Mostras audiovisuais que engendram pesquisas com imagens: investigando as produções apresentadas no catálogo da IIª Mostra [em]curtas

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Por Keyme Gomes Lourenço[1], Manuela de Matos Sodré[2] e Henrique França[3]

Este trabalho foi produzido por membros organizadores da Mostra Audiovisual [em]curtas e propõe um estudo sobre a Mostra e os filmes que a compuseram como parte das ações desenvolvidas pela equipe executora (comissão de produção textual sensível-investigativa). A partir do momento em que o atual cenário global, no qual a globalização torna-se uma espiral para a completa liquidez de tudo que já foi palpável, o cinema passa a ensaiar diferentes reações para tal processo a partir da virada do século. Stéphane Bouquet (2002) nomeou esse novo panorama estético como “fluxo”, que possibilita caracterizar essa relação mais desapegada para com a narrativa ou até mesmo de uma moral mais nítida, um cinema mais entregue ao aspecto imediato dos sentidos.

Esse estilo viria a se tornar a menina dos olhos de ouro para os festivais de grande relevância como Cannes e Veneza, com cineastas como Gaspar Noé e Wong Kar Wai, que ganharam a alcunha tão pesada de visionários. Por mais que hoje ambos pareçam distantes de seus “auges”, seus cinemas ainda inspiram a referenciação estética de diversas obras. A obsessão de Gaspar para com a plasticidade do plano-sequência parece-nos ter se tornado viral até mesmo ao jogo entroncado das premiações, que estão sempre pondo esse virtuosismo técnico para as grandes categorias. Enquanto os romances perdidos impressos sob uma imagem impressionista do diretor de Hong Kong, Wong Kar Wai, tornaram-se um predecessor das fotografias que dominam redes sociais, como por exemplo o Instagram, e também estão estampadas nas playlists lo-fi popular daquelas pessoas que buscam pela paz de espírito que o ritmo evoca.

Até mesmo o diretor iraniano Abbas Kiarostami mostra um certo dedo no cinema mumblecore[4]. Enquanto o diretor filmava o enfoque no cotidiano de dois extremos, como crianças e idosos, tornava os eventos corriqueiros numa narrativa, ao mesmo tempo que permanecia negando efeitos e trucagens melodramáticas. O impactado de Kiarostami ressignificou a estética para atingir uma geração de jovens adultos perdidos. O principal expoente do mumblecore, Noah Baumbach, sempre oscila entre o cinema da recusa e o da crônica, absurdamente inspirado no cinema do nova iorquino Woody Allen, o qual era flerte artístico e de talento de Kiarostami.

Filmes obcecados em parecer com a vida e nada mais, mas que ao mesmo tempo se recusam a abrir mão da conduta às emoções do público, como no mais recente filme dirigido por Baumbach, “História de um casamento”(2019), no qual essas oscilações berram em uma montanha russa na forma de organização dos elementos cênicos.

É essa geração ‘pós-fluxo’ que influencia a geração de novos cineastas vistos no catálogo de maio da IIª Mostra Audiovisual [em]curtas, da Universidade Federal de Uberlândia. Os diretores e as diretoras que compõem a sessão nomeada ‘Maio [em]casa’ (nome que faz referência ao isolamento social, determinado pelas autoridades como alternativa ao enfrentamento da pandemia da Covid-19 em 2021), são artistas que eram novos demais para ver “Elefante”(2003) de Gus Van Sant, marco definitivo desse movimento, mas estavam no embrião de um senso crítico próprio, quando a obra “Frances Há” (2012), do já citado Baumbach, estava despontando nos cinemas alternativos dos arredores ou nos streamings. Diretores e diretoras que nasceram em um mundo já liquidificado, no qual a transição da internet discada para a banda larga já era uma realidade alcançável. Viram e acompanharam também os aplicativos de filtros emuladores das câmeras Polaroid tornarem-se fonte de inspiração estética dos seus próprios cinemas.

