Por Tide Borges, ABC
Sou associada da Associação Brasileira de Cinematografia desde o ano 2000. Em 2002, realizamos no Rio de Janeiro o primeiro encontro de profissionais de som dentro da ABC. Para que realizássemos uma atividade em São Paulo no mesmo ano, convidei o Carlos Klachquin, que era o Consultor da Dolby para a América Latina, para dar uma palestra sobre a história da tecnologia sonora no cinema. Logo depois ele se associou à ABC e fizemos várias coisas juntos. Já em 2010, pensando em quem poderíamos convidar, de fora do Brasil, para um debate sobre som na Semana ABC. O Carlos me sugeriu o José Luis Díaz, e ele nos contou um pouco sobre o último trabalho que tinha realizado a Direção de Som de “O Segredo dos Seus Olhos“, ganhador do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro daquele ano.
Nos anos seguintes continuamos a nos corresponder, quando foi convidado a participar do II Encontro Nacional de Profissionais de Som do Cinema Brasileiro, realizado no 8º Festival Cinemúsica em 2014, em Conservatória, RJ. Lá, ele e Guido Berenblum, que havia sido seu discípulo, realizaram uma mesa sobre o som no cinema argentino. Foi uma excelente oportunidade para que, através do som, pudéssemos estreitar os laços entre as nossas cinematografias.
O trabalho sobre o qual José Luis Díaz nos apresentou foi sobre a realização sonora de Relatos Selvagens, filme de enorme sucesso de público na Argentina e atualmente em cartaz no Brasil, onde também tem feito sucesso. José Luis tem um canal no Youtube onde generosamente disponibiliza informações sobre som no cinema. Recentemente, ele carregou 4 vídeos filmados durante uma palestra que coordenou durante a exposição da CAPER (Câmara Argentina de Provedores e Fabricantes de Equipamentos de Radiodifusão) no final de outubro de 2014.
Os vídeos nos mostram as exposições de Javier Farina (Técnico de Som Direto), Gonzalo Matijas (Editor de Ambientes e Efeitos), Gustavo Santaolalla (Música), José Luis Díaz (falando pela Edição de Diálogos). Assistindo os vídeos, fiquei curiosa sobre alguns detalhes e sobre o jeito argentino de fazer som, se era parecido com o brasileiro. E como José Luis é uma pessoa super generosa com as informações, não deixou de responder nenhuma pergunta que fiz! Segue então a entrevista:
Por sugestão de seus pais, que consideravam a profissão de engenheiro eletrônico a “profissão do futuro”, José Luis Díaz fez o curso técnico de electronica e se preparava para fazer o curso de Engenharia Eletrônica, quando aos 15 anos, depois de assistir o filme Dr. Zhivago e ficar vivamente impressionado com o filme, decide que quer fazer cinema. Ingressa numa escola para ser Diretor Cinematográfico em 1974, que fecha um ano depois. É então admitido como estagiário de som e trabalha com Nerio Barberis, que foi seu mestre.
Em 1976, Nerio se exila no México, por causa da ditadura que se instaura na Argentina. JLD segue como microfonista de muitos técnicos de som, mas em 1980 é convidado para ser Técnico de Som e em 1985 faz o som direto de “Esperando la Carroza“, de Alejandro Doria, que se tornou um filme muito famoso na Argentina.
Sem escolas e sem mestre, JLD, inteligente e curioso, entra em algum associações (SMPTE,AES) e através delas, de sua publicações e de livros que ia comprando, isto é, de maneira auto-didata foi adquirindo mais conhecimentos na área. Quando gostava muito do som de um filme, escrevia para o Diretor de Som para entender melhor sua realizacão sonora, como foi o caso de “The Last Wave”, de Peter Weir. Ele escreveu a Don Connolly, que lhe respondeu, explicando como fez o som do filme!
JLD encara cada filme como um desafio e usa esses desafios como um aprendizado.
Tide Borges: Você, como Diretor de Som, escolhe toda a equipe de som, inclusive a do som direto? Qual é a sua posição na equipe? O que vc decide junto com o Técnico de Som Direto, como é essa “relação de poder”? O que realmente você decide, o que discute de som com o diretor?
