Elas por trás (e na frente) das câmeras: representações no audiovisual brasileiro

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A cineasta Adélia Sampaio

Por Danielle de Noronha

Quando assistimos a qualquer produto audiovisual estamos diante de representações, que dialogam e se inspiram na “realidade”. Tanto as produções do gênero ficcional quanto do documental nos apresentam pontos de vista, que são construídos num longo processo de escolhas, recortes e montagens. Neste sentido, podemos pensar que novelas, filmes e séries são resultados de formulações individuais e coletivas, que têm a ver também com a forma como enxergamos a nós e aos outr@s no mundo.

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Paula Alves, realizadora do Festival Femina

Se por um lado, vivemos um crescimento da produção audiovisual no país – e também da presença de mulheres atrás das câmeras –, e como consequência podemos perceber o aumento de representações mais plurais e heterogêneas sobre as mulheres, por outro seguimos percebendo a recorrência de estereótipos nas personagens femininas dos filmes que conseguem atingir um público maior, por exemplo, como explica a pesquisadora Paula Alves, realizadora do Festival Femina – Festival Internacional de Cinema Feminino: “boas representações de mulheres (e de outros grupos sociais) sempre existiram. A questão é tentarmos analisar o geral, ou seja, uma maioria de filmes, e principalmente aqueles que recebem mais recursos, têm maior visibilidade, alcançam mais público e bilheteria”.

A partir desse ponto de partida, é possível formular algumas perguntas, tais como: 1) qual a relação entre as pessoas que estão por trás do audiovisual e aquilo que é representado nas (multi)telas?; 2) como as representações das diferentes pessoas que formam parte da sociedade influenciam a vida prática dos grupos sociais na realidade?; e 3) como os estereótipos reproduzidos pelo audiovisual atuam na manutenção de diversas relações de poder?

Nesta quarta e última reportagem da série sobre mulheres no audiovisual entrevistamos diferentes profissionais que atuam atrás e na frente das câmeras para refletir sobre essas e outras questões que envolvem as representações relacionadas à gênero e raça na produção brasileira.

Esta matéria busca complementar as anteriores, que já trataram o tema apresentando um panorama sobre a presença das mulheres no audiovisual, visibilizando diferentes trajetórias em algumas áreas da cinematografia e expondo algumas experiências no set de filmagem. Agora, o propósito é refletir sobre como tudo isto atua naquilo que está mais visível: as formas como as mulheres são representadas e tipificadas no audiovisual.

Primeiro corte: direção e roteiro

Conforme explica Paula, o fato de termos um aumento na produção e na presença feminina na direção já aumenta a chance de diversidade de temáticas, abordagens, protagonistas e representações. Porém, “uma parcela significativa de filmes repete as mesmas fórmulas, roteiros sem criatividade, personagens estereotipadas e até o mesmo elenco”. Para ela ao levarmos em consideração as protagonistas mulheres das comédias brasileiras de maior sucesso de bilheteria nos últimos anos, “veremos os mesmos tipos, as mesmas mulheres, as mesmas atrizes, os mesmos perfis, e histórias extremamente semelhantes. São basicamente mulheres brancas correndo atrás de homens (brancos, a propósito). Elas querem casar, reconquistar o marido ou namorado, arrumar um marido/namorado… O objetivo da vida dessas mulheres classe média das comédias está ligado a relacionamentos afetivos. Então, ainda temos muito a melhorar”.

Como demonstrado em outras reportagens desta série, os homens brancos são maioria em quase todas as funções no audiovisual, com poucas exceções como é caso da produção executiva. A presença majoritária deles na direção e roteiro, por exemplo, reflete também no modo como são construídos os personagens (muitas vezes com a repetição e naturalização de determinados estereótipos) e quem são as atrizes e atores escolhidos para representá-los.

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Amanda Lopes, criadora da plataforma Mulheres Audiovisual

Segundo a pesquisadora, diretora e roteirista Amanda Lopes, criadora da plataforma Mulheres Audiovisual (que voltaremos a falar mais adiante), “o cinema é uma prática cultural que reproduz ideias sobre gênero e sexualidade através da representação. Toda história tem como função produzir subjetividades e se o ponto de vista for sempre do homem dificilmente teremos a verdadeira subjetividade feminina perpetuada na história. Quando analisamos os dados atuais do setor de audiovisual brasileiro vemos que as mulheres são silenciadas de diversas formas, e quando olhamos através de um recorte de raças vemos um cenário ainda pior para as mulheres negras”.

