Por suas especificidades técnicas, conceituais e estéticas, a Direção de Arte cria a base material da visualidade da imagem que será valorizada pela luz, pela decupagem, pelo registro efetuado pela câmera, pela montagem e pelo som (Jacob, 2006, p. 62).

Ademais, Jacob (2006) destaca na construção estética três modos de construção do que chama de lugar-paisagem. A definição de lugar-paisagem vem de encontro a construção de um espaço paisagístico, com objetos técnicos e estéticos pré-determinados. O primeiro modo se caracteriza por nenhuma intervenção da Direção de Arte, em que a captação de imagens é dada em um espaço físico estabelecido, não precisando de um ajuste cenográfico. O segundo modo diz de uma intervenção da Direção de Arte que modula uma paisagem pré-existente, caracterizando-o com objetos ou organizando-o de forma que não seja como originalmente. O último modo se estabelece com a construção de uma paisagem pela Direção de Arte, total intervenção e construção.

No Brasil, a Direção de Arte foi valorizada nos anos 90, do século XX. Isso se deu pela preocupação com a estética (Jacob, 2006), em consonância com o modo de se fazer e pensar o cinema. As primeiras produções cinematográficas brasileiras tiveram a intervenção da Direção de Arte com a finalidade de ambientação no filme. Ao longo dos anos, nas eras da produção nacional plural possibilitou o desenvolvimento de técnicas cenográficas. Por exemplo, o movimento do Cinema Novo ressignificou a cenografia, fazendo uma ruptura com o modo que até então se estabeleceu. Fora que era posto em cheque o cinema produzido em estúdio. Na atualidade, não se tem estudos específicos sobre Direção de Arte, assim, suscitando em quem busca compreender melhor esse campo o interesse em elaborar sobre esse trabalho (Butruce & Bouillet, 2017).

Com esse elementos enunciados até esse momento, em que visualizamos o panorama do cinema, principalmente o cinema no Brasil, e a Direção de Arte como o espaço da narrativa, elaborada no roteiro, ou seja, uma tradução de um texto escrito em um visual. Esse visual implica inúmeras técnicas, tanto computacionais, como, por exemplo, pintura digital. Mas também impressões e modificações no espaço físico, tomando como exemplo pintura de marcas de tempo, em que se pode envelhecer um determinado objeto falseando a marcação do tempo. Nesse segundo momento, traremos para análise essa tradução do texto em visual pela Direção de Arte para se pensar a narrativa, indissociável do tempo, em Paul Ricoeur.

O visto e o narrado: diálogos possíveis entre Paul Ricoeur e a estética cinematográfica

A exposição sobre cinema brasileiro e a exemplificação a partir da Direção de Arte se delineou um percurso histórico, ou seja, dentro da particularidade da cultura brasileira. A espacialidade e a narrativa se tornaram referências para o nosso olhar. Para enriquecer esse olhar e promover um diálogo, discorreremos sobre contribuições de Paul Ricoeur para se pensar sobre narrativa e sua possível, ou não, relação com a Direção de Arte. Dessa forma, teceremos nossa discussão.

A obra Tempo e narrativa é subdividida em três tomos, em que aborda temáticas diversas. Para esse estudo, debruçamos no primeiro tomo em que Ricoeur traz elaborações fundamentais para nosso diálogo. O primeiro tomo é dividido em: primeira parte, a apresentação dos pressupostos; a segunda e a terceira parte trazem a identidade estrutural entre historiografia e narrativa de ficção; a quarta parte trabalha com o caráter temporal da experiência humana. Em suas elaborações sobre narrativa, Ricoeur entende que ela está intrinsecamente relacionada com o tempo. Dessa forma, “(…) o tempo torna-se tempo humano na medida em que está articulado de modo narrativo; em compensação, a narrativa é significativa na medida em que esboça os traços da experiência temporal” (Ricoeur, 1994, p. 15). As perspectivas de tempo e narrativa trabalhadas aqui tem como referenciais em Santo Agostinho, em Confissões, e em Aristóteles, em Poiesis, respectivamente.

