Foto: Cassio Amarante
Por Danielle de Noronha
“Bingo – O Rei das Manhãs”, estreia de Daniel Rezende na direção de longa-metragem, conta a história de Augusto, um artista que sempre sonhou com seu lugar sob os holofotes, finalmente tem sua grande chance ao se tornar Bingo, um palhaço apresentador de um programa infantil de televisão que é sucesso absoluto. Uma cláusula no contrato não permite revelar quem é o homem por trás da máscara, produzindo em Augusto a frustração de ser o homem anônimo mais famoso do Brasil. Uma surreal história sobre a busca de um homem pelo reconhecimento de sua arte. O filme é inspirado em Arlindo Barreto, um dos vários atores que encaram o palhaço Bozo na “vida real” e resgata diversos elementos da cultura pop – e da própria televisão – dos anos 1980.
O diretor de arte Cassio Amarante, ABC e o diretor de fotografia Lula Carvalho, ASC, ABC falam sobre o trabalho no filme.
Como aconteceu o convite para vocês filmarem “Bingo – O Rei das Manhãs”?
Cassio Amarante: Eu considero o Daniel Rezende, ainda que dez anos mais novo que eu, como sendo da minha geração. A gente já participou de muitos projetos em que eu era o diretor de arte e ele era o montador. Ele começou muito cedo e sempre se destacou pelas qualidades como editor, e o cara para saber editar bem, precisa saber contar histórias, que é a essência desse nosso trabalho. Daniel é um contador de histórias. Então, quando ele conseguiu viabilizar esse projeto, começou a dar forma, ele me procurou e eu fiquei muito feliz. Achei a ideia maravilhosa, nos anos 80 eu estava na FAUUSP, meu sistema operacional é dos anos 80 .
Além disso eu gosto muito de trabalhar com os meus amigos e o Daniel é meu amigo de longa data. Eu consegui trazer minhas talentosas amigas Verônica Julian e Anna Van Steen para figurino e maquiagem. O Daniel convidou o Lula Carvalho, que é parceiro e da geração dele, mas que eu considero da minha geração também. Nós fizemos “Abril Despedaçado” juntos. A gente tem uma visão muito próxima do ponto de vista de como fazer cinema. Tem também o Caio e o Fabiano Gullane, com quem eu trabalho desde os anos 1990, são 20 anos trabalhando com eles. O Luiz Bolognesi, roteirista, era da minha classe da escola, o Beto Villares, compositor, era da classe da minha irmã Lilian… Eu fiquei muito à vontade e a gente pode trabalhar num nível muito bacana.
Lula Carvalho: Daniel Rezende e eu também temos uma amizade antiga e já havíamos trabalhado juntos em outros filmes, como “Tropa de Elite” e “Robocop”. Fiquei muito feliz com a oportunidade, sobretudo, pela experiência que vivemos nesta jornada.
Como foram as primeiras reuniões com a direção e direção de arte/fotografia?
C.A.: Desde de as primeiras reuniões ficou claro que seria crucial resolver os universos das duas emissoras de TV e seus programas, no caso, o infantil do palhaço de uma e as novelas da outra. Assim para construirmos o coração do filme, que são as sequências nas quais vemos os programas sendo feitos, partimos para uma reconstrução com viés tecnológico, na medida que as TVs são para valer, quero dizer que os refletores, as câmeras, os televisores, deveriam funcionar. Foi ai que surgiu a ideia de procurar a TV Cultura, cujas instalações tinham qualidades para fazermos as duas emissoras do filme. Eles toparam e foi um grande ganho de produção. Outro aspecto que destaco é a harmonia com que Daniel e Lula trabalharam desde o principio, o que facilitou muito meu trabalho.
L.C.: Durante as filmagens de “Tropa de Elite 2” e “Robocop”, o Daniel já estava apaixonado por esse filme, de forma que, no momento da preparação, ele já estava muito inspirado e com ideias bem claras para o filme. No início da pré, as primeiras reuniões com o Daniel e o Cássio Amarante foram muito interessantes porque já apontavam caminhos a serem desenvolvidos.
Ao mesmo tempo em que o Daniel nos dava direções bastante sólidas, também estava aberto e nos provocava para contribuir e desenvolver as propostas que ele trazia. Quando eu comecei no filme, o Cassio já tinha bastante material de pesquisa e muitas ideias para trabalharmos. Sua capacidade, talento e visão do filme sempre me impressionaram muito.
