Por Stéfany Roloff Krick[1]
Durante a história do cinema, houve a busca por retratar as imagens do imaginário das personagens, aproximando ainda mais o espectador da subjetividade delas. Ademais, teorias como de Munsterberg (apud ANDREW, 1989, p. 25), exploraram a relação entre a linguagem cinematográfica do cinema narrativo com processos mentais. Com isso, é possível perceber como o imaginário está atrelado ao cinema através de teorias e, também, pela presença dessas imagens na tela.
Serão analisadas cenas que retratam esse imaginário em Réquiem Para um Sonho (2000), longa-metragem dirigido por Darren Aronofsky[2], adaptado da obra de Hulbert Shelby Jr. O conceito de imagens mentais servirá como base para o estudo dessas cenas.
É importante destacar que o filme tece problematizações sobre o modo de vida presente em cidades urbanas do final da década de 1990, a partir da degradação das personagens que se dá com o uso de drogas e vício à televisão, se aproximando do que pode ser um filme de terror urbano[3]. Tal tema se tornou demasiadamente discutido com o passar dos anos, além disso, as distorções e filtros utilizados em frente a lente são aspectos marcantes da imagem, sendo uma questão pertinente a ser abordada.
O longa-metragem acompanha a história de quatro personagens em busca de seus sonhos, durante o verão, outono e inverno. Enquanto Sara Goldfarb persiste em tentar aparecer em seu programa de televisão favorito (o show do Tappy), Harry Goldfarb (filho de Sara), Marion Silver (namorada de Harry) e Tyrone Love (amigo de Harry), buscam por estabilidade financeira e lidam com o vício de drogas, sobretudo a heroína. A narrativa permeia esse vício, nos apresentando também um novo vício de Sara, que passa a tomar pílulas para emagrecer e conseguir usar um vestido antigo, a fim de usá-lo no show de Tappy Tibbons e aparecer na televisão.
Com a passagem das estações, as quatro personagens se tornam ainda mais distantes de seus sonhos. Suas memórias, anseios, sonhos e alucinações são trazidos à tela através de imagens distorcidas, quando chega o inverno, as personagens já estão afundadas em seus vícios.
1. Imagens reais x imagens mentais
Como citado anteriormente, desde o início da história do cinema houve representações das imagens mentais, logo, também houve a busca pela diferenciação entre o imaginário e a realidade diegética. Utilizaram-se códigos que representassem essas imagens mentais, como por exemplo, um plano de um homem cochilando com a sobreposição de um balão, em que se passa o sonho do personagem (imagem 1).
Ao longo do texto, as imagens mentais irão se referir àquelas que só o personagem está enxergando/imaginando. Enquanto que as imagens reais irão se referir ao espaço “real” com que as personagens interagem, ou seja, excluindo seus pensamentos e imaginação.
Além disso, o termo imagens mentais é empregado a partir do conceito apresentado por Eliane Gordeeff e João Paulo Queiroz (2019, p. 319): “considera-se imagem mental, qualquer imagem criada consciente (ou inconscientemente), ou armazenada pela mente humana na memória”. Segundo George Sifianos (apud GORDEEFF e QUEIROZ, 2019), as imagens mentais não são naturalistas, mas sim abstratas. As distorções e sobreposições são elementos que se tornaram recorrentes ao retratá-las, fazendo parte de um imaginário comum. É possível ver na seguinte tabela a recorrência dessas distorções, em cada tipo de imagem mental: sonho, pensamento, memória e alucinação. Nos deteremos às representações em live action.
Essas distorções também ocorrem com os sons. O que se ouve nesses estados, também pode ser profundamente “real”, ou sem nenhuma coerência com a imagem que se acredita ver – como “vozes do além”. Tal reunião cria a sensação de insegurança, de desconhecido, de impotência diante de algo que não se tem controle – algo semelhante à sensação de se estar assistindo a um filme em uma sala escura. (GORDEEFF e QUEIROZ, 2019, p. 320).
A sensação de insegurança e falta de controle é percebida em Réquiem Para um Sonho. Não só pelo fato de ser um filme que pode ser assistido em uma sala escura, em que os espectadores não possuem controle sobre o que se passa na tela, mas também pela presença das imagens mentais: é a união de duas situações que não podem ser controladas.
2. Imagens de réquiem para um sonho
2.1. O vídeo e a metamorfose
A experimentação de diferentes filtros e ruídos na imagem, em Réquiem Para um Sonho, é uma característica marcante. Para a realização do filme, foram utilizadas diversas câmeras, entre elas 35mm e de vídeo[4], porém, não nos deteremos ao uso dessas em cada cena, e sim às texturas finais. Assim, não importa o suporte de captação, mas como essa imagem é percebida por nós.
