Por José Roberto Eliezer
Trabalhando com Eric Rohmer, nas lembranças de um colaborador assíduo.
O Cinema é uma arte coletiva, onde o resultado depende muito da colaboração efetiva (e afetiva) entre os membros da equipe. Isso acaba por gerar várias parcerias, formam-se verdadeiras “famílias” cinematográficas. Uma dessas parcerias famosas aconteceu entre o diretor Eric Rohmer e o diretor de fotografia Néstor Almendros.
Aqui, Almendros nos revela alguns momentos em que a magia tomou conta do set, em que sensibilidade e sintonia geraram o “momento perfeito”, aquele em que a satisfação pelo resultado alcançado contagia a equipe, aquele em que todos têm contato com o verdadeiro motivo que nos leva a fazer cinema.
Numa época em que a pressão por resultados, a urgência em cumprir planos de filmagem, a rapidez da comunicação e a profusão de aparatos técnicos tomam conta da nossa vida profissional, esse texto vem nos lembrar da importância da construção cuidadosa e sensível desses momentos únicos que se eternizam nas telas e marcam a todos os que deles participam.
The Perfect Moment
Texto de Néstor Almendros originalmente publicado em http://www.movingimagesource.us/articles/the-perfect-moment-20100112
Tradução: José Roberto Eliezer, ABC
Janeiro de 2010
O grande diretor de fotografia Néstor Almendros (1930-1992), homenageado com uma restropectiva no Museum of the Moving em 1989, trabalhou com François Truffaut (O Garoto Selvagem, O Último Metrô), Terrence Malick (Cinzas no Paraíso), Robert Benton (Kramer vs. Kramer, Um Lugar no Coração) e Alan Pakula (A Escolha de Sofia). Mas sua relação de trabalho mais próxima foi com Eric Rohmer, que faleceu em 11 de janeiro de 2010. Juntos, fizeram sete longas, entre os quais A Colecionadora, Minha Noite com Ela, O Joelho de Claire, Amor à Tarde, A Marquesa de O., Perceval le Gallois e Pauline na Praia. Seu trabalho conjunto era marcado por uma falsa simplicidade, iluminação naturalista e um senso clássico e refinado de composição. Estes trechos do livro de memórias de Almendros, Man With A Câmera, (1984, esgotado) mostram suas impressões sobre o processo criativo de Rohmer.
A Colecionadora (1967)
Nos campos/contracampos, ao invés do procedimento comum de fazer primeiro o plano inteiro de um ator e depois do outro, alternando-os durante a edição, Rohmer filmava apenas o essencial – a pessoa falando ou ouvindo – de maneira que nunca havia duplicação de ação na montagem, que era exatamente a que ele planejara. Usamos somente 5 mil metros de negativo em A Colecionadora. No laboratório pensavam que era um curta metragem. Nesse sentido, Rohmer era como Buñuel, que concebia cada cena de uma única maneira, tendo antes refletido muito sobre ela.
Minha Noite com Ela (1969)
O princípio básico de Rohmer era de que num filme em branco e preto não se deve fazer referencia a cores. Por exemplo, se os personagens dizem que estão bebendo um licor de menta, o espectador se sentirá frustrado, porque ele quer ver a cor verde. Porem isso não acontecerá se os atores beberem água ou vodka. Rohmer particularmente queria que o filme tivesse uma qualidade austera, e sem cor alguma, qualquer detalhe visual supérfluo ou anedótico foi eliminado.
Algumas pessoas acham que Rohmer tinha um pacto com o diabo. Com meses de antecedência ele programou a data exata de filmagem de uma cena aonde neva; naquele dia, na hora certa, nevou, e a neve durou o dia todo, não só por alguns minutos. Como resultado, conseguimos uma perfeita continuidade, e com neve de verdade, coisa dificílima de conseguir e que é mais perfeita do que a neve artificial que usamos em Adèle H. Mas não era apenas sorte; o segredo foi a minuciosa preparação, feita pelo próprio Rohmer às vezes dois anos antes de rodar o filme, e que levou em conta uma série de previsões e cálculos de probabilidade.
O Joelho de Claire (1970)
A zona rural da região de Annecy era mais graciosa do que o filme mostra, extraordinariamente variada e exuberante, um verdadeiro paraíso para um fotógrafo amador. Porém, Rohmer resistiu à tentação de deixar as lindas paisagens transformarem o filme numa coleção de cartões postais. Concordei com ele, e então nos restringimos a duas paisagens. Até tentamos garantir que o fundo de cena não fosse muito atraente, pois os personagens tinham sempre que se destacar. A variedade visual do filme vem do fato dessas duas paisagens serem mostradas em horas e luzes diferentes.
