Elas por trás das câmeras: a presença feminina no set de filmagem

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Equipe do curta “Sweet Heart” (2017)

Por Danielle de Noronha

O set de filmagem é um ambiente complexo. Normalmente, requer a convivência de um grande número de pessoas, que ocupa diferentes funções, em um pequeno espaço por um longo período. No geral, a diária dura cerca de 12 horas e se estivermos falando da produção de um longa-metragem ou uma série de TV, devemos multiplicar essas horas por seis dias na semana, que se repetem por alguns meses, dependendo do projeto.

Para além dos espaços, cenários, equipamentos e demais objetos, o set é formado principalmente por pessoas, que estão juntas numa mesma equipe para narrar uma história. Como qualquer ambiente formado por pessoas, o bom (ou mau) desenvolvimento do set depende principalmente delas, que irão determinar como serão construídas as relações e o trabalho propriamente dito.

Como lembra a diretora de fotografia e professora Taís Nardi (“Suspeito”, “Xavier”), “no set de filmagem existe tudo o que existe fora, na sociedade. E talvez de forma mais intensa. As diárias são intensas, as relações pessoais são intensas e, principalmente, as relações de poder são intensas. E tudo isso favorece que o machismo, o racismo e outros problemas apareçam de forma intensa também”.

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Taís Nardi ministrando curso de direção de fotografia

Nesta terceira reportagem da série sobre mulheres no audiovisual buscamos visibilizar algumas questões específicas do set de filmagem, complementando os temas apresentados na primeira e na segunda matérias, para ajudar na construção de ambientes de trabalho mais diversos e respeitosos, além de mostrar casos de mulheres que estão exercendo funções que são social e culturalmente compreendidas como “trabalhos de homem”.

Tecnologia, visibilidade e diversidade: um set mais plural?

Ao refletir sobre as mudanças trazidas pela tecnologia na produção audiovisual é importante olhar para além das novas câmeras e novos processos de pós-produção e buscar compreender as implicações sociais e culturais que estão se desenvolvendo, tanto no que diz respeito às novas dinâmicas de trabalho e formação de profissionais como no consumo dos produtos audiovisuais. Entre as possibilidades de olhar para o tema, podemos pensar como as novas redes e tecnologias estão permitindo visibilizar – e debater – assuntos que antes não eram discutidos, o que pode ajudar a ampliar a pluralidade de profissionais que atuam no cinema.

A questão da falta de diversidade de gênero e raça no universo do audiovisual não é novidade, entretanto, atualmente, o tema passou a ser cada vez mais discutido em diferentes espaços, como na imprensa, academia, redes sociais e também entre alguns, e principalmente algumas, agentes envolvid@s na produção audiovisual. Além disso, a internet possibilitou o desenvolvimento de diversas iniciativas que visam fomentar o debate e a maior inserção de diferentes profissionais em todos os âmbitos da produção, como alguns exemplos apontados nas outras reportagens da série (DAFBColetivo VermelhaMulheres Negras do Audiovisual, Coletivo Teta, Hysteria, entre outros). Porém, estamos no início desse processo de conscientização e mudança, em que ainda é preciso fazer muita coisa na prática.

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Recentemente, a Cinemateca Brasileira apresentou a mostra Mulheres, Câmeras e Telas, que além de exibir mais de 40 filmes dirigidos e/ou fotografados por mulheres, ainda contou, em parceria com o DAFB (Coletivo das Diretoras de Fotografia do Brasil), com rodas de conversa, uma master class com a diretora de fotografia Heloisa Passos, ABC, além de cursos voltados à profissionalização de mulheres, que podem ser assistidos no Facebook do coletivo.

Neste cenário, a Ancine (Agência Nacional do Cinema) também começou a fomentar análises e outros projetos específicos sobre o tema. O último estudo divulgado pelo órgão, em janeiro deste ano, relativo aos 142 filmes exibidos comercialmente em 2016, aponta que o “mercado cinematográfico brasileiro é uma indústria protagonizada por homens brancos”. Segundo a publicação, 75,4% dos filmes foram dirigidos por brancos, 19,7% por mulheres brancas, enquanto apenas 2,1% foram dirigidos por homens negros, e nenhum filme foi dirigido ou roteirizado por uma mulher negra.