Desse modo, o objetivo deste trabalho foi estudar o cinema de fluxo e compreender como ele se manifestou nos filmes que compuseram o catálogo de maio de 2021 da IIª Mostra Audiovisual [em]curtas. A partir desse encontro-estudo, buscamos produzir tecituras fertilizadas pelas teorias e carregadas daquilo que vazou após assistir as obras e sermos afetados por elas, criando escritas fílmicas a partir do sensível. Propomos também para o trabalho a apresentação dos principais conceitos e temas estudados sobre cinema de fluxo pela equipe executora da Mostra [em]curtas, que incorporarão ao texto na forma de divulgação e desenvolvimento teórico-metodológico.

Organizado em quatro partes, o presente trabalho estreia sobre um possível casamento entre as temáticas de audiovisual e mostras de cinemas, cinema de fluxo e escrita inventiva. A primeira parte do texto parte expõe breve contextualização sobre a Mostra [em]curtas e como é organizada. A Segunda parte apresentamos um panorama geral e majoritariamente quantitativo sobre a participação e composição da Sessão Maio [em]casa, quanto à localização, direção, gênero, etc. Na terceira e quarta partes tecemos escritas sobre os filmes assistidos e analisados e os derramamentos criativos que surgiram para contar deles, em que evidenciamos de forma escrita encontros e conversações existentes entre o filme e as teorias estudadas sobre cinema de fluxo e sua irradiação no Brasil, que fertilizaram escritas e pensamentos. Inicialmente dando entrada nas teorias e autores principais da corrente e em seguida apresentando mais densamente os filmes de maio.

Primeira parte: O que é a Mostra Audiovisual [em]curtas?

Começamos nosso texto em dobras, reflexões e ziguezagues pensando a partir de uma das sessões de filmes do festival de curtas-metragens. A sessão intitulada “maio [em]casa”compôs as exibições da IIª Mostra Audiovisual [em]curtas em 2021, nos dias 13 de maio a 05 de junho, virtualmente transmitida por meio da plataforma YouTube[5].

A Mostra [em]curtas possui a proposta de ser dividida em nove sessões principais e três sessões extras que ocorrem ao longo do ano bimestralmente a partir de maio e encerram-se em novembro com as sessões principais. Para o presente estudo foi selecionado filmes que estiveram em cartaz na sessão de maio da mostra. Essa sessão nos chamou atenção porque acontecia num momento em que já se passava um ano da pandemia da Covid-19, milhares de brasileiros e brasileiras ainda não possuíam acesso à vacina para doença, mês de carnaval que não ocorrera, festas familiares que não poderiam se concretizar. Ilhados e isolados em casa, o cinema e as transmissões eram uma maneira de se conectar com o fora, com as outras pessoas. Por tratar-se de uma temática extremamente atual e comum a todas e a todos que estavam em isolamento, e por entender que a arte também representa angústias e sentimentos inerentes à vida e ao viver, externamos os atravessamentos que chegavam a nós.

Há muitas maneiras de se afetar e produzir relações com os filmes. Para o presente texto, ao percorrermos os filmes, atentávamos para aquelas relações mais tensas, mais à beira, que eram as que mais nos afetavam e movimentavam. A partir dos estudos da Comissão de produção de texto da Mostra sobre o cinema discutido por Deleuze (2007, p. 29), entendemos que a pesquisa sensível como um caminho para investigar filmes:

Deve permitir apreender algo intolerável, insuportável. Não uma brutalidade como agressão nervosa, uma violência aumentada que sempre pode ser extraída das relações. Trata-se de algo mais poderoso, o injusto, o belo, o que excede nossas capacidades sensório-motoras.

Essa pesquisa que põe a escrita inventiva em foco busca entre os filmes ir além de exceder e perturbar as ligações sensório-motoras. Juntamos às imagens-tempo “forças imensas que não são as de uma consciência simplesmente intelectual, nem mesmo social, mas de uma profunda intuição vital” (DELEUZE, 2007, p. 33).

Cada produção da sessão nos atravessou de forma diferente, compondo marcas em nossos corpos. Algumas questões nos movimentaram durante o percurso foram: Que criações ecoam desses atravessamentos? Quais as suas ressonâncias para o audiovisual brasileiro? E que potências tem pensar nessa produção que circuita pelo país?

Decidimos propor um movimento que se dá entre os desdobramentos deste trabalho. Um movimento entre nossos pensamentos e escritas, e outros pensamentos, outras narrativas, especialmente as dos filmes da Mostra[em]curtas, na intenção de que nossas conversas aqui contribuam para mais conexões desse rizoma.

