Cor e cinematografia

Lacucaracha1959

Por Carlos Ebert

Mais do que tratar da evolução histórica dos processos de cinematografia a cores, este texto se propõe a investigar alguns paradigmas – declarados ou subjacentes, que referenciam a utilização da cor no cinema.

Ao longo da história das artes visuais encontramos inúmeras análises dos “sistemas de cores” utilizados por escolas, movimentos e por artistas. Mas recentemente, as descobertas relativas aos mecanismos da visão e ao processamento neural da informa��o visual, aumentaram a compreensão não apenas de como a cor é percebida e compreendida numa imagem, mas do relacionamento que cada cor estabelece com as outras presentes em seu entorno.

Antes de tratar da utilização da cor na cinematografia, faremos um resumo das propriedades das cores , das principais características da fisiologia da visão e dos mecanismos da percepção.

A Percepção da Cor

Para nosso propósito aqui, definiremos luz como a porção (1/70) do espectro eletromagnético cuja radiação ( comprimentos de onda entre 4 mil e 8 mil angstrons), impressiona os dois tipos de células foto receptoras existentes no olho; cones e bastonetes.

A sensação de cor que experimentamos está associada apenas aos cones. Os bastonetes, embora mais numerosos e mais sensíveis à luz, não possuem sensibilidade cromátca, fato registrado no dito popular ” À noite, todos os gatos são pardos”. Os cones estão todos situados na parte central da retina chamada fóvea (aprox 1 mm de diametro), onde se concentra a visão de alta definição e cromática.

A visão humana é tricromática (teoria de Young-Helmholtz). Ou seja: com apenas três tipos de cones – sensíveis ao vermelho, verde e azul, podemos distinguir um numero quase infinito de cores. A quantidade de cada um dos três tipos de cones na retina não igual.

Os cones sensíveis ao azul representam apenas 5% do total . Embora produzam imagens com baixa definição, os cones azuis raramente apresentam deficiências , comuns nos outros dois tipos sensíveis ao vermelho e ao verde (Daltonismo. Incidente em 8% da população. Raro nas mulheres).

O mecanismo de visão à cores se dá por oposição das cores por pares mutuamente excludentes (teoria de Hering). Vermelho x Verde e Azul x Amarelo (que decorre da soma do vermelho com o verde). Um terceiro tipo de oposiçaõ – branco x preto, dá conta da percepção do brilho ou da intensidade da luz.

Este mecanismo antes de ser comprovado fisilogicamente já havia sido associado ao fenômeno das imagens coloridas persistentes, que consiste no aparecimento – quando desviamos o olhar, da cor complementar àquela que estivemos olhando fixamente por algum tempo.

Quando se trata de luz, a soma das três cores primária dá o branco. A cor formada por duas cores primárias é a complementar da cor que ficou fora do par. Assim temos Primárias: Vermelho, Verde e Azul. Secundárias: Ciano (Verde + Azul), Magenta (Vermelho + Azul) e Amarelo (Vermelho + Verde)

Nem todas as cores focalizam no mesmo plano na retina. O vermelho focaliza um pouco á frente do verde e do azul. Testes mostram que em objetos formalmente idênticos mas de cores diferentes, o de cor vermelha é percebido como mais próximo do que o verde e o azul.

Corecineilus 1

Se com relação às luzes vale o sistema de cores aditivo, com relaçãoo aos pigmentos existentes nas superfícies (gráfica, filmes fotográficos etc) o sistema de cores considerado é o subtrativo. A cor de um objeto é determinada pela absorção de uma parte do espectro e pela reflexão de outra.

Assim, um objeto é vermelho porque os pigmentos de sua superfície absorvem as luzes verdes e azuis e refletem somente a vermelha. No sistema subtrativo a soma de todas as cores é o preto.

No sistema aditivo, qualquer cor pode ser definida com três parametros: Matiz, Saturação e Brilho. Dentre as muitas representações do espaço de cor, a mais utilizada é a da CIE.

Corecineilus 2

Um fenômeno determinante que ocorre na visão à cores é a constância de cor. Ela faz com que as cores dos objetos permaneçam relativamente iguais a despeito das mudançass na composção da luz que os iluminam.