A análise apontou ainda que os homens dominam também as funções de direção de fotografia (85%) e direção de arte (59%) e que as posições só se invertem nas funções de produção. As mulheres assinaram sozinhas a fotografia e a arte de apenas 11 e 8 filmes lançados em 2016, respectivamente. Além disso, o estudo mostra outras questões que merecem atenção e demonstram diferentes problemas enfrentados pela (falta de pluralidade da) produção audiovisual brasileira, como o fato de nenhum filme ter sido produzido na região norte do país, não haver nenhum indígena entre os perfis dos profissionais analisados ou que apenas seis filmes passaram da marca de um milhão de espectadores.

Mulheres na chefia: a fotografia e a arte

Quando a operadora de câmera e diretora de fotografia Silvia Gangemi (“Amor.com”, “Vestido pra casar”) começou a atuar no cinema, no final da década de 1990, a presença feminina no audiovisual era muito menor do que encontramos hoje. E, talvez, o processo de aprendizado e formação dentro do set muito mais hierarquizado e longo. “Eu me formei em designer gráfico na PUC, depois trabalhei com artes plásticas. Morei em Londres, estudei pintura e comecei a estudar fotografia, quando eu fui para a África, onde passei noves meses fazendo um trabalho de fotografia na embaixada brasileira. O embaixador, que já tinha feito um longa, falou que eu ia me dar bem no cinema. Isso foi em 1996. Quando eu voltei ao Brasil eu vim com essa ideia na cabeça, de trabalhar com cinema”, relembra.

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A diretora de fotografia e operadora de câmera Silvia Gangemi

Silvia não tinha nenhum contato na área. Começou a procurar “de porta em porta” até que conheceu o diretor de fotografia Jacques Cheuiche, ABC, que a ajudou a começar sua carreira no audiovisual. Trabalhou como videoassist, foi logger, segunda assistente, primeira assistente, função que exerceu por 18 anos, e hoje atua principalmente como operadora de câmera, mas também já assinou alguns trabalhos, como séries de TV e publicidades, como diretora de fotografia. “Por exemplo, nesta série que eu estou agora, ‘Além da Ilha’, quando dividem a equipe em duas eu fotografo a segunda unidade”, explica.

Já quando Taís Nardi fez seu primeiro longa, em 2007, a presença feminina era maior e, talvez, o processo para que os profissionais começassem a ocupar posições de chefia se tornou um pouco mais rápido, seja por novos métodos de aprendizado devido às novas tecnologias, seja pelo aumento de demanda por profissionais. “Resolvi fazer cinema e já entrei no curso da USP querendo fazer direção de fotografia e lidar com as imagens, com luz. Minha professora de direção de fotografia era a Kátia Coelho, ABC e algumas colegas dos anos anteriores já eram assistentes de câmera no mercado, então entrei nos sets já convidada por mulheres do meio. Meu primeiro trabalho fora da universidade foi ainda no terceiro ano, estagiária de câmera, no longa ‘Não por acaso’, de Philippe Barcinski, com duas assistentes de câmera mulheres como chefes. Ou seja, entrei cercada de mulheres”.

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Taís no set do curta “Bá” (2015)

Taís atua apenas como diretora de fotografia desde 2015, quando decidiu parar de fazer assistências de câmera. Além disso, também ministra cursos na Bucareste Ateliê de Cinema, onde coordena o curso de direção de fotografia. “Como eu fiz faculdade de cinema, já tive oportunidades de fotografar curtas-metragens ao longo do curso. Depois, mantive uma produção relativamente constante de curtas dirigidos por ex-colegas de turma, novos colegas de sets, enquanto seguia minha carreira de assistência de câmera. Há três anos decidi parar de fazer assistência de câmera e me dedicar à direção de fotografia e à produtora da qual sou sócia. Comecei então a trabalhar na captação e na produção de filmes, que depois fotografei”.