Paula complementa: “o cinema influencia e é influenciado pelas transformações sociais, pelos movimentos sociais, pelas demandas, críticas, reivindicações. O cinema surgiu e se desenvolveu nas primeiras décadas a partir de valores e perspectivas masculinas. Da mesma forma a construção de personagens femininas (aliás, todas as personagens) foi padronizada a partir de olhares masculinos por trás das câmeras e para públicos masculinos. O star system transformou as mulheres em símbolo de sensualidade, ao mesmo tempo em mocinhas frágeis a espera de heróis. Não só as mulheres, mas todos os grupos sociais tiveram suas representações padronizadas. No entanto, ao mesmo tempo em que interpretavam estereótipos, as atrizes serviam de modelo para as espectadoras, pois eram mulheres empoderadas, em sua grande maioria”.

Um boletim produzido pelo GEMAA (Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa) sobre a representatividade de gênero e raça no cinema brasileiro, aponta que as atrizes correspondem a apenas 40% do elenco geral dos 142 filmes brasileiros lançados comercialmente em 2016, enquanto 59,8% são atores. Atrizes e atores negros representam apenas 8,3 e 5%, respectivamente, e em 42,2% dos filmes não foi identificado nenhum ator ou atriz negros. E se olhamos para mulheres e homens amarelos a porcentagem cai para 0,4% do elenco.

O estudo ainda mostra que quando o roteirista do filme é negro aumenta em 52,5% a chance de haver mais de um ator ou atriz negros no elenco. Já quando se trata do diretor, esse número chega a 65,8% – lembrando que os roteiristas e diretores negros representam 2,1% dos filmes lançados em 2016 e nenhuma mulher negra atuou nestas funções naquele (e em quase nenhum outro) ano.

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Filmagem do documentário O Caso do Homem Errado. Foto: Carlos Moura

Até hoje, apenas duas mulheres negras conseguiram lançar um filme brasileiro no circuito comercial do país. A primeira foi Adélia Sampaio, que dirigiu Amor Maldito em 1984, e apenas 34 anos depois, em março deste ano, Camila de Moraes conseguiu repetir o fato ao lançar de forma independente o documentário O Caso do Homem Errado, que conta a história de Júlio César de Melo Pinto, um operário negro que foi preso por engano e executado no trajeto até a delegacia pela Polícia Militar, em Porto Alegre, em 1987. Para as mulheres negras, além da dificuldade de conseguir produzir, há ainda as barreiras da distribuição e exibição:

“Até o momento, nenhuma distribuidora mostrou interesse no nosso filme. Estamos desde maio de 2017 fazendo diálogo com diversas distribuidoras. Para ter noção uma nos solicitou 30 mil reais para iniciar o serviço. Outra nos disse que o documentário não era perfil da distribuidora. O nosso filme nunca será o perfil enquanto as pessoas não compreenderem que debater a questão racial é uma tarefa de todos e não somente da população negra. Então, adotamos, estrategicamente, começar o circuito comercial do filme, pois se as distribuidoras não têm interesse e se não somos selecionadas em festivais, não podemos também ficar com o filme na gaveta. Levamos oito anos para conseguir contar essa história por meio do audiovisual e não vai ser agora que vamos parar”, explica Camila.

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Filmagem de Antônia com Leula Moreno, Negra Li, Tata Amaral, Quelynah Simão e Cindy Mendes. Foto: Marcelo Vigneron

Já as mulheres brancas, na direção, representam 19,7% dos filmes que foram lançados em 2016. Segundo a diretora Tata Amaral, quando a sociedade prioriza os homens no audiovisual, prioriza que tenhamos contato também com a história deles. “Por isso que falamos tanto da equidade, da representatividade, porque isso altera a representação”.

Tata é um exemplo de diretora que tem em seu currículo trabalhos que apresentam protagonistas femininas: mulheres fortes em meio a temas sociais complexos e importantes, como Dalva (Um Céu de Estrelas, 1996) e a questão da violência contra a mulher; Preta, Lena, Barbarah e Mayah (Antônia, 2006) e a juventude feminina negra da periferia de São Paulo; e Vera (Hoje, 2011), que revive a memória viva da ditadura civil-militar brasileira. Para ela, a representação das personagens está relacionada principalmente com quem está por trás da direção e do roteiro: “quando eu começo a fazer filme eu vou falar de um universo que me toque, eu falo desse lugar, por isso é importante a representatividade. Quando você pensa nisso, que menos de 20% dos filmes são roteirizados ou dirigidos por mulheres, e você tem personagens femininos neles, questionamos: quem está construindo essas representações?”.