Quais câmeras e lentes foram utilizadas? Por quê?
L.C.: Nós usamos duas câmeras RED DRAGON no filme. A escolha foi feita muito pela resposta que essa câmera trás para as cores. Acreditamos que o contraste e saturação que o sensor da RED nos dá contribuiria para uma alma pop relacionada aos anos 80, que estávamos buscando. Além disso, a praticidade e agilidade dessas câmeras são fantásticas e apostamos que esses seriam aspectos fundamentais para conseguirmos executar nosso plano de filmagem dentro do tempo e com a mobilidade e a qualidade que precisávamos. O trabalho de alta excelência feito pelos nossos primeiros assistentes Gabriel Hoffman e Nicolau Saldanha também foi fundamental para nosso filme e juntou-se ao equipamento excelente da Simbora Câmeras.
Desenvolvemos uma mistura de lentes anamórficas HAWK e Zeiss Standard 2.1, sendo que acrescentamos filtros de suavidade às Zeiss Standard.
A escolha das lentes variava de cena pra cena conforme a vida do palhaço ia se modificando. Aliás, essa foi uma das construções bem interessantes da direção com a fotografia: refletir quais seriam os pontos desse personagem a ser representados pela subjetividade desses jogos de lentes. A vida pessoal, a trajetória profissional, os momentos de delírio ou depressão, enfim, esses eram alguns dos elementos a serem desenvolvidos.
Nas cenas em que retratamos o programa de TV do palhaço, filmamos também com as câmeras de vídeo da época. Ao mesmo tempo que eram um belo e verdadeiro objeto de cena e elemento cênico, essas câmeras geraram um material valioso, com a textura do que se produzia na época.
Foram realizados testes prévios?
L.C.: Sim, foram realizados testes principalmente para encontrar o jogo de lentes anamórficas mais viável e adequado à nossa realidade. Foi um trabalho de pesquisa complexo, mas prazeroso de fazer.
E como foi pensada a palheta de cores do filme?
C.A.: Essa pergunta das cores tem a ver com como penso na construção dos filmes, e as cores são consequência disso. O filme se desenha enquanto se constrói. O filme tem esse aspecto, ele é vivo, você não sai com tudo resolvido de cara. A cor é resultado de uma série de escolhas e descobertas, inclusive da fotografia. Acho que foi numa visita ao circo do Domingos Montaigner que fizemos fotos com as luzes do circo, luz colorida, e de alguma maneira decidimos que, quando o programa no estúdio estava no ensaio ou intervalo, as luzes principais se apagavam e revelava-se um universo de cores e luzes muito mais intenso, colorido. Na verdade, funciona em duas etapas: as cores deveriam existir para um preset aceso, durante a transmissão, e quando corta para o intervalo do programa, aquilo tudo que estava aceso se reduz em potência e a gente tem uma tonalidade diferente dentro do estúdio, revelando outras cores, outros climas. A ideia era transcrever as cores da televisão dos anos 80 , explorando esse universo que já existia e que a gente foi desvendando e “elaborando”. É claro que na hora de retratar o interior dos estúdios de televisão há uma certa fantasia sendo registrada ali.
A simplicidade das cores básicas (vermelho, azul e amarelo) pareceu coerente para o programa infantil, e as secundarias inundaram o mundo real, o Opala é laranja, o bar é verde… A cor passou a prevalecer, o filme tinha que ser colorido. Por outro lado, nos estúdios existe muito preto nas paredes secundárias, e esse preto passou a aparecer no restante do filme também. A “cor” branca vai ficando restrita aos pontos de luz, e muito pouco branco é empregado nos materiais e superfícies, com exceção da TV rica, cujos escritórios são brancos. A impressão que se tem é que nos 80 a oferta de novos pigmentos espalhou cores para todas as linhas industriais e têxteis, criando uma série de combinações improváveis e de gosto muito duvidoso.
Foi usado material de arquivo?
C.A.: Eu sempre esperei que a gente pudesse usar propagandas da época, acho que é fundamental na construção da identidade de uma época, entender a publicidade, a propaganda é iconográfica. E elas estão lá no filme. O restante do universo teve de ser reconstruído integralmente, por exemplo: programas, chamadas, jornais, as placas do Mappin, etc. Eu acho que o filme brinca com valores que estão escondidos no nosso design, na nossa cultura, no nosso pop, no nosso kit, e que podem ser bem divertidos para o cinema. Nos anos 80 tudo é meio clássico.