Entretanto, Silvia e Taís ainda são exceções. Por mais que já existam mais mulheres atuando em diferentes funções relacionadas ao audiovisual, o número ainda é reduzido quando olhamos para os cargos de chefia. Para Silvia, muitas vezes o machismo no set é percebido na sutileza desse olhar para a exceção. “É um olhar das pessoas. ‘Uma mulher fazendo isso?’ ‘Essa função?’ ‘Será que ela consegue?’ Eu acho que é uma falta de hábito dos homens de ver uma mulher num cargo desses. Eu acho que, aos poucos, crescendo o número de mulheres fotografando, operando câmera, isso vai se normalizar. Por exemplo, aqui no Rio tem muita mulher assistente de câmera, eu diria de igual pra igual. Então, hoje em dia não se descrimina mais a mulher como assistente de câmera, já é muito comum. A equipe que eu estou nesse trabalho, as duas foquistas são mulheres, a segunda assistente também é mulher, e o set corre muito bem”, comenta. Vale mencionar que ainda é comum ver mais mulheres atuando como assistentes do que como fotógrafas, muitas vezes, pela falta de convites para assinar a fotografia. Como bem lembrou a professora e diretora de fotografia Nina Tedesco, “a profissional tem que ser chamada para os trabalhos”.

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Silvia Gangemi durante a Olimpíada Rio 2016

Além disso, para Taís, a equipe de fotografia é um lugar que sofre uma dificuldade extra, quando comparada a outras equipes, devido ao peso dos equipamentos. “Quando comecei eu me matava para carregar umas coisas pesadíssimas, mesmo se tivesse alguém para me ajudar, para provar que eu podia ser assistente de câmera, como se isso fosse o importante do trabalho. Com o passar do tempo percebi que isso era bobagem, que equipe é uma palavra que denota um coletivo, que um pode ajudar o outro. E se precisar, a gente carrega, né? Inclusive o do amiguinho para ajudar ele no aperto. Mas acho que isso ainda rola muito, em equipes não legais. Essa ideia de que mulher vai ter mais dificuldade de carregar a câmera, de fazer câmera na mão, sei lá, e aí você vê um monte de making of com os homens usando easyrig de boa”.

No caso do departamento de arte a presença da mulher é muito maior, por mais que em 2016, por exemplo, as mulheres tenham assinado sozinhas apenas oito longas e 44 foram em coautoria com homens. “Tirando a geração mais antiga do Clóvis Bueno e do Adrian Cooper, ABC hoje tem mesmo mais mulheres na direção da arte e também nas funções de assistência. Por exemplo, eu dou aula há muitos anos na AIC (Academia Internacional de Cinema), que é um curso mais prático, e sempre tem muito mais mulher no curso de arte, e já no curso de foto, que eu dou aula também, tem muito mais homens”, conta a diretora de arte Monica Pallazo (“Cores”, “Nossa vida não cabe num opala”).

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Monica Palazzo e Aly Muritiba -“Para minha amada morta” (2016)

A experiência de Monica é muito particular, ela fez poucas assistências e praticamente já iniciou sua carreira atuando como diretora de arte. “Quando em vim para São Paulo, e comecei a trabalhar com audiovisual, percebi que havia muitas vezes que eu não era levada muito a sério, eu trabalhei com muita gente mais velha, muito fotógrafo mais velho, diretor mais velho, e quando eu percebia que eles não me levavam muito a sério eu sempre associava que era porque eu era jovem. Nunca associei ao fato de que era por eu ser mulher. E anos depois eu falei, será que não era?”, questiona.

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Monica no filme “Rio Cigano” (2013). Foto: Gui Mohallem

Para a diretora de arte, “o que acontece é que o pensamento machista está muito enraizado. E as vezes tem uma pessoa que você considera que solta um comentário, e é isso, as vezes a própria mulher, é uma realidade corrente de anos, séculos”. Porém, Monica acredita que grande parte das pessoas que trabalha com a arte é mais sensível a algumas questões. “A arte lida desde os armarinhos até a construção civil, a gente lida com muitos materiais, desde os mais delicados até os mais pesados, com muitos tipos de pessoas, e todo mundo da equipe tem que lidar com muitas pessoas, num mesmo dia da direção de arte. Eu sinto, nesse sentido, que a equipe de arte é mais humanista”, pondera. “Outro exemplo que eu vou te dar, eu gosto muito de fazer filmes no interior de São Paulo, e você vai precisar do pedreiro, do mecânico, do serralheiro, que normalmente são homens, no interior. Eu chego do meu jeito, e trato o cara de igual pra igual, porque ele vai fazer alguma coisa que eu preciso e eu não sei fazer, então eu dependo daquele profissional”, diz. Ainda, para Monica, a equipe é um pouco reflexo de quem está na liderança, inclusive quando se trata das questões relacionadas ao machismo, ao desenvolvimento dos trabalhos e andamento do set.