Em tempos pandêmicos, com a crescente utilização de tecnologias digitais para acesso a lives, cursos, vídeos, filmes, fotografias etc., a utilização desse recurso também se vê necessária para a promoção de atividades científicas, acadêmicas e de cunho artístico e cultural.

A Diretoria de Cultura da Universidade Federal de Uberlândia (DICULT/UFU), após a pausa nas disciplinas dos cursos de graduação e pós-graduação devido à pandemia da Covid-19, incentivou a produção de atividades de cunho artístico-cultural nesse período de 2020, por meio de um edital de incentivo vinculado à Pró-reitoria de Extensão e Cultura.

Nosso grupo de pesquisa cogitou interesse em participar do edital de apoio promovido pela DICULT, porém, devido a tantos movimentos ‘pandêmicos’, informações e desinformações, news e fake news, sabe e não se sabe, álcool, máscaras e poucos abraços, perdemo-nos em prazos e não pudemos propor provocações artísticas a esse edital. Mas o desejo que adveio da proposta-provocação da Diretoria de Cultura permaneceu… Ecoou… Reverberou… e entre encontros online, janelas, conexões instáveis, câmeras-resolução, emojise bate-papos, construímos coletivamente a Mostra Audiovisual [em]curtas, mais do que uma Mostra, pensamos em uma intervenção onlineque discutisse culturas, imagens, sons, audiovisuais, tecnologias e…

No contexto do isolamento social, as pessoas demonstraram depender ainda mais de tais tecnologias: tecnologias-imersão; aumento de consumo e produtos da rede. Conexões que atravessam a rede em direção ao espectador e à espectadora, produzem sentidos e sensações que causam afetos, dialogam com nossa realidade. Das multitelas da contemporaneidade às construções individuais e coletivas na sociedade.

Deixamo-nos ser afetados pela vontade de criar, de juntar, de exibir. E registramos uma proposição artística-virtual a qual deu origem à Mostra Audiovisual [em]curtas, junto à Pró-Reitoria de Extensão e Cultura da Universidade Federal de Uberlândia (PROEXC/UFU), com registo no Sistema de Informação de Extensão da Universidade (SIEX/UFU).

O objetivo da Mostra onlinefoi ampliar e promover o acesso a filmes e produções audiovisuais e movimentar pensamentos e ideias a partir delas com cine-debates. Além de receber produções de cineastas independentes, difundindo essas obras no cenário audiovisual, incentivando e valorizando os e as artistas de comunidades, de pequenas cidades e de outros eixos. Fazer do Cinema um disparador. Construir pelo [em]curtas disparadores com recursos midiáticos online.

Segunda Parte: Panorama quantitativo de participação na Sessão de maio [em]casa da IIª Mostra [em]curtas

Impossibilitados de sair, mas, livres para pensar. A sessão do mês de maio da Mostra [em]curtas, por meio de formulário de inscrição online, recebeu mais de 350 curtas-metragens. São filmes que denunciam o novo normal pandêmico, através das lentes das câmeras (d)e celulares por histórias de pessoas que encontraram no audiovisual formas de extravasar suas ideias.

Do total submetido, foram selecionados pela curadoria da Mostra 245 filmes para fazerem parte da Sessão especial de maio, exibida a partir do 13 de maio pelo canal do Youtube da Mostra. Reuniram-se filmes produzidos em período pandêmico que relatam a vida das pessoas durante essa fase tão difícil para todos e todas nós. Com um total de 55 documentários selecionados, encontramos imagens que revelam a vida e o dia a dia nesse novo panorama, desde seu início em março de 2020, como a obra “A visão dentro do Quadrado”, do recifense Wenny Mirielle, que relata a vida periférica daquelas pessoas para as quais o enunciado “fique em casa” não tem o mesmo peso do que o que soa nos ouvidos das classes médias ou altas brasileiras. Temos também a obra “SAUDADE”, do niteroiense Marcos Alfa, que retrata a saudade das coisas pequenas quando o Brasil ainda batia a marca de 60 mil pessoas mortas por Covid-19.