Quando o vídeo passou a ser adotado no cinema, o dispositivo ainda possuía uma qualidade de imagem consideravelmente baixa em relação à película. Houve discussões sobre seu uso e, também, sobre sua falta de materialidade, como é possível perceber no seguinte trecho de Cinema, Vídeo, Godard (2004):
O vídeo não tem nada a oferecer como unidade mínima visível além do ponto de varredura da trama – algo que não pode ser uma imagem e que nem sequer existe como objeto. Desse modo, a imagem de vídeo não existe no espaço, mas apenas no tempo. Segundo Nam June Paik, “o vídeo não é nada mais do que o tempo, somente o tempo”. (DUBOIS, 2004, p. 64).
O filme assume essa imaterialidade do vídeo, trazendo seu aspecto ruidoso para as alucinações de Sara. A personagem passa a se ver na televisão, parecendo mais jovem, com um vestido arrumado e maquiagem, mas na realidade, ela está com uma aparência desoladora. A qualidade da imagem se opõe à situação, na primeira, em que Sara parece uma versão mais realizada de si mesma, é assumido um ruído, já na segunda, em que Sara parece vencida, a imagem é de melhor qualidade (imagem 2).
Com o agravamento das alucinações, sua imagem ruidosa, assim como a de Tappy, sai da tela e invade o apartamento (imagem 3). Essas figuras com textura de vídeo sobrepõem o quadro com “qualidade de cinema”, misturando o real com o irreal: a imagem “concreta” com as imagens mentais.
“A imagem informática é menos imagem que uma abstração” (DUBOIS, 2004, p.65). Nesse sentido, a alucinação de Sara, ou seja, suas imagens mentais e, por tanto, abstratas, são representadas pela imagem digital, também imaterial e voltada para a abstração.
É o triunfo da simulação, em que a impressão de realidade dá lugar à impressão da presença, e o usuário experimenta a simulação como um real. Neste universo, não só a imagem perdeu corpo, como também o próprio real, inteiro, parece ter-se volatilizado, dissolvido, descorporificado numa total abstração sensorial. (DUBOIS, 2004, p. 66).
Em contrapartida, outros autores, como Arlindo Machado, relacionam o vídeo a sua capacidade de metamorfose, no sentido de que a sua maleabilidade torna possível a interferência do artista nas formas. Tais interferências podem gerar distorções na imagem. Em Réquiem Para um Sonho, a metamorfose parece tomar conta dos planos, não somente naqueles com textura de vídeo, mas em sua grande variedade, a partir do uso de filtros na frente da lente, figuras que borram o quadro, velocidade dos movimentos de câmera, split screen, sobreposições, uso de lentes olho-de-peixe e entre outros.
Se há algo que marca profundamente essa imagem é a sua extraordinária capacidade de metamorfose: ela está sujeita a todas as transformações, a todas as anamorfoses e a todas as distorções, bastando para isso alguns ajustes de circuitos. Pode-se nela intervir infinitamente, subverter os seus valores cromáticos ou os seus níveis de luminância, recortar suas figuras e inseri-las umas dentro das outras, gerando paisagens híbridas e exóticas, a meio caminho entre o surrealismo e a abstração. (MACHADO, 1997, p. 146).
Para Morin, o fato das imagens se transformarem em outras é uma metamorfose: “O cinema, ao mesmo tempo que é mágico, é estético e, ao mesmo tempo que é estético, é afectivo. Cada um destes termos pressupõe o outro. Metamorfose mecânica do espetáculo de sombra e luz…” (MORIN, 1956, p. 138). Logo, acrescentar (slow motion) ou tirar (fast motion) mais imagens em relação ao tempo do filme, altera a sua metamorfose. Assim como as imagens são maleáveis, o tempo, ou seja, a passagem de um frame para outro, também pode ter dilatação e reversão.
No caso de Réquiem Para um Sonho, há diversas imagens que se transformam em outras com a presença de dilatações, mas também com suas próprias distorções intra frames. Enquadrando-se, assim, a essas duas caracterizações metamórficas.
2.2. As imagens mentais
De acordo com a tabela supracitada, as características das imagens mentais são: alteração cromática, alteração sonora, caóticas, com ruídos, disformes, desbotadas, esfumaçadas, no-sense, ritmo acelerado e reais. Nas cenas analisadas, não há a presença de todas as características em um mesmo momento e, até mesmo, pode haver a falta de distorções na imagem e no som, mas veremos como elas se articulam ao longo da narrativa.