Um set cada vez mais respeitoso!

Ao pensar nos machismos existentes dentro do set de filmagem é possível citar diversos exemplos em que alguns comportamentos desrespeitosos estão relacionados diretamente com a diferença entre os gêneros, que muitas vezes eram silenciados ou não “percebidos” como opressões e violências, por estarem muito enraizados e naturalizados nos imaginários. Porém, o atual debate sobre o tema, além de fazer com que várias mulheres (e também alguns homens) reflitam (e falem) sobre suas experiências, também está possibilitando que mudanças ocorram na prática.

No Brasil, é possível citar o exemplo do ator José Mayer, acusado de assédio pela figurinista Su Tonani, durante a gravação de uma novela da Rede Globo. Mais recentemente, dezenas de mulheres e alguns homens começaram a acusar, de todo tipo de assédio sexual, diversos nomes de Hollywood, a partir da denúncia da atriz Annabella Sciorra ao produtor Harvey Weinstein, que já conta com mais de 100 acusações contra ele. E, desde então, a lista de homens sendo denunciados não para de crescer. Esses casos, além de apontar para questões individuais, denunciam um problema social muito complexo, que para ser resolvido precisa de muito diálogo e, no dia a dia, da reflexão de homens e mulheres sobre seus limites e suas atitudes.

Taís conta que como entrou no cinema com uma professora de cinematografia mulher e, desde o início, trabalhou com mulheres na equipe de câmera, ela demorou para perceber os problemas envolvidos com o gênero no cinema: “Me sentia sempre bem recolhida, mérito das equipes legais com que trabalhei por muito tempo. As coisas incômodas que aconteciam eu acreditava ser questões pessoais, porque tal pessoa não gostava de mim ou porque eu era inexperiente, e não por ser mulher. Foi só há pouco tempo que voltei a refletir sobre elas e entendi que era algo maior. Nunca que um assistente de maquinária ia virar para um assistente de câmera homem e dizer: ‘Não fala comigo, não me pede nada, que eu não gosto de você’. Sério? Esse cara não diria isso para um homem. Tanto que eu reclamei para um homem, que falou com ele, e ele veio “pianinho” pedir desculpa. Porque homem ele respeitava. Enfim, revendo várias situações que me deixaram desconfortáveis percebi que nem tudo era porque eu estava começando…”.

Também, além do olhar para a exceção, falado anteriormente por Silvia, existe o olhar sexualizado para a mulher, e as insistentes investidas quando o ‘não’ já está bem claro, que muitos ainda persistem em chamar de “elogio” ou “brincadeira”. “O que eu percebo é quando a mulher anda de shortinho curto no set. Eu ando de shortinho e não estou nem aí”, fala Monica, até porque não é a mulher que deve mudar a sua roupa, mas o homem que precisa alterar a sua atitude.

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Tarsila Araújo no set do curta “Nossa carne de carnaval” (2017)

Outro exemplo pode ser ilustrado pela assistente de direção Tarsila Araújo (“Era o Hotel Cambrigde”, “Zé do Caixão”). Ela conta que começou a atuar no cinema há 10 anos e que gosta muito de trabalhar como assistente de direção, por mais que tenha pretensão de começar a dirigir, inclusive já tendo realizado alguns projetos. “Quando eu comecei a fazer filmes e séries como 1ª assistente de direção eu era muito nova, tinha 24 anos. Era difícil levar o set de filmagem sendo tão nova e mulher. E digo que o machismo não existe apenas entre os homens, tem muita mulher machista também. E no set tem sempre um ar sexual que as vezes cansa, por sorte tenho feito filmes que a equipe é mais tranquila e os homens mais respeitosos, mas sei de muito set que o assédio é direto. Eu já peguei um set que o meu chefe dava em cima de mim e depois de eu dizer não ele passou a me oprimir no trabalho”, conta.