Outro gênero que se destacou foi o de ficção científica, com um conjunto de 54 filmes inscritos, seguido pelo gênero drama, que fica logo atrás com 41 obras. Na sequência tivemos, num sentido decrescente, o gênero experimental com 34 obras, que varia entre estilos como fotofilmes, videoclipes, performances e híbridos, o gênero de comédia é representado no catálogo por 14 curtas-metragens selecionados, e, por fim, o gênero de animação teve 8 filmes exibidos.

Nossa curadoria selecionou 245 filmes que se comunicavam com o estado do mundo naquele momento, pois exigia que as obras fossem produzidas somente durante o período pandêmico. Porém, mesmo sendo produções realizadas em período tão intenso de isolamento e enfrentamento da pandemia, apenas 134 obras tratavam da doença da Covid-19 de forma direta.

A mostra cruzou o Atlântico com o filme “Fardos Invisíveis”, de direção e roteiro de Eudaldo Monção Jr., Isabela Martins, Meire Oliveira Silva, Raquel Matias e Renan Monteiro, em uma coprodução Brasil e Portugal gravada durante a obrigatoriedade do isolamento social, retratando seu impacto no dia a dia de trabalhadores e trabalhadoras.

Acesse o Letter Box das obras produzido pela equipe da Mostra [em]curtas no link: https://letterboxd.com/henriquefranca/list/mostra-emcurtas-2021/.

Tabela 1 – Dados sobre as obras selecionadas para a Sessão Maio [em]casa divididas por gênero, relação com pandemia/covid, estados brasileiros e co-autorias.

Total de obras
Filmes Inscritos258
Filmes Selecionados245
  
Obras relacionadas à temática Covid-19
Filmes Sobre Covid134
Filmes outros temas que não Covid19124
  
Obras por gêneros fílmicos
Documentário55
Ficção54
Drama41
Experiencia34
Comédia14
Animação8
Obras por região geográfica do brasil
Norte2
Nordeste67
Centro-Oeste6
Sudeste143
Sul25
Não Informado2
Obras inscritas com coprodução internacional
Brasil – Portugal1
  
Autoria das produções cinematográficas
Duplas34
Grupo/Coletivos13

Fonte: LOURENÇO, 2023.

Terceira parte: Teorias e conceitos importantes do cinema de fluxo para serem estudados

As tecituras produzidas nesta parte ocorreram durante oficinas de leitura e estudos realizados entre os membros da comissão executora responsável pela escrita da mostra. Compreendemos a importância de ler e estudar teorias relacionadas ao cinema de maneira teórica para ampliar a compreensão da própria gênese cinematográfica. E, também, por ter um caráter universitário, a Mostra Audiovisual [em]curtas apoia e exerce essa posição de não desvincular pesquisa-ensino-extensão, no sentido de transitar sobre os campos na organização e estruturação do evento. Desse modo, não temos como objetivo esgotar tudo que há escrito sobre cinema de fluxo, pouco menos trazer uma revisão densa e aprofundada sobre os principais autores e autoras e seus milhares de conceitos envolvidos, mas, sim, produzir a partir das leituras e discussões do grupo de estudo, de maneira leve e articulada, escritas que nos façam refletir e pensar sobre o cinema de fluxo, aquilo que o tensiona, aquilo que o atravessa, e também que nos atravessou, nos chamou atenção, fertilizando curiosidades e dúvidas sobre a arte cinematográfica.

O cinema de fluxo nasce de um mundo onde a mudança ocorria muito rápido com o avanço tecnológico da década de 1990 para 2000. Veio por meio de diversos realizadores e realizadoras de diferentes localidades que tinham o mesmo desejo de criar filmes mais subjetivos que abrem mão da montagem lógica tradicional, procurando exibir em tela filmes cuja sensações são inerentes ao sujeito-personagem/espectador/a.

Vemos um cinema até então experimental que se utilizava de sons e imagens em uma proposta contemplativa desafiando assim os teóricos e críticos que buscavam conceituar que tipo de cinema utilizava desses maneirismos como manobra de narrativa. A ressignificação do cinema contemporâneo foi resumida em três artigos dos críticos da Cahiers du Cinéma: Stéphane Bouquet (2002), Jean-Marc Lalanne (2002) e Olivier Joyard (2003), que caracterizaram esse movimento estético como cinema de fluxo: um movimento no qual a narrativa se faz com o abandono da narrativa lógica e normativa em prol do sentido, fazendo o uso da montagem não-normativa (BOUQUET, 2002; LALANNE, 2002; JOYARD, 2003).