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Filmagem de Hoje, com Tata Amaral e Denise Fraga. Foto: Ding Musa

Além disso, também é possível refletir sobre as relações entre as representações exibidas no audiovisual e as realidades vivenciadas pelas pessoas nos âmbitos privados e coletivos. Ao mesmo tempo que as mulheres negras, quando aparecem nos filmes, normalmente estão relacionadas a trabalhos menos remunerados e com menor ou nenhum poder simbólico, na realidade também: no Brasil, as mulheres negras ganham cerca de 40% menos do que os homens brancos. E, ao mesmo tempo em que as mulheres são objetificadas em filmes, novelas e na publicidade, temos uma taxa de violência contra a mulher inaceitável: só em 2016, uma em cada três mulheres foi vítima de violência no Brasil.

Para a atriz Dira Paes, “os números de violência contra a mulher são muito altos e isso reflete também na dramaturgia”. Nesse sentido, “quando você associa que a gente vive numa cultura de estupro, de violência contra a mulher, você vai pensar no que o audiovisual pode contribuir para mudar essa maneira de representar (e viver) gênero e raça… ou não”, complementa Tata.

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Camila acredita que é importante mudar essa realidade. “O que precisamos, como disse a maravilhosa atriz Viola Davis ‘é de oportunidades’, podemos interpretar qualquer papel na cinematografia, daremos vida a eles com toda a dignidade que merecem e todo o poder que cada personagem pode ter, mas para isso acontecer precisamos ter por de trás das câmeras aqueles profissionais preocupados com essa temática e que parem de colocar personagens negros para representar estereótipos. Só assim teremos mudanças efetivas que poderão ser conferidas nas telas de cinema ou televisão”, pondera.

Paula ainda reflete que enquanto estivermos produzimos filmes com protagonistas homens e brancos, estaremos reafirmando o papel masculino e branco como protagonistas sociais, que inclui a política, o mercado de trabalho e os cargos de chefia. “Assim como quando as protagonistas mulheres são também majoritariamente brancas, jovens, dentro de padrões de beleza estigmatizados, estamos reafirmando esse padrão como o da mulher desejável, bela e admirável. Da mesma forma, quando negros atuam em papeis secundários, de menor prestígio social, ou são representados pelo seu valor na música, no esporte, por exemplo, estamos reforçando sua colocação social discriminatória ou seu destaque a partir de um talento especial. Quebrar essas formas estigmatizadas de representação de mulheres e negros é necessário e urgente. Pois estaremos construindo novos padrões que serão, menos ou mais, cedo ou tarde, copiados”.

Segundo corte: arte, fotografia e pós-produção

Entretanto, não é apenas na direção e no roteiro que podemos sentir as influências do olhar masculino na forma como as mulheres (e negros) são representadas. Como reflete a diretora de fotografia e operadora de câmera Fernanda Tanaka: “acho que o processo acaba sendo um pouco óbvio mesmo: quanto menos mulheres atrás das câmeras, mais estereótipos femininos teremos na frente das câmeras. Claro que isso é uma generalização, claro que existem exceções. Mas em muitos casos, se não existe uma mulher para defender uma representação feminina adequada, é provável que ela venha de um discurso machista”.

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Fernanda Tanaka do set de O Escaravelho do Diabo

Além disso, Camila acredita que é preciso ter conhecimento de causa para tratar de alguma realidade e ser sensível e disposto a aprender com o próximo. “Então, é mais que necessário ter a presença de mulheres nas diversas áreas do audiovisual, é urgente. Pois se tiver uma roteirista comprometida irá pensar em personagens dignos para serem representados. Uma direção de fotografia não irá, por exemplo, deixar um personagem negro no escuro, na sombra, haverá uma maquiagem especifica para pele negra e assim por diante. Na falta dessas representatividades nessas áreas faz com que, ainda nos dias atuais, vejamos estereótipos nas telas de personagens negros e mulheres em situações submissas. Olhares mais diversos nos trarão uma cinematografia mais diversa, dialogarão mais com o público e é isto que precisamos”.

A situação da presença feminina no audiovisual faz parte de uma construção social que reflete o mercado de trabalho em geral e as desigualdades, segundo Paula, acontecem tanto no nível hierárquico como na segmentação de funções. “As mulheres já estão muito presentes no mercado de trabalho de uma forma geral, mas não ainda nos cargos de chefia (hierárquicos) e nem em todos os campos (segmentações). No cinema também há uma resistência à presença de mulheres nas chefias de equipe, e nas funções culturalmente rotuladas de masculinas, como câmera, direção de fotografia, por exemplo. Da mesma forma, outros grupos sociais estão limitados ou praticamente ausentes tanto dos sets quanto das telas, como os negros, pelos mesmos motivos pelos quais estão ausentes dos cargos de chefia no mercado de trabalho, da política… Assim como quando as equipes têm mais mulheres as chances de termos mais protagonistas mulheres aumentam, e de termos representações mais diversas também, da mesma forma, precisamos ter mais negros chefiando equipes e em funções chave como direção e roteiro para termos mais e melhores representações de negros nas telas, o mesmo vale para as mulheres negras”.