Rohmer filma rapidamente, mas não constantemente. A maioria dos diretores chega pela manhã, prepara uma cena (isso se não o fizeram no dia anterior) e pode-se filmar talvez uma hora depois, para aproveitar até o último minuto da diária. Não Rohmer. Ele pode chegar pela manhã e não fazer nada de concreto até o meio dia. Embora pareça estar devaneando, ele age com extrema rapidez quando decide o que quer. Ele pode filmar até dez minutos úteis num só dia (a média são tres minutos, o que é mais do que aceitável), e então dispensar a equipe antes da hora marcada. Seu ritmo de trabalho é muito irregular: às vezes, sem aviso, ele simplesmente não aparece, ou então tira um tempo para correr ao ar livre (inventou o jogging muito antes de virar moda). Admito que fiquei confuso no começo. Mas comecei a me acostumar com essa estratégia incomum durante a filmagem de O Joelho de Claire. Às vezes perdíamos dias inteiros, e a equipe ficava em pânico, achando que o plano de filmagem estava atrasado. Mas Rohmer estava apenas esperando pelo momento perfeito, tanto do ponto de vista da luz ou dos atores, e compensava o atraso em apenas um dia de trabalho.
Já que os técnicos e atores estavam hospedados perto do local da filmagem, todos podíamos esperar. Por isso, filmamos cronologicamente, o que permitiu aos atores ficarem imersos no ritmo de seus personagens, virtualmente vive-los no tempo e no espaço. Todos os efeitos que Rohmer calculara de antemão aconteceram com a precisão de um relógio: as rosas plantadas um ano antes desabrocharam exatamente quando necessitamos, as cerejas amadureceram e ficaram vermelhas quando deviam, Claire (Laurence de Monahan) chegou a Talloires coincidindo com sua primeira aparição no filme.
Como tinha feito em A Colecionadora, Rohmer escreveu o diálogo usando a maneira que cada ator falava naturalmente. De novo, com a única excessão da cena onde Fabrice Luchini e Jean Claude Brialy conversam sentados sob uma árvore, não houve improvisação, e os atores recitavam um texto preciso e minuciosamente decorado. Rohmer está aberto a qualquer sugestão, contanto que ela não tenha relação com o conteúdo. Nisso ele é inflexível. Gosta de usar gente nova, que traga frescor e entusiasmo. Fala muito, mas na verdade está pensando em voz alta, explicando a cada um e a todos o que está tentando fazer. Assim, uma das minhas funções era ouvi-lo. Rohmer espera que a equipe esteja inteiramente à disposição do filme, que se dedique inteiramente ao trabalho. Se as pessoas vão assistir ou discutir outros filmes enquanto filmam o filme dele, Rohmer fica com ciúmes. Nesse ponto ele é exatamente o oposto de Buñuel, que proibia a equipe de falar nas refeições do filme que estavam fazendo. Quando filma, Rohmer interrompe qualquer atividade normal: ele mal come ou dorme, e não dá atenção a sua familia e amigos. Ele entra numa espécie de transe criativo e dedica toda sua força ao que está fazendo. A energia e o impulso de Rohmer são sobre-humanos. Como não tem assistentes nem continuista, ele controla tudo sozinho, até a questão menos importante. Chega a varrer o chão do set depois de um dia de trabalho e faz o chá das cinco para a equipe. Como seria de se esperar, tal dedicação e intensidade geram um entusiasmo semelhante em todos os seus colaboradores. Quem quer que tenha trabalhado com Rohmer num filme guarda recordações inesquecíveis da experiência.
A Marquesa de O. (1976)
Não há nada pior que o abuso de acessórios técnicos: difusores, teleobjetivas, câmera lenta, etc. Quando não têm nada interessante em frente à câmera, muitos diretores recorrem a truques. Felizmente, Rohmer não precisa desses artificialismos. O estilo tem muito a ver com os limites. Quando não há limites, não há estilo.
Minha relação de trabalho com Rohmer foi progredindo, até culminar com esse filme. Apesar de sermos muito diferentes em formação e caráter, em algumas coisas somos quase idênticos. Nosso gosto pela decoração é um pouco ascético, quase calvinista. O supérfluo nos aborrece, o brilho em excesso também. Gostamos de simplificar. Esse ponto de vista comum nos facilitava o trabalho porque não desperdiçávamos energia tentando nos convencer mutuamente. Eu podia fazer uma sugestão com a certeza que ele quase sempre a aceitaria, e se a mesma coisa já não tivesse ocorrido a ele, era porque, por exemplo, ele estava ocupado com os atores. Eu virei um pouco o seu alter ego, e isso economizava tempo. Tinhamos gostos parecidos mas identidades diferentes, por isso complementavamos um ao outro. Rohmer é muito mais intelectual, literário e sua capacidade para abstração é muito maior do que a minha, ao passo que eu sou provavelmente mais sensual, mais físico. Esteticamente falando, a tendência de Rohmer é conter-se. Com outros diretores sou eu quem tende a contê-los, eliminando elementos supérfluos, como travellings desnecessários, ou primeiros planos ornamentais. Com Rohmer acontece o contrário, sua concepção é muito simples, de forma que as vezes eu sinto que deveríamos variar um pouco a construção visual de seus filmes, movendo a câmera levemente, fazendo um plano mais fechado. As vezes, embora raramente, eu consigo convencê-lo.
Mais informações
Man With A Camera : http://www.amazon.com/Nestor-Almendros/e/B001I9W4V0/ref=ntt_athr_dp_pel_pop_1
Néstor Almendros : Man With A Camera : http://www.imdb.com/name/nm0000743/
Eric Rohmer : Man With A Camera : http://www.imdb.com/name/nm0006445/