Seus diretores e diretoras expoentes, como Gus Van Sant, dos Estados Unidos, Apichatpong Weerasethakul, da Tailândia, Naomi Kawase, do Japão e Claire Denis, da França, desafiavam críticos e espectadores com seus filmes que exigiam um mergulho introspectivo para poder compreender a obra que se baseia no sensível, deixando-se levar pelo movimento ao contemplar pequenos gestos e ressignificar o espaço-tempo com o objetivo de desencadear sentimentos catárticos.

Após a imersão nas leituras e ao assistir as obras, percebemos que a Mostra [em]curtas expõe as novas caras do audiovisual com curtas influenciados de alguma maneira por esse movimento estético, cujo os estímulos sensoriais cinematográficos só são alcançados através da narrativa baseada no sensível e no introspectivo mundo pessoal, fragmentando a norma, aquilo que é retilíneo e lógico. Os planos que compõem o cinema de fluxo contêm possibilidades infinitas de criações, seja por sua composição, seja por seu esgotamento ao longo do tempo. Os planos se estendem ao máximo, não possuem o compromisso de buscar uma performance ou função informativa para com os avanços das respectivas histórias.

Percebemos também algumas premissas do cinema de fluxo que consideramos interessantes de pensar neste trabalho, discutidos a partir da leitura da dissertação de Cunha (2014), como a tentativa de apreensão do real baseada na insignificância das coisas, no devir das imagens e sons, o que se apresenta na tela não pertence ao registro da razão, mas do corpo que sente e pensa, um cinema erguido através do sensível e da descompressão do espaço narrativo. O que temos é menos preocupação em representar o real por meio de técnicas tradicionais. Desse modo, na tentativa de construir sentidos e sensações passou-se a priorizar a subjetividade. Ou seja, modificações na concepção da ideia fílmica, nas técnicas de gravação, de captura, de edição, de posição, de personagens. Possibilitando que algumas obras audiovisuais coloquem em xeque verdades absolutas, sobretudo nos convidando a repensar caminhos dentro do universo cinematográfico.

Sobre isso, Lalanne (2002, p. 26) comenta:

O horizonte estético do cinema contemporâneo terá a forma de um fluxo. Um fluxo esticado, contínuo, um escorrer de imagens nas quais se deterioram todas as ferramentas clássicas utilizadas na própria definição de mise en scène: o quadro como composição pictórica, o raccord como agente de significação, a montagem como sistema retórico, a elipse como condição da narrativa.

Percebemos que o cinema de fluxo demanda do espectador e da espectadora uma imersão sensorial, guiada por um pensamento articulado não pela ordem do racional, mas do sensível, do afeto. “Um cinema que busca apreender o real em sua opacidade natural: ambígua e misteriosa” (CUNHA, 2014, p. 5). Desse modo, o cinema de fluxo é capaz de produzir atmosferas sensoriais, aparentemente despreocupadas com o desenho narrativo sólido. E se faz em oposição ao cinema atual mais comercial (vemos isso na alta velocidade narrativa e no uso e abuso de excessos), sendo um cinema que valoriza o tempo e o comum, que procura potencializar pequenas percepções.

Por isso fluxo: o “princípio de um desencadeamento permanente e infinito” (BOUQUET, 2002, p. 47) em oposição ao “plano, uma sequência de composições ordenadas, ou sabiamente desordenadas” (BOUQUET, 2002, p. 47). Desse modo o diretor/a, artista-criador/a, no cinema de fluxo, o “cineasta de fluxo”, torna-se veículo que captura incongruências do real, seja observando, sentindo, experimentando. Nesse sentido, é guiado mais na função de um ritmo do que na busca pelo sentido de suas criações.

Entendemos que o ritmo do cinema de fluxo,

É conduzido pelo escoar do tempo de um plano que se deposita na imagem seguinte em um enlace contínuo e sereno. É um ritmo etéreo e flutuante […] Trata-se da vida apresentada quase no seu avançar e desvelamento naturais, com seus tempos mortos e vazios (CUNHA, 2014, p. 21-22).