A diretora de arte Luciana Dias começou a atuar na área ainda adolescente, como assistente de produção, e percebeu desde cedo que “o machismo era evidente até para minha pouca idade”. Luciana conta que todas as vezes que dizia que queria ser diretora, os colegas homens riam: “me diziam para ser modelo ou atriz, que isso era coisa para mulher. Naquela época, a presença feminina estava ligada mais à produção, maquiagem, figurino”.

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A diretora e diretora de arte Luciana Dias

Com quase 30 de anos de carreira, Luciana acredita que nas produções de séries, filmes e TV assistimos estereótipos equivocados na maioria das vezes, mas acredita que atualmente há uma “certa delicadeza e inteireza em novas narrativas e em certos formatos ao retratar as mulheres, mas isso tem acontecido, quase sempre, quando são as mulheres que estão dando vazão aos roteiros e engrenagens dessa construção”.

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Fernanda Tanaka no set do filme A Fera na Selva

Já Fernanda Tanaka conta que no começo (no final da década de 1990) não percebia o fato de que havia sempre pouquíssimas mulheres nas equipes de fotografia: “eu mesma não me via como a ‘presença feminina’ na equipe: eu era a assistente de câmera, só. A minha preocupação era aprender e trabalhar ‘direito’, e era nisto que eu me concentrava. Isso, mais o fato de que os fotógrafos com quem eu trabalhava nunca me trataram diferente por eu ser mulher, fizeram com que realmente tenha demorado um bom tempo até que eu notasse o sexismo no meio. Virou mais quando me tornei diretora de fotografia”.

Hoje, a fotógrafa pondera que existem mais mulheres na fotografia, tanto assistentes quanto assinando a direção, “embora sejamos ainda em número bem menor. Maquinária e elétrica ainda são áreas super carentes de mulheres”. Para ela, por um lado, também é possível notar que a representação da mulher nos filmes, comerciais e séries tem mudado desde uns poucos anos atrás, o que também é resultado de uma pressão social, realizada principalmente pelas mulheres. “Só para dar um exemplo: neste ano fiz um comercial de uma cerveja cujo mote era contrariar uma campanha machista antiga da própria empresa. Neste, o papel da mulher e do homem foi invertido. Todos estão mais preocupados e mais cuidadosos quanto a atitudes, conteúdos, pensamentos machistas. E o policiamento também aumentou no mesmo nível. Mas ainda assim, falta muito para uma sociedade um pouquinho mais igualitária…”, comenta.

Por outro, em consonância com Paula, Fernanda acredita que ainda persistem as “princesas-que-aguardam-ser-salvas-pelos-príncipes”, porém, se arrisca a dizer que atualmente “em maioria, vemos muitas heroínas, donas da sua história. Vemos mais mulheres protagonizando também, e acredito que existe uma preocupação em evitar estereotipá-las, mostrando que todos podemos ter múltiplas facetas, todos temos qualidades e defeitos. Gosto de pensar que estamos caminhando para uma representação mais justa e fiel do ser humano”, fala.

A montadora Cristina Amaral também considera que hoje há mais diversidade no cinema brasileiro, por mais que ainda existam muitos estereótipos, não apenas nas personagens femininas: “Acho que isto além de identificar uma mentalidade machista, é uma falha na formação de uma dramaturgia. Não generalizo, mas, em geral, falta rigor, falta profundidade, falta uma prospecção mais acurada da alma humana, falta vivência. E o trabalho apenas na superfície espelha falsas imagens de mulheres, de homens, de gays, de crianças, e por aí vai”.

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A montadora Cristina Amaral. Foto: Laura Del Rey

Assim como é importante pensamos como as equipes de arte e de fotografia podem contribuir para evitar a reprodução de estereótipos naturalizados de gênero e raça, a montagem, e pós-produção em geral, também pode contribuir neste processo de tornar as representações mais plurais. Cristina fala da importância da postura profissional, que particularmente procura adotar, que incluí: “refletir e aprofundar o entendimento sobre todas as nuances do trabalho e apontar, conversar a respeito com as pessoas que dirigem os filmes que eu monto. Dessa liberdade eu não abro mão. Tenho a sorte de trabalhar com diretores libertários, para quem o respeito humano é o ponto de partida. Assim se, por um deslize, algum personagem ou alguma situação beirar a qualquer tipo de preconceito ou estereótipo, trabalhamos juntos para sanar”, finaliza.

