Glauce Queiroz: ” Torre das Donzelas”

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No último dia da filmagem de Torre das Donzelas, 31 de maio de 2016, o produtor Nuno Godolphim entrevistou a diretora de arte Glauce Queiroz sobre o trabalho no filme e agora o resultado é apresentado no site da ABC.

Torre das Donzelas tem direção de Susanna Lira e fotografia de Tiago Tambelli e traz relatos inéditos e surpreendentes da ex-presidente Dilma Rousseff e de suas ex-companheiras de cela do Presídio Tiradentes em São Paulo. Elas estiveram presas juntas na década de 70 na Torre das Donzelas, como era chamado o conjunto de celas femininas do presídio.

O filme remonta, a partir de fragmentos de lembranças de cada uma delas, uma instalação semelhante ao espaço do cárcere onde estiveram presas. Nesse cenário elas se reencontram 45 anos depois para romper com o silêncio e o medo de relatar os horrores de viver sob uma ditadura. Torre das donzelas é um exercício coletivo de memória feito por mulheres que acreditam que resistir ainda é o único modo de se manter livre.

O longa que se aventura pelo campo experimental do documentário de reinvenção, tomando como referência algumas ferramentas do psicodrama, articuladas num jogo de reconstrução cênica com o apoio de uma instalação de arte semelhante ao ambiente da prisão. A partir de desenhos feitos por cada uma delas e nenhum parecido com o outro, o filme cria um campo de subjetividade ao erguer um espaço cinematográfico em que silêncios, pausas e reticências são tão importantes quanto as palavras. Há desejos que nem a prisão e nem a tortura inibem: liberdade e justiça. Há razões que nos mantém íntegros mesmo em situações extremas de dor e humilhação: a amizade e a solidariedade.

Torre de Donzelas levou o Prêmio Petrobras de Cinema, pela primeira vez escolhido pelo público, da Mostra de São Paulo deste ano, além de ser o vencedor da categoria Melhor Documentário do 20º Festival do Rio e do Prêmio Especial do Júri do 51º Festival de Brasília.

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Diretora de arte Glauce Queiroz

Glauce, quando te apresentaram esse projeto, o que você percebeu do desafio que tinha pela frente?

O maior desafio para a Direção de Arte do Torre das Donzelas foi, sem dúvida, costurar o fio dessa memória coletiva viva e fragmentada das Donzelas (presas políticas da ditadura), a partir dos próprios esboços divergentes delas da ala feminina do presidio Tiradentes de São Paulo, especializando esta ala em uma outra dimensão atmosférica, mais onírica, subjetiva, abstrata, poética, mas também carregada de força, peso, história e atualidade.

Então, foi reunir e transformar todo esse material em uma linguagem única e bem definida para ajudar a contar essa história. Foi conceber um “dispositivo” que ativasse e resgatasse de alguma forma suas memórias silenciadas por tantos anos quando elas percorressem aquele espaço. Foi fazer um longa-metragem documental utilizando recursos de ficção, como a construção em estúdio de um cenário não realista, que fugisse da simples reprodução ou reconstituição de época.

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A ex-presidenta Dilma Rousseff é uma das mulheres entrevistadas no filme

Qual é esse conceito? Como é que foi o trabalho para chegar nesse projeto?

Parti da premissa conceitual de fugir do realismo, em nenhum momento busquei referências de presídios reais ou a planta original do presidio Tiradentes de SP.

Minhas principais referências vieram das artes plásticas, de instalações que utilizavam e representavam cubos de diversas maneiras, com diferentes materiais do cotidiano, tecidos e transparências. Me inspirei bastante em um artista coreano (Do Ho Suh), cuja exposição pude visitar no Tate Modern, que trabalha com esculturas arquitetônicas muito delicadas feitas com tecidos coloridos translúcidos e costuras aparentes (foto abaixo). Também busquei referências em cenários de peças teatrais brasileiras e na arquitetura alemã.