Finalizamos esta parte do texto refletindo sobre a potência de realizar estudos-coletivos, incentivados por Mostras de cinemas nacionais, sobre teorias fílmicas, a fim de compreender sua própria curadoria, as obras que são exibidas e dão personalidade à Mostra, suas tendências, características, entre outras questões. Os estudos das teorias fílmicas são potentes recursos para aprender, ensinar e também para aprender sobre o que os filmes ensinam. As anotações e as discussões coletivas realizadas sobre o cinema de fluxo atuam como registros que viabilizam momentos de autoconhecimento e autoavaliação, essenciais no processo de formação, seja como cineastas, produtores culturais, críticos de cinema, escritores científicos, etc. Por meio dos encontros que aconteceram entre a equipe executora da Mostra [em]curtas, e que deram origem a este trabalho, foi possível entrar em contato com diversas potências educativas, cinematográficas e teóricas.

Mergulhando nos filmes: experimentando escritas com as produções de uma geração audiovisual que criou ‘em casa’

Todo filme é um retrato de seu tempo, como Bazin (1991) define em “A ontologia da imagem”. A imagem é o processo moderno de mumificação, na qual registramos a nossa existência para a eternidade por meio dessas reações químicas, agora algorítmicas, em meio à luz. Por isso que o uso do adjetivo “datado” de forma pejorativa para o cinema soa equivocado. Não é à toa que um dos principais recursos de retórica em estudos acadêmicos relacionados à modernidade está nesses recortes em 24 quadros por segundo.

Quando falarmos sobre a pandemia da Covid-19 (período no qual tecemos este texto), provavelmente iremos ter no consciente coletivo as imagens advindas do jornalismo. Uma obra do acaso transformou esse modus operandi padronizado da cobertura de imprensa em uma forma de potencialização do caos atual. Ver as diversas situações e diálogos absurdos que percorrem esse período maior que um ano sob a mesma ótica distante e retangular de um plano médio na altura do peito, mesma composição que capturou grandes discursos dos maiores líderes, potencializa a noção do buraco a qual o mundo se pôs.

Sempre existirão facetas de um fato que a imprensa não conseguirá manifestar ou capturar como um furo, a mudança de condições rearranja o retrato constantemente. Sob tal premissa, a arte, cultura e o conteúdo vindos das cada vez mais variadas fontes e recortes auxiliam na formação desse mosaico variado e caótico, como não poderia deixar de ser. Sendo assim, os curtas que estiveram presentes na Mostra [em]curtas do mês de maio revelam um recorte válido para se pôr nessa obra coletiva maior.

O recorte da mostra é de uma geração de transição, a que está na fronteira entre os millenials e os agora chamados Z, cujas memórias de infância estão em algum espectro dos dois mandatos Lula, quando a euforia da retomada chegava ao seu auge e se estabelecia enquanto indústria, antes do sucateamento das instituições após o golpe de 2016. A faixa etária dos 20 aos 27 anos, que viveu o louco tráfego de redes sociais de um mundo pré-oligopólio do Facebook nesse mercado, em que as únicas redes estáveis foram os falecidos MSN e Orkut. Os adolescentes que possuíam, no auge do equívoco e dos hormônios, constantes atualizações de informação em mãos como novidade.

Enfim, uma geração que cresceu em um mundo cujo único fator constante em seu status-quo era a constante mutação radical de fatores. Era fatídico que o cinema mediado por tais mãos trêmulas pela inércia iriam refletir comportamentos e vícios da mesma sob condições normais de temperatura e pressão. Porém, a pandemia privou esses novos artistas de qualquer recurso mais arrojado que pudesse trazer alguma espécie de formalismo ou tecnicidade distrativa a tal processo. Para o bem ou para o mal, as limitações revelaram um cinema que deixa seus realizadores e realizadoras nus diante das câmeras.

Não em um sentido esperado, em que os voice overs seguidos de reflexões sobre o momento consigam tornar-se esses manifestos que ficaram eternamente gravados como retratos maiores que a vida sobre esses tempos, mas, sim, como ferramentas e recursos utilizados em seus filmes em uma manifestação nítida do cerne das inspirações não manifestas dessa geração.