José Luis Díaz: Com relação aos equipamentos: Não sou eu que tenho a última palavra quando o Técnico de Som Direto decide que equipamento vai levar para o set. Posso influenciar na decisão, mas a responsabilidade é do Técnico de Som Direto. Mas é comum discutirmos que equipamento ele vai levar para o set de um filme para o qual farei a pós-produção.
Com relação a equipe: Não tenho uma equipe de pessoas que trabalha para mim, como se fossem empregados fixos. Não. Eu sugiro o nome de um ou dois Técnicos de Som. Rubén Piputoe Javier Farina são os que eu sempre indico. Só uma vez tive que sugerir outra pessoa porque os dois estavam ocupados, e sugeri Victoria Franzan. Quando eu digo que “sugiro”, quer dizer que indico o profissional e ele entra em acordo com os produtores e acerta suas condições de contratação. Sobre a escolha do microfonista, não intervenho, pois o Técnico de Som terá que trabalhar com ele(a) durante toda a filmagem e é melhor que ele escolha uma pessoa que considere um bom profissional, trabalhador e um bom companheiro(a).
Antes (há vários anos) eu ia controlando a qualidade do som direto. Escutava o som direto com as imágens e, rapidamente, me comunicava com o Técnico de Som Direto, os advertendo coisas do tipo: o microfonista chegava tarde no ator que falava ou outras questões. Mas, já não faço mais isto. Isto porque eles dois, Rubén e Javier, hoje fazem as coisas muito melhor do que eu, se estivesse no lugar deles. Ha 8 anos, eu escrevia de 4 a 8 vezes por filmagem, com comentarios. Hoje isto não acontece mais. São eles que vão me avisando por telefone,WhatsApp ou por e-mail, dos problemas que vou receber com o material que eles gravaram. Mas, na verdade, hoje só fico sabendo dos problemas graves. Eles mesmo vão conseguindo solucionar os problemas durante a filmagem. Geralmente Wild Tracks ou maneiras de microfonar o ator que está em off para que eventualmente sirva como substituto do som do ator que está em quadro e que, por alguma razão, está ruim.
Com respeito à conversa com o Diretor sobre o som de seu filme… tem de tudo. De alguns que confiam em nós cegamente a outros que “brigam” por cada coisa que soa, quero dizer, brigam para que cada som “deva ter sua marca de autor”. Raramente converso sobre o som de um filme com o diretor antes de que se filme. Estive com Carlos Sorín nos primeiros filmes que fiz com ele. Hoje em dia, uma conversa de 10 minutos é o suficiente para saber o que ele quer em relação ao som dos seus filmes.
Às vezes o diretor vem muito à pós-produção de som. Mas são poucos. A maioria acompanha a mixagem, mas não a pré-mixagem de diálogos. Eu mesmo proponho este método. Porque a pré-mix costuma ser muito técnica e buscamos coisas que não interessam aos diretores. Em todo caso, para falar de “Relatos Selvagens“, Damián Szifrón, diretor do filme, pediu sim que não cortássemos as baixas frequências das vozes de Ricardo Darín, Oscar Martinez, Osmar Nuñez nem de Darío Grandineti durante a pré-mix de diálogos. E tinha razão. Sem essa solicitação do diretor, nós (Diego Gat, mixador) e eu teríamos cortado mais dos graves.
Na etapa da pré-mix de Diálogos, buscamos ressonâncias que possam afetar a inteligibilidade e que possam comprometer as vozes. O resultado é que, se fazemos bem nosso trabalho, as vozes permanecem consistentes e inteligíveis durante todo o filme. Neste caso, acatamos seu pedido e nos agradou muito. Esses graves ajudaram a dar personalidade aos personagens que inspiraram os atores, a fazê-los mais hipnóticos. Eu aprendi a escutar mais as vozes. No futuro serei mais generoso com as baixas frequências nas vozes.
T.B.: Qual o tamanho da equipe de som direto? Por que optar por dois microfonistas? Quais eram aqueles dois microfones aéreos que aparecem na maioria das imagens do making off. Além dos dois aéreos, Javier colocava lapelas sem-fio em todos os atores também, ou não havia necessidade?