Assim um objeto branco, iluminado por luz branca estimulará mais ou menos por igual os três tipos de cones receptores. Se a luz for trocada para vermelho, após uma fração de tempo o estimulo maior nos cones do vermelho provocam uma diminuiçaõ proporcional na sua sensibilidade e o objeto volta a ser percebido como branco.

A curva representativa da sensibilidade cromática dos cones pode ser vista abaixo.

Corecineilus 3

O entorno em que se observa uma cor tem influencia na sensaçaõ cromática e de luminância que experimentamos. Alguns princípios regem essas interações:

Contraste de cor: Olhar para duas tiras com o mesmo brilho (luminância) mais de cores diferentes, resulta numa alteração das cores.

Alguns exemplos:

Vermelho ao lado de cinza = esverdeia o cinza
Verde ao lado de cinza = avermelha o cinza
Vermelho ao lado de amarelo = everdeia o amarelo e magenteia o vermelho.
Vermelho ao lado de verde = aumenta a saturação dos dois.

O contraste de cor atinge o máximo quando a luminância (brilho) das duas cores é igual.
O contraste de luminância inibe o contraste de cor.

Contraste de tonalidade: Olhar para duas tiras com brilhos diferentes (luminâncias) mas da mesma cor, resulta numa mudança de saturação da cor nas duas tiras.

A mais clara fica ainda mais clara (diminui a saturação) e a mais escura escurece ainda mais (aumenta a saturação).

Estas duas propriedades da visão à cores foram exploradas à exaustão pela pintura, e posteriormente pela fotografia e pelo cinema. Entretanto a superposição do contraste de luminância com o contraste cromático normalmente não resulta numa imagem esteticamente agradável (a não ser quem sabe, nos filmes de Carmem Miranda …).

Assim o que se observa é a predominância de um destes dois efeitos. Na pintura , Rembrandt, De La Tour e Caravaggio exploram o contraste de luminância para conseguir efeitos dramáticos, ao mesmo tempo que limitam sua paleta a um conjunto de cores de uma mesma família. Por outro lado, Matisse e Gauguin exploraram ao máximo o contraste cromático sem utilizarem do contraste de luminância.

A Cor no Cinema

Colorizados e coloridos

A cor esteve presente no cinema desde suas origens. Os primeiros processos consistiam em colorir à mão – um a um, os fotogramas no positivo preto e branco. Os filmes realizados desta forma são chamados de “colorizados”, em contraposção aos “coloridos”, onde as cores são captadas pelo processo fotográfico.

Edison experimentou colorizar seus filmes, mas logo abandonou o processo por este utilizar muita mão de obra e render pouco.

Ainda no início do século passado a Pathé francesa colorizava os filmes com a aplicação manual no negativo, quadro a quadro, de stencils coloridos que dotavam as cópias de áreas coloridas. Todos os processos de colorização tinham em comum o fato de serem artesanais, lentos e muito dispendiosos, além de apresentarem cores inteiramente artificiais.

Kinemacolor, Chronochrome, UFAcolor, Prizma, Multicolor, Magnicolor, Cinecolor, Sennett Color. Muitos foram os processos de cinematografia a cores patenteados na Europa e nos EUA. As tentativas mais bem sucedidas de registrar a cor natural durante a fotografia do filme foram desenvolvidas a partir de 1915 nos EUA pela Technicolor (1).

Primeiramente registrando apenas o verde e o vermelho em duas películas preto e branco pancromáticas , para depois copia-las num processo de transferência de pigmentos (dye transfer), estes primeiros processos também não conseguiam reproduzir com exatidão as cores naturais. Embora a pele tivesse uma reprodução cromática satisfatória, o céu e o mar eram reproduzidos em tons de cinza ao invés de azul.

O Technicolor Tripack

Quando da introdução nos anos 30 do primeiro processo realmente industrial de cor no cinema, o Technicolor de três películas, já existia um receio declarado por parte dos produtores de que a cor fosse roubar a atenção dos espectadores do enredo e da interpretação dos atores.