Tarsila, que recentemente se tornou mãe de Alice, ainda pode falar de outra questão que envolve a relação entre mulher e set de filmagem, tema que também foi citado por Maritza Caneca, ABC na segunda reportagem da série: a maternidade. Toda mulher mãe, que trabalha fora de casa, precisa de alguma forma lidar com essa questão, que geralmente aparece de modos diferentes na vida de homens e mulheres. Entretanto, as horas de trabalho que são gastas diariamente pelos profissionais do audiovisual podem dificultar ainda mais a questão da relação entre maternidade e profissão. “Eu trabalhei grávida até os oito meses. No pós-parto, fiquei até os oito meses com a minha filha em casa, por opção mesmo. Quando voltei a trabalhar foi diferente entender eu mãe e assistente de direção. Alguns trabalhos que eu fiz tive um pouco de dificuldade em conciliar, porque a Alice era muito pequena. Mas hoje já está tudo certo”, relata.

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Tarsila no set de “Felicidade” (2009)

Assim, vale pensar também: como transformar o set num ambiente mais acolhedor para as mães (e pais) e seus bebês? Para Tarsila, “eu acho que não só para as pessoas que são mães, mas os sets tinham que ser menores. Set 5×2 é saudável e com certeza a equipe trabalha muito melhor. E deveria diminuir as horas trabalhadas, o ideal seriam 10h de set com a desprodução. Mas ainda temos muito a progredir nas questões trabalhistas. Sobre ser mãe, acho que se diminuísse o set com certeza ajudaria muito, pois seria mais tempo que eu passaria com a minha filha. Acho que essa é sempre a maior preocupação”, finaliza.

Vai ter mulher na elétrica (e em vários outros departamentos), sim!

Se hoje estamos “comemorando” a maior presença de mulheres nos departamentos de arte e, principalmente, de fotografia, ainda há muitas equipes em que a presença da mulher é praticamente inexistente, como é o caso da elétrica e maquinária. E a presença de mulheres em equipes que normalmente não contavam com nenhuma pode causar alguns estranhamentos, mas também pode ajudar a abrir diversas portas.

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Rosiani Evangelista quando ainda atuava na equipe de maquinária

Rosiani Evangelista (“O Diabo mora aqui”, “O homem da sua vida”), a Rosi, pode ser mesmo considerada a exceção. Já atuou como assistente de maquinária de Carlos Fidelis, por quase dois anos, e já faz quatro que atua em equipes de elétrica, trabalhando principalmente com publicidades. Rosi conta que fez um curso no Senai de elétrica/iluminação e que conseguiu seu espaço na área através do Facebook: “Eu postei numa página de audiovisual e teve um gaffer que viu. Foi onde surgiu a primeira oportunidade na elétrica”. No curso de elétrica, Rosiani era a única mulher, bem como ainda não conheceu nenhuma atuando nas equipes de elétrica ou maquinária. “Eu já ouvi falar, mas eu não conheço”, conta (e eu conheci apenas mais uma assistente de elétrica, a Catherine Winter, acho que há mais de 15 anos, que hoje não trabalha mais na área).

Segundo Rosi, o trabalho é corrido, é pesado, não tem rotina. Para ela, a profissão ainda é tão masculina, primeiro, porque é fisicamente pesada: “Você tem que descarregar o caminhão, geralmente são bem grandes e cheios, depois montar tudo. Muitas vezes o acesso não é fácil. Muitas vezes você tem que descer cabo em prédio. É o deslocamento do equipamento mesmo, que você tem que levar de um lado para o outro”. Segundo, porque ainda existe muito preconceito. “É normal, é matar um leão por dia. É provar todos os dias”, explica.

A eletricista ainda diz que durante esses quatro anos trabalhou apenas uma vez com uma diretora de fotografia. “Sempre são homens. Eu percebo as mulheres na assistência de câmera, isso eu vejo bastante, mas fotografar mesmo sempre são homens”, voltando à questão anteriormente mencionada. Falando também sobre o olhar para a exceção, quando questionada como os diretores de fotografia lidam com uma mulher na equipe de elétrica, ela conta que primeiro eles sempre vão perguntar quem você é. “Vão perguntar pro gaffer, pro maquinista. Pra alguém ele vai perguntar. E depois ele sempre vai dar um jeitinho de chegar em você e perguntar, ‘como é que você entrou?’ E conforme você vai trabalhando, no dia a dia, mostrando o seu serviço, você mostra que é capaz como qualquer outro”, pondera.