Terceiro corte: atrizes e personagens

Se olharmos para o cinema brasileiro contemporâneo, é possível citar mais algumas dezenas de exemplos de personagens femininos complexos e plurais. Paula nos lembra de alguns filmes como Baronesa, de Juliana Antunes (2017); Pela Janela, de Caroline Leone (2017); Para Ter Onde Ir, de Jorane Castro (2016); Aquarius, de Kleber Mendonça Filho (2016) e Que Horas Ela Volta?, de Anna Muylaert (2015).

Fernanda ainda cita mais algumas, como “Biela, personagem da incrível da Sabrina Greve no filme da Suzana Amaral, Uma Vida em Segredo (2001). Outra foi a personagem da Maria Luísa Mendonça no filme Jogo Subterrâneo (2005), do Roberto Gervitz. Adorei também a Kaia/Condessa da Georgette Fadel no Rio Cigano (2013), da Julia Zakia. E a Laura da Virginia Cavendish no Através da Sombra (2016), do Walter Lima Jr.”.

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A atriz Suely Bispo na peça Cantantes dos Reis do Grupo de Teatro Experimental Capixaba (2010)

Porém, como pondera a atriz, historiadora e mestra em Estudos Literários, Suely Bispo, “na maioria das vezes a forma como a mulher é representada é sob esse olhar masculino, muitas vezes objetificada e que reproduz esses olhares estereotipados. E quando vem a mulher, ela traz outro olhar e quando vem o homem negro ou a mulher negra ainda são outros olhares, que apresentam questões específicas nossas”. Esse olhar, construído desde uma estrutura cultural machista e patriarcal, significa diversos padrões que incluem questões como a estética, a idade, o comportamento, os tipos de trabalho, as funções e posições sociais, as formas de se relacionar, entre outras.

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Dira Paes. Foto: Leo Aversa

Uma atriz muito presente no audiovisual brasileiro é Dira Paes, homenageada no Festival de Gramado do ano passado, que já interpretou muitas mulheres, em filmes, novelas e séries – de diferentes gêneros, públicos e orçamentos. No cinema, são mais de 40 filmes, em que já vivenciou Toninha (Redemoinho, 2017), Cotinha (Encantados, 2017), Conceição (Sudoeste, 2011) e Dadá (Corisco & Dadá, 1996). Na TV, viveu mulheres como Cleonice (As Brasileiras, 2012), Celeste (Amores Roubados, 2014) e Beatriz (Velho Chico, 2016).

Para ela, o estereótipo é uma tendência de valorizar tudo que o público gosta, que geralmente é aquilo que ele decodifica rapidamente. “Eu já gosto do que me provoca estranhamento e que me tira do lugar comum, confortável. Hoje em dia a mulher não quer ser vista atrelada a um amor. Ela quer ser alguém independente do homem, no caso. E eu acho que o cinema vem retratando essa mulher contemporânea, que tem mais a ver com a realidade, que é uma mulher independente, dona do seu nariz, cuida da casa, dos filhos, trabalha e ainda tem que cuidar da sua sexualidade, do seu prazer de viver… Eu acho que essa mulher contemporânea já está acontecendo nas telas”.

Em relação à questão específica da presença dos negros e negras no audiovisual, Suely, que possui uma longa carreira no teatro e teve sua estreia na TV na novela Velho Chico, da TV Globo, acredita que há alguns avanços, “mas ainda, do ponto de vista da representação real demográfica brasileira, não corresponde a nossa realidade. Porque você ainda tem poucos negros na televisão. E até mesmo quando eles filmam uma favela, uma comunidade negra, a maioria dos personagens é branco”.

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Elenco da novela Segundo Sol. Foto: Divulgação

Um exemplo recente é a novela Segundo Sol, da TV Globo, ambientada na Bahia, conhecida como “a cidade mais negra fora da África”. Segundo dados do IBGE, divulgados em 2013, 76% dos baianos se declaram pretos ou pardos, porém dos 26 atores que participam da novela, apenas três são negros, o que demonstra que ainda não tivemos muitos avanços desde o lançamento do documentário A Negação do Brasil, dirigido por Joel Zito Araújo (2000). “Eu acho que ainda precisa mudar muito mais, a gente está percebendo essas mudanças acontecendo, mais ainda são muito tímidas. E a gente tem que mudar uma mentalidade, de quem está lá, dos diretores. Ou então, já que não mudam, nós negros temos que começar a nos colocar e buscar esses espaços, que é o que está acontecendo”, comenta Suely.