Dado essa complexidade em dizer sobre o tempo, Ricoeur (1994) e a narrativa traz a dialética intentio-distentio. Essa dialética se configura a partir dispersão na multiplicidade e da errança (distentio), em consonância com a unificação do homem interior (intentio). Em vista dessa dialética traz em si à dinâmica, o tempo não assume a sua marcação clássica de passado, presente e futuro, mas de presente do passado, presente do presente e presente do futuro. Dessa forma, a marcação do tempo é significada pelo movimento, pela passagem. Para ser traduzida essa marcação, é necessário que o tempo seja narrado, em que a cronologia é subjetiva, ou seja, é de quem narra.

A narrativa se baseia no tecer da intriga, a partir de Aristóteles, nomeada por muthos. Na narrativa também se aplica o movimento, pelo fato da inscrição temporal. Para a sua construção, o tecer da intriga abarca um sistema de fatos, em uma determinada disposição. Ricoeur (1994) retoma a ideia de mimese para a formulação da narrativa. A mimese é classificada de forma tríplice, ou seja, em três aspectos distintos. A mimesis I traz o próprio significado, em que articula três traços: estruturais, simbólicos e temporais. Dessa forma, a mimesis I é a articulação de elementos de composição da sua estrutura, com a experiência temporal e simbólica. Nesse ponto, Ricoeur retoma o aspecto temporal em Martin Heidegger (1889-1976) para traduzir essa inquietação do ser “no” tempo.

A mimesis II tem o papel de pivô da análise, em que ela tem a função de mimese-criação. A composição em si da tessitura da intriga, em que a intriga é a mediadora entre os acontecimentos e a história, para assim articular e transformar em narrativa. Além disso, a mimesis II agrega elementos, como agentes, objetos, interações. Dado essa articulação, temporalidade tem seu delineamento próprio, que não necessariamente respeita a cronologia.
Com os componentes da mimesis I e II, a mimesis III é o ponto de contato com o mundo, com a cultura; é o ponto de composição poética. Ricoeur (1994, p. 86) sedimenta ao trazer “(…) o próprio sentido da operação da configuração constitutiva da tessitura da intriga resulta de sua posição intermediária entre as duas operações que chamo de mimesis I e mimesis III e que constituem o montante e ajusante de mimesis II”. A narrativa é um processo integrador desses elementos.

A hipótese que se tece é: perante a narrativa é perpassada por camadas internas e externas para se sedimentar na ação de narrar. Ademais, é possível estabelecer uma relação entre a tessitura da intriga, que abarca fatores internos e externos compostos de forma subjetiva, com o processo estético de um filme, proposta principalmente pela Direção de Arte no cinema. Essa relação se estabelece pelo fato em que a imagem que o cinema traz articula traços estruturais, com uma determinada lógica, com elementos específicos, mas também articula traços temporais e simbólicos. Para essa composição é possível visualizar nos cenários, nos figurinos, na paleta cromática, enfim, no projeto estético em que a Direção de Arte irá elaborar, conjuntamente com toda equipe da produção cinematográfica.

A narrativa se torna viva no cinema, não apenas pelo puro texto escrito no roteiro, mas também pelas imagens em ação. O movimento captado pela câmera, através de diferentes técnicas, a produção cenográfica, a pesquisa para harmonizar e efetivar o efeito, o som, as cores, tudo isso é narrativa. Lógico que devemos levar em consideração que essa forma de narrar não é trabalhada por Paul Ricoeur em Tempo e Narrativa, dado a emergência do cinema ser recente e o referencial ricoeuriano dialogarem com textos escritos. Mas os elementos da mimesis III, em que a relação entre obra e mundo, se dá tanto no livro (Ricoeur, 1994), quanto no filme.