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Rosi em uma diária de publicidade

Rosi acredita que os homens confundem muito, amizade, família e trabalho. “Se lá no cinema tem um gaffer que tem um filho ou um sobrinho ele nunca vai falar que não vai levar o menino porque ele é sobrinho, mas ele vai falar que não vai levar a Rosi porque ela é mulher. É você que é o X da questão, é você que não vai”, diz. “Eu vou achar bom quando tiver mais mulheres porque eu saio um pouco do foco. Porque chega no set todo mundo olha para você ‘nossa, tem uma menina’”, diz entre risos. “E que venham mais mulheres para somar também”, conclui.

Outras funções dentro do set também contam com poucas mulheres, como é o caso dos microfonistas. Monica lembrou de Andressa Clain que, pela correria diária do trabalho, não conseguiu me responder até o fechamento desta reportagem. Fora do set também há algumas áreas que ainda são formadas por muitos homens, como é o caso da mixagem e do foley, mas que já contam com a presença de algumas (ainda poucas) mulheres. Rosana Stefanoni (“Hoje”, “O Palhaço”) é um exemplo. “Entrei no CTR-ECA-USP em 2005, imaginando, por puro clichê, que seria diretora ou fotógrafa, mas graças a mestres muito especiais (João Godoy, Eduardo Santos Mendes, Vânia Debs, Eduardo Vicente, Cristiane Rieira, Rubens Rewald…) acabei saindo de lá habilitada em Roteiro, Montagen e Som. Minha primeira oportunidade de trabalho, em 2008, foi no Estúdio Casablanca Sound, pelas mãos de Luiz Adelmo, ABC. Fui me apaixonando pelo ofício e nunca mais larguei”, conta.

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Equipe de pós-produção de som do filme “As Aventuras do Avião Vermelho” (2014)

O foley foi sua porta de entrada no universo do som. “Esse período no foley, que durou de 2008 a 2012, foi bastante frutífero e me deu muita noção de todo o processo de finalização de som, já que tive a oportunidade de acompanhar diversos filmes do começo da edição de som até a mixagem final. Ao mesmo tempo em que fazia foley, também participava de outros projetos como editora de som, e comecei a tomar gosto por esta outra atividade. Deixei em 2012 o foley do Casablanca Sound para assumir a edição de som na O2 filmes, junto com o Alan Zilli”, relembra.

Em 2015, a mixadora conta que foi a hora de voltar para casa: “Voltar para a equipe do Luiz Adelmo e entrar no mundo dos reality shows, da produção em escala e, por fim, da mixagem”. Sua vontade de mixar vem de longa data, desde a faculdade, quando, em 2007, acompanhou uma mixagem de Armando Torres Jr., ABC, e ficou “encantada com a mesa controladora, as caixas enormes, os processos…”. Porém, como ela explica, apenas em 2016 essa vontade encontrou a oportunidade ideal e, em 2017, ela já pode dizer que viveu de mixar. Segundo Rosana, desde que começou a atuar nessa área, contou com a ajuda de muitos mestres: Luiz Adelmo, José Luiz Sasso, ABC, Pedro Noizyman, Paulo Gama, Eduardo Hamerschlak e Armando Torres Jr. “A lista de mestres é grande, e sim, só tem homens nela”.

Nos 10 anos de carreira, Rosana conheceu apenas cinco mixadoras: Paula Anhesini e Ana Luiza Pereira (que atualmente não atuam mais como mixadoras); Babi Bork, que mixa algumas das produções da Amplimix; Maira Martucci, com quem divide as mixagens na Vox Mundi, numa equipe de 10 mixadores; e Olivia Hernandez, que veio de Cuba. “Quando mixei um curta em 2017 na JLS, o José Luiz Sasso me disse que era a primeira vez – em 24 anos de história – que uma mulher ia pedir um estúdio de mixagem para ele. Então, mesmo que ele tenha esquecido alguém, somos mesmo franca minoria. Imagino que essa área seja muito masculina não por um impedimento ativo dos homens do mercado – que na realidade estão me recebendo muito bem e me incentivando bastante –, mas por conta de um machismo mais ancestral, por conta da ideia que colocam em nossas cabeças desde cedo de que há atividades de menino e atividades de menina”, reflete.