Há pouco tempo, a atriz teve a oportunidade de participar do curta-metragem Abelha Rainha, dirigido por Thayla Fernandes e filmado em maio no Espírito Santo, que conta com cerca de 90% de mulheres na equipe. “Um momento diferente pra mim e muito especial, com uma equipe que na frente é mulher e que privilegia mulheres negras no elenco. É diferente realmente. É uma outra forma, um outro olhar”, diz. Para Luanna Esteves, produtora executiva, o filme é um impulso para discussões sobre questões de gênero e representação: “cada escolha no filme é uma oportunidade de exercer a escuta, dar voz, dar as mãos. Das escolhas estéticas, da narrativa… Tem sido um processo de muita sensibilidade, uma parceria real entre nós, mulheres. É um filme essencialmente feminino e tentamos trazer isso para o processo de sintonia da equipe também. Cada uma se coloca, agrega, soma e nos sentimos mais fortes, mais potentes assim”.

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Elenco do filme Abelha Rainha. Foto: Luana Laux

Quarto corte: algumas perspectivas

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A atriz Suely Bispo

“A questão é realmente fazer”. Para Suely esse é o principal caminho para mudarmos o panorama da mulher no audiovisual, na frente e atrás das câmeras: “é um movimento mesmo, tem que haver uma cobrança, uma mobilização de cobrança de direitos, e ao mesmo tempo uma ação. Acho que o caminho é esse, é um caminho político de mobilização, de consciência e de ação, de ir lá e fazer. Porque a partir do momento que você faz, você está atuando e isto que vai transformar mesmo essa realidade. E acho que isso está sendo construído mesmo por essas mulheres que estão em ação, nos sets de filmagens”.

Uma questão citada pela atriz é o crescimento do Cinema Negro, que conta com diversas cineastas e pesquisadoras de todo canto do país, além de mostras e festivais, como Edileuza Penha de Souza, Charlene Bicalho e Kênia Freitas, e também podemos incluir, entre muitas outras, Larissa Fulana de Tal, Sabrina Fidalgo, Yasmin Thainá, Viviane Ferreira (presidente da Associação dxs Profissionais do Audiovisual Negro – APAN e segunda mulher negra a dirigir um longa, que ainda não foi lançado) e Janaína Oliveira. Aliás, hoje estamos acompanhando o crescimento de muitas mulheres no cinema independente no geral.

Além disso, assim como o caso de Abelha Rainha, estamos vendo diversos esforços de produtores, produtoras, diretores e diretoras, fotógrafos e fotógrafas de possibilitar sets de filmagem com mais equidade de gênero, em que as mulheres também tenham oportunidades de assumir os cargos de chefia e outras funções que historicamente são mais relacionados como ofícios masculinos.

Outro exemplo recente é o clipe da música Contramão da cantora Pitty, com participação de Tássia Reis e Emmily Barreto, e direção de Judith Belfer, fotografia de Julia Equi e direção de arte de Rebeca Uksti, em que todas as chefes de equipe eram mulheres. Também é possível citar o filme Construindo Pontes, com direção e fotografia de Heloisa Passos, ABC, que possui 72% da equipe formada por mulheres.

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Heloisa Passos durante filmagem do filme Construindo Pontes

Como falou a produtora Amina Jorge, na primeira reportagem desta série, não se trata de não querer mais trabalhar com os homens, se trata de refletir, mudar as relações e as lógicas social e culturalmente estabelecidas: “e a lógica é 90% homem e 10% mulher e para mudar a gente tem que num primeiro momento radicalizar, se propor alguns desafios, se propor um desafio de ter uma equipe inteiramente de mulher”.

Também podemos notar que o tema está cada vez mais presente em pesquisas acadêmicas, que auxiliam na organização dos dados e na maior compreensão da relação entre gênero e audiovisual. A plataforma Mulheres Audiovisual, por exemplo, faz parte de um processo de pesquisa de Amanda desde a graduação. “A ideia surgiu nas aulas de direção na universidade quando cursava cinema, o professor levava um diretor por aula para falar sobre estilo e tudo mais, e ao final do semestre, na prova final, percebi que nenhuma mulher foi citada em suas aulas e foi bastante frustrante, aí levei a frustração pra casa e tentei criar a plataforma para que ninguém mais tenha a desculpa de não encontrar mulheres cineastas. O objetivo foi inicialmente mostrar para o meu professor que ele vacilou nas aulas comigo, mas depois esse projeto virou meu TCC e atualmente meu projeto de mestrado”, conta.