JLD: O equipamento de Som Direto foi um gravador Sound Devices 788T, com CL9, 2 Schoeps CMC + CUT1 + MK41 (CMC preampilificador, CUT1 corte de baixas frequências com um roll offacentuado, da ordem de 24 dB, colocado na posição 1. MK41, capsula hipercardióide). 1 Lectrosonics Venue VR Field com seis canais (não lembro agora o modelo dos transmissores nem dos receptores), com capsulas DPA, etc.
Em relação a quantidade de gente que forma a equipe de som, geralmente são 3: um Técnico de Som Direto e dois Microfonistas. Às vezes, excepcionalmente são 4 quando incluimos um estagiário.
Trabalhar com dois microfonistas é cada vez mais e mais necessário. Por várias razões:
- Cada vez se filma mais em formatos de tela muito grande (1:2.35) obrigando o diretor a por os atores mais separados entre si. Um microfonista sozinho não consegue chegar a tempo no texto do outro ator.
- Cada vez que há uma cena onde se usa a profundidade de foco, é muito difícil para um só microfonista cubrir bem um ator que está em Primeiro Plano e o outro ator que está no fundo.
- Em cenas de brigas ou discussões é impossível cobrir bem os atores, especialmente se as vozes se sobrepõem (overlaps).
Mas, atenção: está bem que, numa cena onde dois atores estão distantes 2 metros um do outro, se use dois microfonistas para capturar bem ambas as vozes. Mas se eles se aproximam o suficiente (digamos que estão separados por 50 cms ou menos) aí peço ao Técnico de Som Direto que instrua aos microfonistas que, nestes casos, um deles se retire.
É que, neste caso, o som de cada um dos microfones serão muito parecidos, dificultado a tarefa durante a pós-produção de escolher qual é o microfone correto para uma frase dada.
Sim, colocamos lapelas. Sempre. É uma espécie de back up. Para mim, o melhor microfone é sempre o da vara, boom, fishpool. Mas às vezes, em uma tomada o ator vira rápido a cabeça de uma maneira que nunca tinha feito antes. O microfonista não pode seguir a tempo. E, claro, foi a tomada escolhida durante a edição. Essa é uma situação típica para tentar usar o lapela para ajudar durante esse breve momento a manter o plano sonoro consistente. Será necessário mixar e equalizar os microfones adequadamente durante esse breve momento.
Outro uso típico é quando um ator se retira falando e virando as costas num corredor comprido. Mas eu odeio o som dos lapelas. São um mal necessário. Minha luta durante a pós-produção de som é que nunca se note que são lapelas. A única vez que não colocamos lapelas é quando os atores estão nus, se jogam na água ou brigam fisicamente.
T.B.: Javier Farina diz que fez uma pré-mix de todos os canais no canal R, para que o diretor pudesse ouvir e parte da equipe também. Se entendi bem , além do SD788, usa mais dois de mix e dois auxiliares? Como foi isso?
JLD: Sim. Ambos os Técnicos de Som Direto fazem o seguinte: fazem uma mix dos Booms-FishPools num canal. Geralmente o Left. E no canal Right fazem uma mix com os lapelas. Estes canais são usados pelo Director, pelo Continuista, alguma visita importante, etc.
Ambos os Chefes monitoram só o importante (booms, por exemplo, no caso que esta tenha sido a decisão, quer dizer, internamente ele decidiu que esta sequencia estará bem coberta com os booms. Então só escuta os booms). A cada microfonista manda seu microfone para que escute seu trabalho e não contamine sua audição com a reverberância do outro boom. Além disto, grava cada lapela separado. Ou seja, cada microfone, seja boom ou lapela, é gravado em un canal ISO (isolated). Os dois canais de mixagem (booms e lapelas) são os que o editor usa para editar.
Quando nos entregam o filme locked para a pós-produção de som, tiramos estes canais e só usamos os canais ISO. Fazemos isto por muitas razões. Talvez a mais importante é que o Técnico de Som Directo não pode resolver no set o problema de phasing entre os microfones. Isto só podemos resolver durante a pós. O ideal é que só soe um microfone em qualquer momento dado de um filme. Mas a realidade é que isso nem sempre é possível.
T.B.: A questão de reservar um tempo dentro da programação do dia de filmagem para a gravação de sons de cobertura e de sons ambientes é uma questão de rotina nas filmagens argentinas, ou é preciso que a produção seja convencida da necessidade disso? Vc discutiu sobre esse procedimento com Javier?