Televisão, Instagram e cinema engrenagem são disparados como os elementos mais presentes nos curtas postos na mostra. Os documentários vistos têm a herança do jornalismo investigativo de um Globo Repórter, no qual a intervenção autoral está mais na condução dos relatos do que necessariamente nos elementos ilustrativos da imagem. Alguns documentários como “Seremos Ouvidas” (Larissa Nepomuceno)e “Janelas Daqui” (Luciano Vidigal e Arthur Sherman)chegam a buscar alguma particularidade que rompa com a noção de cinema podcast, aquele em que o espectador e a espectadora podem apenas ouvir o que está sendo dito já que a imagem apenas segue a lógica da fala. O primeiro por ser integralmente relatado por pessoas mudas exige do espectador a atenção aos gestos e legendas, enquanto o segundo busca constantemente quebrar a pose de naturalidade das suas imagens de arquivo por meio da inserção dos áudios da equipe ajeitando seus atores sociais.

Os ensaios postos na mostra também flertam com o documentário, sob uma perspectiva de retomada nostálgica àquilo que nos foi privado com a quarentena. “Insular” (Victor Capilé e Marianna Quintanilha), “Bloco do Isolamento” (Daniel Barros), “Não Se Pode Abraçar a Memória” (Pedro Tavares) e “Transe Tropical” (João Ricardo Paulino)buscam nesse flerte com o cinema de Jonas Mekas e Chris Marker uma forma de construir uma experiência de conforto por meio da crise de saudade. Porém, o resultado é a evidência do impacto da forma de conteúdo para o Instagram no cinema. Todos esses curtas, alguns mais experimentais que outros, parecem se encaixar perfeitamente aos perfis pessoais da rede social. Ainda mais que nos meados de agosto e setembro do ano de 2021, tornou-se rotineiro a manifestação de relatos com imagens sobre a pandemia nas timelines. É o uso do filtro de filme fotográfico, remetendo ao embrião do maior aplicativo do mundo. A busca por pequenos clipes e memórias de pequenos momentos muito exaltados nesses vídeos para o algoritmo. O foco em experiências curtas e sem grandes articulações, além de um aspecto lo-fi de fundo de tela.

E por último, mas não menos importante, o cinema de ficção apresentado na mostra possui um certo fascínio pela lógica de engrenagem. Realizadores e realizadoras que viram cineastas como Christopher Nolan e J.J Abrams ganharem louros por seus filmes obcecados em fechar pontas e apresentar lógicas concisas de forma quase algébrica tentaram replicar essa forma de cinema na mostra. “Cronotopo” (Diogo D’Melo), “Dez Conto” (Bruno Maciel) e “Profundamente Eu” (Jand Sampaio) seguem essa noção de circuito de eventos que tornam-se cíclicos de forma menos rígida que suas inspirações por um certo impacto da lógica cotidiana da retomada que interfere de forma implícita a todos esses filmes.

A herança do movimento mais produtivo, no quesito quantitativo, do nosso cinema se torna mais aparente em casos como os de “Café com Rebu” (Danny Barbosa), “Alcateia” (Carolina Castilho), “Limbo” (André Pilli) e “Ausência” (Luiz Marchetti), quetêm muito forte esse cerne de um cinema do cotidiano urbano brasileiro, que aproxima as lentes de uma classe média ou C de um protagonismo não tão mais inédito. O problema acaba sendo os vícios dessa que os inspirou, os filmes parecem restritos em sua identificação para uma classe média alta dos bairros nobres da zona sul carioca, por mais que nem sejam feitos por idealizadores desses arredores. São referências e problemas, que por mais universais que sejam no cerne, parecem deslocados para aquelas pessoas que estão fora do convívio de tal bolha social.

“EXPERIMENTO = Casa Entre Vértebras – Carta 22” (Ronei Vieira) e “Um Certo Mal Estar” (Tiago Calmon) possuem um aspecto performático que remete às apresentações em ar livre que não ocorrem no momento. Corpos postos sob uma condição determinada previamente que conversa com essa erupção da tão falada saúde mental. Mas ainda há o percalço de não ser uma obra viva como a que se almeja replicar, em que quem determina quando acaba é o público, ao sair do espaço onde a performance está ocorrendo