2.2.1. Tyrone e a imagem-memória
Ainda no verão, quando os personagens estão positivos em relação ao futuro, Tyrone se olha no espelho. Ele fecha o armário em que o espelho está e o abre sucessivamente, cobrindo o plano com o próprio armário e deixando-o escuro. Quando ele fecha pela última vez, o escuro em frente a lente se metamorfoseia em outra imagem, passamos a ver um menino correndo (imagem 4) em um plano único, com o uso de vinheta, dessaturação e grão, ou seja, com ruídos e alteração cromática. O menino chega até sua mãe e fala (imagem 5):
Eu disse mãe, um dia eu chego lá.
Tyrone é chamado e tirado de sua imagem mental, sua memória vai desaparecendo da esquerda para direita, dando espaço à realidade (imagem 6). Fica claro que é uma memória do personagem, não somente pela narrativa, mas também pela compreensão do uso de representações que já se tornaram comuns, como a vinheta.
Mas a verdade é que o cinema, em razão de sua insistência na vocação realista, jamais conseguiu assimilar essas inovações gráficas e plásticas às suas próprias estruturas figurativa e narrativa, e essa é a razão por que, depois de três ou quatro minutos de estonteante modernidade, por ocasião dos créditos de apresentação, os filmes retornam monotonamente a modelos dramatúrgicos e pictó-ricos típicos do século XIX (MACHADO, 2000, apud, FREITAS, 2007, p. 17).
A vinheta, esse elemento que um dia já foi uma inovação plástica, que pouco parecia ter uso, se tornou uma característica recorrente no uso de representação da memória. Na lembrança de Tyrone, a vinheta contribui para a estética da cena, fugindo do realismo e caracterizando a imagem mental.
2.2.2. Marion e a imagem-pensamento
Durante o outono, a falta de dinheiro atinge os personagens, que sofrem com a escassez de heroína nas ruas. Marion, a fim de conseguir dinheiro, se encontra com Arnold, homem com quem já teve uma relação. Há uma luta interna da personagem que é exposta através da imagem pensamento.
Os dois estão sentados em um restaurante, Arnold questiona Marion sobre a tentativa de reaproximação, ela diz que precisa de um favor, ele coloca sua mão sobre a dela (imagem 7). Barulhos de talheres e copos se tornam presentes, Marion perfura a mão de Arnold com um garfo (imagem 8), o homem grita. Ela o chama de aproveitador (imagem 9) e no próximo plano o enquadramento se torna mais aberto (imagem 10), distanciando o espectador do pensamento de Marion.
A transição do real para a imagem pensamento se dá pela alteração sonora, e traz a realidade de volta através da decupagem. Fora isso, as imagens permanecem sem distorções. Com isso, é possível perceber que a imagem pensamento se aproxima mais do real que a imagem memória, sendo percebida a partir do afastamento da câmera em relação a Arnold e, também, pela mudança repentina de atuação.
2.2.3. Harry e a imagem-sonho
No inverno, a falta de heroína nas ruas de Nova Iorque faz com que Harry e Tyrone tenham que viajar para o sul do país, porém, o braço machucado de Harry força-os a irem para o hospital. Lá, os dois acabam sendo detidos, depois disso, Harry só recebe auxílio quando seu braço tem que ser amputado. Ele está no hospital, recebe um medicamento para dormir e tem um sonho.
A transição do real para o sonho se dá através de um fade in do branco, com isso, surgem imagens esfumaçadas: Harry vê uma ponte com Marion parada ao fundo, olhando para o horizonte (imagem 11), ele corre em direção a ela, mas quando chega lá, ela não está mais (imagem 12). Ele dá um passo para trás, no entanto, a cena toma um rumo no-sense, pois a paisagem se transforma em um espaço vazio, em que Harry cai (imagens 13 e 14). Externalizando, assim, seu sonho e as emoções que o envolvem.
2.2.4. Sara e a imagem-alucinação
Desde o início do filme, pode ser percebido o vício de Sara em relação à televisão, que aumenta com uma ligação dizendo que ela tem a oportunidade de aparecer em seu programa de televisão favorito. Ainda no verão, a personagem decide tentar emagrecer, é durante a sua dieta que surgem suas primeiras imagens mentais: ela passa a enxergar comidas a sua frente.
Sara desiste da dieta e começa a tomar pílulas que reduzem a fome, então, suas alucinações começam. Ela vai ao médico pela segunda vez, afirmando que as pílulas não fazem mais efeito. Nessa cena, as pessoas a sua volta se mexem como vultos e a personagem escuta estrondos. A distorção da imagem se dá pela presença do ritmo acelerado e o uso de lentes olho-de-peixe, que deformam praticamente o quadro inteiro (imagem 15).