Para afastar esta suspeita e demonstrar que a cor poderia ser integrada como um elemento narrativo a mais no filme, a empresa investiu numa consultoria de cores (comandada por Nathalie Kalmus, mulher do inventor do processo Herbert Kalmus), que se encarregava de estabelecer uma paleta de cores para cada roteiro. Os diretores de fotografia eram indicados e chancelados pela Technicolor e a supervisão da cenografia, guarda roupa e maquiagem eram estritos no que dizia respeito as cores.

La Cucaracha. Primeiro filme feito em Technicolor de 3 películas

Corecineilus 4

Num artigo publicado em 1935 na revista da SMPTE intitulado “Consciência da Cor” Kalmus – que atuou como consultora de cor em mais de 300 filmes, definiu as regras básicas do uso da cor que iriam determinar a estética hollywoodiana pelas próximas três décadas.

Em linhas gerais, estes eram os canones da cor segundo a consultoria da Technicolor: As cores foram classificadas segundo seu poder de evocar sentimentos e estabelecer climas. Assim, as cores quentes (vermelhos, alaranjados e amarelos) “despertam sensações de excitação, atividade e calor” enquanto do outro lado do espectro, as cores frias (verdes, azuis e roxos) evocavam ” repouso, tranquilidade e frieza”.

Até ai, o esquema não apresentava nenhuma novidade com relação a tudo o que se sabia sobre o uso da cor nas artes visuais. Algumas das disputas entre pintores de várias escolas diziam respeito justamente à aceitação ou à ruptura destas regras. Joshua Reynolds no séc XVIII, afirmava que os personagens centrais de uma pintura deveriam estar vestidos com cores quentes para se destacarem do fundo e ficarem mais próximos do observador. Seu contemporâneo Gainsborough pintou o conhecidíssimo “Menino Azul” , justamente para mostrar ao seu rival que a regra era irrelevante e podia ser quebrada.

Reynolds x Gainsborough

Corecineilus 5

A segunda “regra prática” definida por Kalmus sustentava que o uso excessivo de cores puras e saturadas deveria ser evitado e substituído por uma paleta mais “natural” e suave: “Uma superabundância de cores não é natural e tem um efeito desagradável não apenas para os olhos, mas também sobre a mente”. Recomendava ” Um uso judicioso dos tons neutros como fundo para emprestar força e interesse aos toques de cor na cena”.

O que talvez não tenha sido considerado neste julgamento, é que pelo fato do Technicolor de então ser balanceado para a luz do dia e ter baixa sensibilidade (8 asa), era usada muita luz, quase toda ela vinda de arcos voltaicos providos de lentes fresnel, o que resultava em imagens bem contrastadas.

Esse contraste de valores de luminância acentuava o contraste cromático, fazendo com que as cores apresentassem mais saturação, principalmente os tons puros das primárias e secundárias.

A terceira regra dizia que o emprego das cores vivas e quentes deveria se dar exclusivamente para enfatizar elementos importantes para a narrativa, devendo o fundo permanecer em tons neutros (castanhos, cinzas etc.) As cores mais saturadas e os contrastes cromáticos mais acentuados deveriam estar sempre associados aos personagens principais da trama enquanto os secundários e a figuração deveriam misturar-se mais às cores neutras do cenário.

A última regra dizia respeito a justaposição de elementos coloridos que pudesse ocorrer em função da movimentação da camera e dos atores. Aí deveriam ser evitadas justaposiçõess que gerassem contraste cromáticos acentuados, que pudessem distrair a atenção do espectador.

Fica evidente que a consultoria de cores feita na época pela Technicolor, era mais no sentido de restringir o uso da cor, submetendo-as à normas e regras, do que incentivar a pesquisa ou a criatividade em seu uso. Alguns cineastas conseguiram subverter ao menos parcialmente essas regras.

Os musicais de Minelli fotografados por George Folsey e Charles Rosher e as aventuras de John Huston fotografadas por Oswald Morris , são exemplos de ruptura dos limites impostos pela “consultoria de cor”, e que apresentaram resultados surpreendentes e inovadores.

A propósito de Moulin Rouge, a biografia do pintor Toulouse Lautrec rodada em 1953, Ossie Morris declarou: ” Moulin Rouge quebrou todas a s regras estabelecidas nos livros.