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Equipe de pós-produção de som do filme “Sequestro Relâmpago” (2018)

Em outros departamentos relacionados ao som, Rosana acredita que a presença feminina é mais equilibrada, com exceção do foley, área na qual as mulheres estão um pouco em desvantagem, mas que “não chega a ser gritante, por ser um mercado bastante pequeno”, considera. “Os cargos em todos os estúdios de som em que trabalhei não tinham um viés de gênero, eles eram definidos por aptidão, basicamente. Foram muitas as profissionais de pós-produção de som que conheci durante a carreira. Nossa equipe da Casablanca era dividida praticamente meio a meio. Por ela passaram, nominalmente: Natália Rabczuk, Paula Anhesini, Ana Luiza Pereira, Guta Roim, Fernanda Nascimento, Luciana Roça, Ana Paula Fiorotto, Lia Baraçal e Renata Gava. O papel de supervisor do estúdio, a quem cabia a responsabilidade das decisões, sempre foi de um homem. Não tive a oportunidade de trabalhar com chefes mulheres”.

Além disso, ela diz que as mulheres estão bastante presentes na edição de som. “O Encontro Nacional dos Profissionais de Som de Cinema de 2017 homenageou as profissionais mulheres, dentre elas, Miriam Biderman, ABC e Maria Muricy, que não só são editoras de som proeminentes como também exerceram certo pioneirismo na área”. Para concluir, Rosana reflete que “se a gente conseguir ocupar esses trabalhos, que social e culturalmente são mais desenvolvidos por homens, trazendo um jeito de pensar e de se relacionar diferente, aí realmente teremos algo mais plural”.

Um set cada vez mais plural!

Como demonstrado na primeira reportagem da série, o problema da pouca presença de mulheres, principalmente em cargos de chefia, e presença ainda menor de negras e negros no audiovisual são reflexos de problemas e estruturas de poder que são muitas vezes naturalizados e se desenvolvem social e culturalmente. Segundo dados do IBGE, divulgados em 2016, 54% da população é negra e 51,5% é do gênero feminino. Se não vemos esses grupos representados – tanto atrás como na frente das câmeras – como o audiovisual pode dar conta da pluralidade de histórias, experiências e olhares existentes em nossa sociedade?

Mais pluralidade significa ter homens e mulheres, cis e trans, de diferentes raças e etnias, atuando em todas as funções, como também a presença de diferentes gerações, regiões, olhares e opiniões. No caso da presença das mulheres, para Taís: “Creio que isso está mudando aos poucos, principalmente pela união e empoderamento das mulheres que estão no set, uma ajuda a outra, uma puxa a outra e os homens vão entendendo que isso é bom, que dá certo e entram no jogo. Mas tem que partir das mulheres ainda. Tem que ter briga para fazer acontecer, ainda tem que “conscientizar” a equipe e a produção. Mas sou otimista. Acho que o debate está cada vez maior e isso vai incentivar cada vez mais esse caminho, nem que seja partindo das mulheres”.

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Equipe do curta “Minha carne é de carnaval”

A diretora de fotografia conta que muitas dessas reflexões ocorreram depois da mesa sobre as mulheres na cinematografia, na Semana ABC 2017. “Percebi que muitas colegas não se sentiam à vontade nesse tipo de evento e achavam que era porque eram inseguras, que era pessoal. Mas existe mesmo uma tensão para a participação das mulheres em lugares de poder e de fala.  Uma das caras do machismo interiorizado na sociedade é as mulheres se culparem por não terem seu lugar. Enfim, por isso sou otimista hoje. Acho que o debate está crescendo e está abrindo a cabeça não só dos profissionais mais novos, que estão entrando no mercado, mas também dos que já estão no mercado há algum tempo, mas não se sentiam à vontade para tratar essas questões”.

Tarsila concorda: “acho que tem muito a mudar no cinema ainda e a força das mulheres é muito importante, principalmente a sororidade. Se as mulheres se unirem e se ajudarem, não tem pra ninguém”, finaliza.

Mais fotos de projetos realizados pelas entrevistadas serão publicadas no Instagram da ABC.

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