Ademais, Ricoeur (2010, p. 203) disserta sobre o mundo do leitor e o mundo do texto, “(…) significa insistir nesse traço de toda obra literária de abrir diante de si um horizonte de experiência possível, um mundo no qual seria possível habitar”. Essa possibilidade de “habitar um mundo” no cinema é trabalhada a partir da autenticidade do cenário, na composição visual, com objetos de cena, elementos, por exemplo, de uma parede quebrada, figurinos condizentes com o tempo expressado pelo roteiro. Quando “(…) a ação pode ser narrada, é que já está articulada nos signos, regras, normas; ela é desde sempre simbolicamente mediatizada” (Ricoeur, 2010, p. 206), é possível tanto no mundo do texto, quanto no mundo do filme.

Assim, é possível visualizar a articulação simbólica a partir dos elementos que compõe o filme. Colocamos em destaque a produção nacional, a fim de restringir o nosso objeto de análise, mas também pela singularidade da produção. O cinema brasileiro, apresentado em Ballerini (2012), tem suas próprias características e eras que o faz plural, além de contrastar com outras produções externas. Ou seja, no Brasil, temos um movimento cinematográfico que tenta articular com a particularidade do país, mas também dialoga com as demais indústrias cinematográficas. A concepção estilística da Direção de Arte brasileira busca essa consonância com a produção. De forma que favorece modos de se pensar esteticamente um filme.

Essa pluralidade brasileira faz com que o cinema imprima a diversidade simbólica e, também, a diversidade narrativa. De modo que tenhamos um cinema que traduz e é perpassado pelas questões culturais. Assim como Lelièvre (2014) disserta, a partir de Ricoeur, que o cinema não é dissociável do imaginário social. Ou seja, o cinema traz em si as questões da cultura, as linhas de forças, como destaca Carvalho e Sant’Ana (2013). A cultura é retomada pela narrativa, pelo simbólico ou até mesmo na subjetividade da equipe do filme. Destacamos que esse estudo não aprofundará nessa reflexão, deixando para um aprofundamento posterior nessa questão. Desse modo, dissertamos o enlace entre psicologia, filosofia e cinema, pelo eixo norteador da narrativa, que é composta pelas mimesis I, II e III, e se torna visual no cinema.

Considerações finais

Ao longo deste estudo estabelecemos uma apresentação do cinema, desde a sua emergência no século XIX, no âmbito mundial, mas também no âmbito brasileiro. O enfoque no contexto brasileiro e seu desenvolvimento vieram como forma de esboçar a particularidade e a riqueza cinematográfica em uma cultura. Dessa forma, expressamos a pluralidade de se fazer cinema ao longo da sua história, tanto na consolidação, quanto nas crises, até chegar à atualidade.

Além disso, trouxemos o aspecto da Direção de Arte, como forma ilustrativa de um elemento dentro de uma produção cinematográfica. Poderíamos partir de qualquer outro olhar, como a Direção de Fotografia, mas optamos pela Direção de Arte, por ser uma base visual da tessitura da narrativa. A particularidade desse elemento do cinema faz com que voltemos o nosso olhar para o compromisso com a autenticidade narrativa e a impressão de recursos estéticos para sedimentar essa autenticidade. Isso se dá pelo uso de técnicas e concepções específicas.
Com isso, foi possível ter um campo de diálogo entre a filosofia, a psicologia e o cinema, norteados pelo aspecto cultural que a narrativa enlaça. Dessa forma, discorremos sobre a concepção ricoeuriana da narrativa, articulando a noção de tempo. O aspecto temporal é influenciado pelas concepções de Santo Agostinho e também pela noção heideggeriana.

Assim, o visto e o narrado ensejam em si o núcleo ético-mítico da cultura, que fomenta um ponto de conexão entre os três campos teóricos trabalhados nesse estudo. Esse visto e esse narrado traduzem uma forma, que se consolidou, de registro da humanidade. Em vista disso, esse estudo cumpre com seus objetivos e abre para um posterior aprofundamento sobre essas temáticas tão plurais. Aqui encerra nossas reflexões entre o visto e o narrado.

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