JLD: Quanto maior o filme, mais difícil é gravar ruídos ou ambientes durante a filmagem. Pelo contrário, quanto menor o filme, mais chances há de comunicar a necessidade ao Diretor/Produtor de gravar tais coisas. Por exemplo, Javier ou Rubén gravam uma média de 200 Wild Tracks durante as filmagens. Este número é o habitual num filme como os de Carlos Sorín. Sorín é um diretor que gosta de trabalhar com uma equipe muito reduzida: entre 10 e 15 pessoas no total. Sempre vai uma só pessoa de som. Ou Javier, ou Rubén. Mas não levam microfonista. Eles fazem tudo: Mixer e Boom.
Este é um caso típico onde é preciso mixar os microfones durante a pós. Obrigatoriamente. Porque o boom nunca poderá cobrir toda a cena, todo o movimento dos atores. Em “Relatos Selvagens” a quantidade de coberturas caiu muito. Não sei quanto, mas caiu. É difícil parar toda a equipe de filmagem para gravar um ambiente. Sobre este tema nós falamos na conferência da CAPER.
E algo que quase nunca fazemos é gravar Room Tones. É uma perda de tempo. Quase nunca um room tone é igual ao ambiente que há durante a filmagem de uma tomada. Geralmente a câmera está desligada, portanto os ventiladores da câmera não giram, às vezes apagam luzes, e com isso baixa a carga elétrica de gerador, baixando assim sua frequência, enfim…
Além do mais, hoje existem vários procedimentos que podemos usar para gerar room tones na pós, usando como base qualquer tomada do filme. É um tema extenso e não quero tornar a conversa entediante. Se quiser, posso mostrar técnicas e nomes de plug ins que resolvem este tópico durante a pós-produção de som.
Ha momentos em que a necessidade de gravação de Wild Tracks é óbvia e é preciso combinar isto com o Assistente de Direção. Por exemplo, durante a filmagem de High School Musical – México e High School Musical – Argentina tivemos muitas cenas com grupos de bailarinos. Era óbvio que tínhamos que gravar in situ os movimentos dessas coreografias, os gritos dos bailarinos, etc. Nunca poderíamos refazer estes sons de maneira barata na pós-produção de som. Desta maneira, sempre foi combinado com a Direção e Produção o momento em que se deveriam gravar as coreografias. Todo mundo compreendia a importância de dispor destes sons durante a pós.
T.B.: Os atores e os diretores estão acostumados a fazer os wild tracks, quando o Técnico de Som Direto acha necessário fazer?
JLD: Não estão muito acostumados. De toda forma, há alguns atores que são campeões fazendo. Ricardo Darín é um monstro. É capaz de repetir exatamente o que fez. Também é um grande dublador de si mesmo (ADR).
Sim. O Técnico de Som Direto é quem deve pedir, durante a filmagem, que quer fazer em um Wild Track. Repetir a fala de um ator porque na tomada gravada ocorreu um golpe em cima da fala, ou porque o microfonista chegou tarde, ou porque essa fala não mantém a consistência de plano sonoro de toda a sequência. Ele é o responsável de prover esse maravilhoso e insubistituível material. E DE NOMEAR ESTES ARQUIVOS DE MANEIRA QUE A PÓS POSSA ENCONTRÁ-LOS! Wild Track que não está nomeado, wild track que está perdido, impossível de achar: é como se nunca tivesse sido gravado.
Ah! Outra coisa, usamos um iPad para criar avisos no set. iPad conectado com CL-WiFi. Deste modo, vai-se gravando como metadados a descrição da tomada e a info do que está sendo usado em cada canal. Quando este material chega pra gente, podemos criar nossa base de dados que nos ajuda a encontrar tomadas alternativas e soluções para nossos problemas de edição de Som Directo.
Se por exemplo, uma fala está ruim em todas as tomadas, buscamos para ver se Rubén ou Javier gravaram um Wild Track com essa fala. E procurar na base de dados é perder tempo SE ELES INFORMARAM nos metadados gerados durante as filmagens.
*Entrevista publicada originalmente no site Artesão do Som.