Usamos filtros de difusïão muito forte em frente das objetivas, como nunca fora feito anteriormente, e também filmamos todos os sets com muita fumaça, de forma que os atores estavam sempre bem destacados do fundo.

Costumavamos colorir a fumaça com contra luzes com as cores que Lautrec usava em seus quadros” (5). Na Europa, nesta mesma época, Claude Renoir fazia Le Carrose d’ Or, dirigido por seu tio Jean Renoir, utilizando de forma expressiva uma paleta quente onde predominavam vermelhos, castanhos e dourados, numa aproximação com as cores de Rembrandt, La Tour e Caravaggio.

Num filme subsequente, Le Dèjeneur sur l’ Herbe (1959), a dupla recriou as cores e a difusão da luz do impressionismo onde o avô de Claude e pai de Jean – o pintor Auguste Renoir, era o mestre definitivo.

Entretanto foi apenas a partir do início dos anos 40 com o Agfacolor e depois em 1952 com o Eastmancolor, que o processo monopack -onde as três emulsões sensíveis às cores primárias estão juntas num mesmo suporte, que o uso da cor ganhou em liberdade e expressividade.

O Uso Expressivo da Cor no Cinema

O uso da cor no cinema nunca foi uma unanimidade. Importantes cineastas se posicionaram contra a cor e a favor do monocromático (preto e branco). Em entrevista concedida em 1966, Andrei Tarkovsky declarava: “No momento eu creio que o filme colorido não é nada mais do que um truque comercial.

Não conheço nenhum filme que tenha usado bem a cor. Em qualquer filme colorido, a sensação da cor se sobrepõe à percepção dos eventos. Na vida real nos raramente prestamos atenção à cor.

Quando observamos alguma coisa acontecendo não nos damos conta da cor. O filme branco e preto cria imediatamente a impressão que a sua atenção está concentrada no que é mais importante.

Na tela a cor se impõe por sí mesma ao espectador enquanto na vida real isso acontece apenas em alguns momentos especiais logo não está certo que o publico fique o tempo inteiro consciente das cores.” Mais tarde, Tarkovsky acabou por aderiu a cor, mas sempre fazendo uso com extremo rigor de paletas cuidadosamente estudadas.

O Sacrifício: Preto e Branco à cores

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Á margem da ditadura hollywoodiana do Technicolor, os cineastas europeus começaramam na década de 60 a experimentar com a cor. Antonioni em 1964 com o Deserto Vermelho e Felini com Julieta dos Espíritos em 1965 , dão as primeiras indicações de como a cor poderia ser utilizada como elemento narrativo, com a mesma importância que o contraste fotográfico, a direção de arte, a trilha sonora etc.

O Deserto Vermelho: Pintando a paisagem

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O Deserto Vermelho realiza uma intervenção nas cores naturais presentes na paisagem num grau nunca antes experimentado. Áreas inteiras em exterior, inclusive a vegetação, foram pintadas para que a fotografia de Carlo Di Palma pudesse mostrar um ambiente industrial desolado, uma natureza morta de onde as cores “naturais” foram expulsas.

Mesmo a “feerie colorida” dos musicais hollywoodianos, teve uma interessante releitura feita por Jacques Demy em “Os Guarda-chuvas do Amor” (Les Parapluis de Cherbourg) de 1964. Embora tivesse a mesma explosão de cores dos filmes de Minelli, Demy trabalhava com contrastes cromáticos muito ousados e também em algumas seqüencias, com a ausência deles.

Notam-se no filme justaposições de cores inusitadas no guarda roupa e nos cenários , decorrentes do fato da criação não estar sujeita à orientação de um “manual de uso das cores”.

Numa preocupação inédita com a conservação das cores do filme no futuro, o próprio Demy mandou fazer na época do lançamento, uma separação de cores em matrizes preto e branco, que permitiu uma restauração perfeita do filme ( iniciada pouco antes de sua morte em 1990, e concluída em 94 por sua viúva, a também cineasta Agnes Varda.) Demy deu seqüencia a seus estudos cromáticos em Les Demoiselles de Rochefort, 1967 e Varda fez uma interessante incursão no uso expressivo das cores em Le Bonheur, 1965.

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