Deve ser lembrado que não há nenhum intuito de decretar para eternidade essas características, são raros os casos de cineastas estreantes (ou em sua fase inicial) com uma voz muito própria, nos quais as inspirações já estão sob a primazia de engrandecedoras da unidade. Ainda mais sob as condições atuais, é quase inviável cobrar um cinema de grandes aspirações ou elaborações em um período em que estamos a maioria do tempo pensando se estaremos vivos no dia seguinte. Que tiremos esse experimento de nudez como uma forma de avaliarmos a forma do cinema liderado por esses idealizadores pelos próximos 30 anos. Que seja feito dessas marcas algo aprimorado, além de um “quero ser como tal”, mas, sim, uma reapropriação dessas ideias de forma que converse com um aspecto mais universal. Ou elas podem ser apagadas e substituídas com novas aspirações, com um cinema de gênero ou até mesmo experimental. Tornemos a Mostra Audiovisual [em]curtas a prerrogativa para uma reavaliação dos rumos. Para o bem ou para o mal, ela tornou as fundações desse caminho nítidas.

Referências

BAZIN, André. A ontologia da imagem fotográfica. In: BAZIN, André. O Cinema: ensaios. São Paulo: Editora Brasiliense, 1991, p. 19-26. 

BOUQUET, Stéphane. Plan contre flux. In: Cahiers du Cinéma, Paris, n. 566, março de 2002, p. 46-47.

CUNHA, Emiliano Fischer. Cinema de fluxo no Brasil: filmes que pensam o sensível. 2014. 171 f. Dissertação (Mestrado em Comunicação Social) - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2014. Disponível em: https://tede2.pucrs.br/tede2/handle/tede/4564. Acesso em: 24 abr. 2024.

DELEUZE, Gilles. A Imagem-tempo: cinema 2. São Paulo: Brasiliense, 2007.

ELEPHANT; Direção: Gus Van Sant. Produção: HBO. EUA, 2003 (81min).

FRANCES Ha; Direção: Noah Baumbach. Produção: IFC Films. EUA, New York, 2012 (85min).

HISTÓRIA DE um casamento; Direção: Noah Baumbach. Produção: David Heyman; Noah Baumbach. Heyday Films; Netflix. EUA, 2019 (136min).

JOYARD, Olivier. C’est quoi ce plan? In: Cahiers du Cinéma, Paris, n. 580, junho de 2003, p. 26-27.

LALANNE, Jean-Marc. C’est quoi ce plan? In: Cahiers du Cinéma, Paris, n. 569, junho de 2002, p.26-27.

LOURENÇO, K. G. Um estudo-mergulho das produções audiovisuais exibidas na IIª Mostra [em]curtas: a manifestação do cinema de fluxo na produção independente brasileira. Revista Inter-Ação, Goiânia, v. 48, n. 3, p. 710–726, 2023. DOI: 10.5216/ia.v48i3.75810. Disponível em: https://revistas.ufg.br/interacao/article/view/75810. Acesso em: 24 abr. 2024.

[1] Mestre e Doutorando em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Uberlândia (UFU)/(PPGED/FACED), licenciado em Ciências Biológicas (UFU) e em Pedagogia (IBRA). Diretor da Mostra Audiovisual [em]curtas. Bolsista CAPES. E-mail: [email protected].

[2] Graduada em Tradução e Intérprete na Universidade Nove de Julho (Uninove) – SP. Coordenadora da Comissão de Textos e Narrativas da Mostra Audiovisual [em]curtas. E-mail: [email protected].

[3] Mestrando em Audiovisual e Multimédias na Universidade do Minho – Portugal, Graduado em Comunicação Social – Cinema, pela Universidade Estácio de Sá – RJ. Coordenador da Comissão de Textos e Narrativas da Mostra Audiovisual [em]curtas. E-mail: [email protected].

[4] Mumblecore é o nome de um subgênero de cinema, geralmente alternativo que é caracterizado pela atuação naturalística, contendo diálogos compostos em sua maioria de improvisos, produção de baixíssimo custo, com ênfase no diálogo em vez da trama focado nas relações pessoais. Veja mais sobre em: https://www.falaobjetiva.com/post/2017/03/22/voc%C3%AA-conhece-o-cinema-mumblecore

[5] Você pode acessar o canal do Youtube da Mostra pelo link: https://www.youtube.com/channel/UCntET3QadjDFLLr4RZ1KzJA

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