Em casa, Sara passa a se ver na televisão interagindo com o apresentador Tappy, porém, com a passagem dos dias e o consumo excessivo das pílulas, sua imagem texturizada sai da tela, como visto anteriormente (na imagem 3). Nesse momento, há o ápice das imagens mentais de Sara, e a imaterialidade do vídeo dá espaço às imagens reais.
A parede da casa é aberta, revelando um estúdio. Sara e Tappy, operadores de câmera, dançarinas e até mesmo as próprias luzes do programa invadem a sala (imagens 16 e 17), interagindo com uma outra Sara, assustada e desnorteada, sentada na poltrona (imagem 18). Nesse momento, as imagens mentais são representadas sem distorções. Não há a necessidade do uso de características que construam a noção do irreal, visto que o acontecimento é, por si só, no-sense. Há uma poluição no cenário, com o uso de diversos elementos que fundem o programa de televisão com a sala de Sara.
A personagem sai correndo para fora de seu apartamento, que é mostrado como de fato está: com a televisão fora do ar, sem qualquer pessoa, câmeras ou as luzes do programa. Assim, se dá a transição da imagem mental para a imagem real.
Considerações Finais
Com isso, é possível perceber que as representações das imagens mentais ajudam na construção estética de Réquiem Para um Sonho, além de contribuírem narrativamente. Com base nas discussões e exemplos, é possível perceber como a imagem digital possui uma natureza maleável, e como essa maleabilidade contribui para trazer a internalização de Sara à tela.
Para além de Réquiem Para um Sonho, as imagens no audiovisual também trazem subjetividade e a internalização das personagens, não somente através de distorções. No entanto, a própria relação entre a imagem e o pensamento ainda é discutida e possui diversos ramos de estudo, podendo se afastar da análise fílmica e pedir um olhar sobre a filosofia da imagem e, até mesmo, sobre o psicológico humano.
A partir do afunilamento da análise, foram destacados os artifícios que representam as imagens mentais e, com isso, foi percebido que essas distorções reforçam a diferença entre a imaginação das personagens e o espaço em que elas se encontram. Ademais, com a mudança do olhar dos espectadores, cada vez mais acostumados com a linguagem audiovisual, vem à tona o fato de que, talvez, não seja necessário o uso de distorções e encenações no-sense para que se percebam essas diferenças. De qualquer forma, essas imagens ainda se mostram importantes e presentes no audiovisual e, por tanto, continua sendo um tema a ser explorado.
Referências bibliográficas
ANDREW, Dudley. As Principais Teorias do Cinema. São Paulo: Editora ZAHAR, 1989. p. 25-35.
DUBOIS, Philippe. Cinema, Vídeo, Godard. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
FREITAS. Leonardo Fialho. A vinheta eletrônica no cinema: adaptação e evolução de um elemento gráfico. 2007.
GORDEEFF, Eliane; QUEIROZ, João Paulo. O Imaginarium Diegético na Animação e no Cinema: a representação de momentos de sonho, memória, devaneio e psicodelia no Audiovisual. AVANCA CINEMA, p. 318-328. 2019.
JOST, François; GAUDREAULT, André. A Narrativa Cinematográfica. Brasília: Editora da UnB, 2009. p. 51-63
MACHADO, Arlindo. Pré-cinemas e Pós Cinemas. São Paulo: Papirus, 1997.
MORIN, Edgar. O Cinema ou o Homem Imaginário: Ensaio de Antropologia. São Paulo: É Realizações Editora, Livraria e Distribuidora Ltda, 2014. p. 10–39.
Referências filmográficas
Réquiem Para um Sonho. Direção: Darren Aronofsky, Produção: Palmer West. New York (NY): Artisan Entertainment, 2000. 1 DVD (143 min.).
The Life of an American Fireman. Direção: George Fleming e Edwin Porter. Produção: Edwin Porter. New Jersey: Edison Manufacturing Company, 1903. (6 min.).
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[1] Artigo desenvolvido como atividade acadêmica no Curso de Realização Audiovisual da Unisinos / RS
[2] O filme também conta com a direção de fotografia de Matthew Libatique, direção de arte de Judy Rhee, design de som de Brian Emrich e montagem de Jay Rabinowitz.
[3] O diretor se refere ao filme dessa maneira durante o making of. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=oAEQphgngSg/>. Acesso em: maio de 2020.
[4] De acordo com o IMDB. Disponível em: <https://www.imdb.com/title/tt0180093/technical?ref_=ttloc_sa_5/>. Acesso em: maio de 2020.
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