Quais foram as referências para o filme? Algum filme em especial?
C.A.: Não lembro de nos preocuparmos com isso, nossas referências eram os próprios programas televisivos e as pornochanchadas daquela época, cuja reconstrução já era um super desafio. Claro que a foto de alguma cena de algum filme apareceu na minha parede.
Acho sim, que esse filme tem um jogo com a cidade de São Paulo. É um filme feito dentro de um quadrilátero do centro da cidade, que vai da Galeria Metrópole, até o Edifício Itália, daí até a Galeria Olido, fechando com o Teatro Municipal. Dentro do Cine Ipiranga, por exemplo, a gente fez a premiação do filme, um lugar clássico, ao lado usamos também o Hotel Excelsior. Existem ainda dois edifícios do arquiteto Artacho Jurado no filme, o Ed. Louvre na São Luís e o Saint Honoré na Av. Paulista, que são personagens no filme, vistos por fora, e seus apartamentos por dentro. Então, ele tem um pedaço de São Paulo, que é um desenho absolutamente autêntico, nos anos 80 as coisas aconteciam ali, como continuam acontecendo, e é uma fatia da cidade que tem um tempo muito maluco na arquitetura; tem modernismo, tem neoclássico, tem neogótico, é bem atemporal, bem misturado. Este filme explora um pouco esse pedaço da cidade, que é incrível.
L.C.: Não tivemos exatamente um filme como referência visual. Claro que sempre citamos outros filmes e discutimos sobre cinema para exemplificar ideias e buscar inspirações. O grande desafio era encontrar a nossa própria linguagem. Depois das intermináveis conversas fomos encontrando novos elementos a cada dia, de maneira que o próprio filme passou a se revelar para a gente. Cada cena foi construída a partir de suas peculiaridades, sendo algumas rodadas em plano sequência, enquanto outras foram mais fragmentadas, possibilitando cortes rápidos.
O Daniel é brilhante como diretor nesse aspecto, porque tem ideia do conjunto e da complexidade do filme como um todo, desde o figurino aos atores, da arte à fotografia, da montagem à música, e por aí vai. De forma sempre muito inspiradora, o Daniel trazia ideias concretas em alguns momentos e em outros trazia ótimas propostas de caminhos a serem encontrados. E assim a proposta narrativa do filme foi tomando corpo através de sua visualidade, relacionada à estética pop da TV nos anos 80. Essa era nossa atmosfera e referência histórica e, graças ao esforço e dedicação de todos, pudemos imergir nesse tempo.
Como foi o trabalho de construção dos cenários dos estúdios de TV e como foram feitas as cenas neles?
C.A.: Era muito importante a gente conseguir dar veracidade aos dois canais de televisão que a gente retratou no filme. Com a entrada da TV Cultura como parceira, seus estúdios, que foram equipados nos anos 1980, serviram perfeitamente aos nossos propósitos. Tem um lado da TV Cultura que está mais modernizado, a gente fez aí a nossa emissora mais rica, e a emissora mais pobre, a do palhaço, a gente fez na parte mais parada no tempo. Do ponto de vista de cenário e construção foi relativamente tranquilo, porém as câmeras, por exemplo, deveriam funcionar, ser operadas. O ator que faz o cameraman (Augusto Madeira) efetivamente gravou com as câmeras, inclusive acho que tem cenas que ele gravou em vídeo que entram no filme. No fundo tudo tinha que ser tecnicamente correto. Acho que a gente pôde ser muito autêntico, no sentido de ver a imagem em vídeo filmada ao lado da imagem teatral. Num país que é tão televisivo como o nosso, acho que revelar esse universo pode ser bem bacana para a plateia.
L.C.: Para filmarmos as cenas do estúdio de TV, nossa Direção de Arte e de Produção nos presenteou com o estúdio da TV Cultura. Foi a locação perfeita para a gente, não só por sua arquitetura, mas também porque haviam ali muitos elementos que conversavam com a época retratada. O Cassio construiu um cenário que tinha sua inspiração na realidade, mas também trazia elementos pictóricos da história e ainda estava dentro das nossas possibilidades de execução. Essa locação nos possibilitou fazer um plano-sequência do momento da apresentação do programa, no qual seguimos o palhaço desde os corredores até ele chegar ao centro do picadeiro, onde tem um embate com a personagem de Leandra Leal, Lucia, a diretora do programa. Nesse plano, utilizamos o steadicam, operado pelo Fabrício Tadeu (operador de câmera do filme), entrando numa grua para nos colocar num plano geral e, depois, saindo dela para se reaproximar da ação. Nosso maquinista Weber Cunha (Cabelo) operava a grua e conseguia escondê-la ao final do plano, fora do quadro. Foi um daqueles planos que exigem bastante atenção e preparação, com exaustivos ensaios para atingir sua plenitude.