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Plataforma Mulheres Audiovisual

A plataforma busca “dar visibilidade às produções contemporâneas de mulheres e, também, criar um instrumento de divulgação, de registro histórico e de memória, e uma ferramenta de construção de novas narrativas sobre o papel da mulher no cinema e na produção da cultura cinematográfica e do audiovisual no Brasil”. Para Amanda: “essa pesquisa é uma oportunidade de discutir sobre a inserção das mulheres no mundo do trabalho do audiovisual e de como a história tem sido narrada de forma a ocultá-las, penso que mais pessoas tendo esse conhecimento irão aos poucos transformar a forma como as meninas são educadas e permitir que acessemos cada vez mais os espaços públicos”.

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Paula Alves também desenvolve pesquisas sobre o tema. No mestrado, realizado no programa de Estudos Populacionais e Pesquisas Sociais na Escola Nacional de Ciências Estatísticas – ENCE/IBGE, desenvolveu um modelo estatístico que apontou que os filmes com diretoras, roteiristas e fotógrafas mulheres têm maior chance de ter protagonistas mulheres em relação aos filmes com equipes masculinas. “Alguns pesquisadores acreditam que boa parte dos cineastas tem uma tendência a representar seus semelhantes, então roteiristas e diretoras mulheres teriam tendência a construir protagonistas mulheres. É claro que não basta ter mais protagonistas, é preciso pensar na ‘qualidade’ dessa representação. Mas, da mesma forma, seguindo tudo o que eu falei acima sobre as diferenças nas formas como homens e mulheres vivenciam experiências, as roteiristas e diretoras teriam maior chance de representarem personagens femininas com maior diversidade e veracidade”, explica.

Já no doutorado, no programa População, Território e Estatísticas Públicas, do mesmo instituto, está ampliando essa base de dados até 2016, com informações como valores aprovados para captação, recursos públicos captados, público e renda de bilheteria, se aborda temáticas sociodemográficas (quais e como) e a cor/raça dos diretores, para desenvolver modelos estatísticos e descobrir se há relação entre essas variáveis e mensurá-las. “Eu já sei, por exemplo, que os filmes dirigidos por homens têm maiores valores captados e maiores públicos e rendas de bilheteria do que os filmes dirigidos por mulheres. O que significa que estamos investindo mais e assistindo mais a filmes dirigidos por homens. Eu também já sei a diferença entre a porcentagem de filmes dirigidos por homens e mulheres, e a porcentagem de filmes dirigidos por amarelos, brancos, indígenas, pardos e pretos. O cinema brasileiro, pelo menos no que se refere a produção de longas-metragens, é extremamente concentrado nas mãos (ou melhor, nos olhares e valores) de homens e brancos”.

Quinto corte: júris e mostras

Não é apenas no Brasil que os homens brancos são maioria na produção audiovisual, como demonstramos principalmente na primeira reportagem desta série. Outro espaço em que também é possível refletir sobre a disparidade entre os gêneros e raças são as mostras e festivais, lembrando das recentes discussões e protestos em torno do tema que ocorreram nos maiores festivais do mundo, como no Oscar, BAFTA, que passou a estabelecer critérios de diversidade para indicações, e em Cannes (aqui você poder ver um infográfico sobre a presença feminina no festival francês).

boletim mais recente do GEMAA trata da representatividade de gênero e raça na curadoria e júri de cinema, em que foram selecionados 19 festivais e mostras que aconteceram no Brasil em 2017. A pesquisa encontrou 84 curadores, dos quais apenas um homem não teve seu grupo racial identificado. Segundo o estudo, “mais da metade das pessoas que escolheram os filmes a serem exibidos em grandes festivais de cinema brasileiro no ano passado foram homens brancos (56,6%)”. Pessoas pretas e pardas chegaram a cerca de 11% do total.

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Já nos júris, a presença da mulher já está mais equilibrada, porém negros e pardos ainda têm menos espaço. “Diferente da curadoria, a maioria das pessoas nessa posição foram mulheres brancas (45,1%), os homens brancos (44,4%) tiveram participação bastante próxima. Pessoas pretas e pardas tiveram quase a mesma participação da categoria curadoria (10,8%)”. Em resumo, o boletim aponta que “Os festivais voltados para o cinema de documentário se mostraram mais diversos, incluindo mais mulheres e mais pessoas pretas e pardas, tanto na curadoria quanto entre os jurados. Os festivais de ficção com algum recorte específico também foram mais diversos e todos estavam próximos ou alcançavam a paridade de gênero, no entanto, o festival com recorte de gênero teve totalidade branca tanto na curadoria quanto entre as juradas”.