E como foi pensada a luz do filme?
L.C.: A luz do filme foi construída a partir de cores saturadas e alto contraste, mesmo que paradoxalmente tenhamos usado filtros que suavizavam o contraste. Esses filtros foram usados mais com o intuito de trabalhar a textura em paralelo ao contraste que se buscava. Para o trabalho com as cores, apostamos em gelatinas nos refletores muito mais do que refletores de LED e marcação de luz. Tive também a satisfação de trabalhar pela primeira vez com o gaffer Joel Junior, que foi um parceiro espetacular. As lentes anamórficas que usamos também foram muito generosas nesse aspecto da textura e acabaram sendo um elemento fundamental dentro dessa personalidade que buscamos para a luz do filme. O diálogo desses elementos pareceu ideal para representar os anos 80 e trazer a atmosfera pop para o universo do personagem Arlindo, contribuindo para o seu delírio e revelando nosso Bingo.
O que podem nos dizer da parceria entre as equipes de foto e arte?
C.A.: Eu acho que eu e o Lula jogamos muito em parceria nas escolhas que a gente foi obrigado a fazer, toda essa questão dos anos 80, a tecnologia das câmeras, toda a iluminação, tudo precisava ser correto tecnologicamente. Então, para ter o resultado que a gente precisava no vídeo, a fórmula era fazer como no passado. O caminho das pedras foi essa reengenharia da imagem de vídeo que a gente conhecia, e a partir daí passamos a explorar e subverter, para alcançar a dramaticidade que a gente precisava. Do ponto de vista da arte e da fotografia, foi um exercício conjunto de emulação dessa imagem final, que era uma coisa que a gente tinha certeza, e a fantasia de como seriam os bastidores, sem perder a rima com o original e o realismo.
L.C.: Trabalhar com o Cassio Amarante é um grande privilégio. Ele é brilhante e criativo e sua inteligência está sempre a serviço da criação, tanto no âmbito da direção de Arte como nos outros departamentos, em particular no diálogo com a fotografia. Cassio superou de maneira brilhante o paradoxo de ter de representar o personagem do palhaço sem reproduzi-lo e encontrou formas criativas de re-apresentar Bingo, construindo um cenário versátil, que se reconfigurava a cada cena, e verossímil com as características dos programas de TV da década de 80.
Algo mais que gostariam de acrescentar?
C.A: Eu tive uma equipe maravilhosa, sem ela eu não teria feito nada. A equipe de arte é muito grande, a gente vai fazendo escolhas, sim, mas a execução é totalmente coletiva. Um monte de gente trabalhando junto é que resultou no filme que a gente tem hoje. A produção de arte é do Luís Fernando Oliveira, com quem trabalho desde a MTV, fizemos muita TV juntos, o que ajudou muito na realização. Meu fiel assistente /cenógrafo Avelino Los Reis e a genial produtora de objetos, Tatiana Stepanenko, que trazem vida a todos os sets e personagens. É um filme premeditado, no sentido de que foi construído junto, por todos. Todo mundo jogando muito junto e trabalhando para contar a história da melhor forma possível. Obrigado a todos.
L.C.: A marcação de luz foi feita pelo velho parceiro Serginho Pasqualino que é um mestre no que faz e dispensa apresentações. Buscamos consolidar a relação de contraste, saturação de cores e texturas construídas na filmagem, que remetem ao colorido da estética da década de 80. Não houve predominância de tons quentes nem frios, uma vez que a exacerbação de um anularia o outro. O objetivo foi justamente alcançar a riqueza do colorido completo, característico da estética pop do filme.
Ficha Técnica:
Direção: Daniel Rezende
Roteiro: Luiz Bolognesi
Produção: Caio Gullane e Fabio gullane
Direção de Fotografia: Lula Carvalho, ASC, ABC
Direção de Arte: Cassio Amarante, ABC
Trilha Sonora: Beto Villares
Montador: Marcio Hashimoto