Atualmente, é possível perceber um aumento de mostras e festivais mais preocupadas com o recorte de gênero e/ou raça em todo o país. As mostras mais antigas também estão exibindo mais produções e encontrando mais visibilidade. Um exemplo é o próprio Femina, o primeiro dedicado aos filmes dirigidos por mulheres (atualmente o festival aceita a inscrição de mulheres cis e trans) no Brasil e América Latina, que além da exibição de filmes, realiza desde a primeira edição, em 2004, debates pertinentes à temática do festival.

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Seminário Femina em 2017

O festival surgiu com os objetivos de promover a produção audiovisual das mulheres, incentivar a participação feminina em cargos de direção e comando no cinema e o surgimento de novas diretoras, estimular a realização de filmes com protagonistas femininas e debater questões de gênero para além do audiovisual, com a realização do Seminário Femina, que já tratou de temas como direitos sexuais, formas de violência contra a mulher, feminismos e suas diferentes abordagens, direitos humanos, representações e representatividade, diversidade sexual, interseccionalidade com cor/raça e outras expressões culturais, política e economia, entre muitos outros.

Quando questionada sobre a pluralidade de representações relativas às mulheres que são exibidas no festival, Paula explica que o Femina recebe filmes de todos os continentes e regiões do país e que isto possibilita uma grande diversidade de representações de mulheres que são genuinamente heterogêneas. “É incrível poder exibir filmes de países cuja cinematografia pouco chega ao Brasil, e assim, por consequência, dar visibilidade a protagonistas e olhares pouco conhecidos por aqui”, finaliza.

Corte final: vamos fazer junt@s!

Estamos vivenciando um momento importante para o debate sobre a equidade de gênero e raça no audiovisual. Através da maior visibilidade do tema é possível termos mais acesso a diálogos, tomadas de consciências que estão se traduzindo (ainda timidamente) em produções mais plurais e sets mais diversos. Dira acredita que o Brasil tem uma grande potência: “Tenho visto várias produtoras tentando fazer equipes femininas e a gente tem conseguido, mas ainda falta muito e, para isso, precisamos de incentivo para que as mulheres tenham, sim, um lugar ao sol no cinema. A consciência de todos está voltada pra isso. E nós, mulheres, temos que ser as vigilantes para que possamos ter igualdade e equidade de oportunidades dentro e fora do cinema”. Para Cristina (e para todas nós), as mulheres são tão capazes quanto os homens para exercer qualquer atividade profissional. “Somos humanamente tão frágeis e tão fortes uns quanto os outros. E talento e inteligência não têm gênero”, diz.

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Cristina Amaral em Santa Maria da Feira/Portugal. Foto: Andrea Tonacci

Apesar de ter passado por inúmeras situações machistas ao longo de sua carreira, Luciana conta que também conheceu colegas maravilhosos e muito sensíveis no audiovisual: “Durante muitos anos, me travesti de apresentadora, para sobreviver ao mercado e dirigia por trás das câmeras e dos panos, documentários, programas e especiais. Hoje percebo que tudo valeu a pena, e fico feliz com essa nova fase e geração, que chega num ambiente mais democrático e respeitoso na profissão, já provamos nosso valor, muitas de nós, sofremos muuuito nesse processo, mas o que machuca, vira calo, vira obra, vira filme!”.

Esta pode ser a última reportagem desta série, mas o objetivo não é encerrar o debate. A ideia principal é que a série dialogue e contribua para abrir possibilidades para novas discussões e mais atitudes práticas. Como lembra Paula, “O feminismo não é uma luta exclusiva das mulheres, mas uma luta por igualdade entre os gêneros que inclui a todxs”. E seguindo a sugestão de Camila, “vamos ao cinema, vamos fazer juntas. Lutar com arte para achar soluções para eliminar o racismo (e o machismo) existente no Brasil”.

Para finalizar, gostaríamos de agradecer a todas as mulheres que participaram neste quase um ano de pesquisas e entrevistas que resultaram nesta série de reportagens “Elas por Trás das Câmeras”. Participaram: Amanda Lopes, Amina Jorge, Camila de Moraes, Carol Rodrigues, Cristina do Amaral, Débora Vieira, Dira Paes, Eliane Caffé, Fernanda Tanaka, Glauce Queiroz, Julia Equi, Kátia Coelho, ABC, Kika Cunha, Lina Chamie, Luciana Dias, Luiza Campos, Maritza Caneca, ABC, Monica Palazzo, Nina Tedesco, Paula Alves, Regina Dias, ABC, Rosana Stefanoni, Rosiani Evangelista, Silvia Gangemi, Suely Bispo, Taís Nardi, Tarsila Araújo, Tata Amaral, Tide Borges, ABC e Victoria Panero, ADF.

Mais fotos de projetos realizados pelas entrevistadas serão publicadas no Instagram da ABC.

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