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A monocromia do cenário foi uma escolha (diferentes tons de cinza, preto, branco, tons pastéis… tudo meio rebaixado, apagado, dessaturado). Gostaria de deixá-lo o mais “discreto/invisível” possível para não tirar o protagonismo das Donzelas e das histórias que elas tinham para contar. Além disso, o cinza remetia aos “anos de chumbo”. O figurino também seguiu uma paleta mais fria, mas pontuada pelo vermelho ideológico delas.

Sobre a escolha dos materiais, optei por uma mistura de ferro que trouxe o peso das celas, do confinamento com tecidos cinzas translúcidos que trouxeram a leveza das camadas sobrepostas dessa “confusa/fragmentada” memória.

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A Susanna tinha pensado no início, tinha como referência, o Dogville do Lars von Trier, onde você tinha aquela cidade inteira em um universo plano. A torre por si só é uma coisa que cresce na altura. Como que você conseguiu trabalhar essa dimensão da altura, numa proposta que partia desse plano, dessa quase não presença do cenário?

A principal referência inicial da Susanna era mesmo o Dogville do Lars von Trier, em que temos uma cidade inteira em um universo plano, com poucas paredes, uma quase “não presença de cenário” em uma planta contemporânea mais livre e desenhada no piso.

A torre por si só cresce na altura, como o próprio nome diz. Também precisávamos dos fechamentos/paredes para remeter à clausura e confinamento. Trabalhei com materiais translúcidos que conseguiram cumprir esse papel, mas que também permitiram que, ao mesmo tempo, enxergássemos toda essa planta e a integração das donzelas nos espaços simultaneamente, como no Dogville, gerando diversas camadas sobrepostas e uma grande profundidade no cenário. A partir dos desenhos e relatos das Donzelas percebi que a escadaria em “ferradura” era o coração da Torre, local mais lembrado e desenhado por elas, palco de encontros, chegadas e despedidas. Algumas desenharam somente a escada. Este elemento representava a própria torre e acabou ganhando um lugar central de destaque no projeto.

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Foi a partir dessa escada e ao redor dela que distribui e setorizei os demais espaços e celas do presídio. Outros recursos que utilizei partindo dessa referência Dogville inicial foram os desenhos com giz no piso do cenário (fossa do banheiro, etc.) e grafias com as nomenclaturas/apelidos utilizados por elas dos espaços (celão, cozinha, etc.). Disponibilizamos giz para que elas também intervissem e riscassem o piso do cenário quando quisessem e lembrassem de algo que estava diferente ou que não estava ali.

As celas eram cubos mínimos de ferro modulares e apertados (eleitos como o nosso tijolo, nosso elemento primário) que se repetiam no espaço em diferentes tamanhos e posições, mas cada uma tinha sua particularidade. Desconstruí algumas de suas faces aleatória e alternadamente, trazendo leveza e transparência para o cenário. Uma delas tinha os quatro lados fechados, outra tinha apenas dois e outras ainda estavam suspensas, apenas suas projeções no piso delimitavam seus espaços interiores. Essas celas suspensas deixavam os espaços livres integrados, representando os momentos de convívio entre elas, liberdade conquistada por estas mulheres lá dentro quando a carcereira deixava todas as portas das celas abertas.

Além disso, as celas suspensas representavam esse segundo pavimento do presidio. Os objetos, uma mistura de reais das Donzelas com produzidos por nós, também contribuíam para individualizar cada cela, enchendo de significados e “dispositivos” de ativação dessas memórias.

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Descreve para a gente: quem entrar no estúdio o que irá encontrar e pelo o que vai passar até chegar no final?

Quem entra no estúdio pela porta principal encontra uma grande parede/muro de ferro e tecido translucido, com uma pequena porta de entrada para a Torre, que segundo elas não encostava no chão e era a única comunicação com o pátio de sol. Encostado nessa parede, do lado direito, temos um pátio de sol com tanque onde elas lavavam as roupas e um varal com elas estendidas. Do lado esquerdo uma rede onde jogavam vôlei.

Quando passamos dessa porta, visualizamos do lado esquerdo uma cela cubica com os quatro lados fechados por tecido e outra do lado direito, um pouco mais vazada (dois lados fechados com tecido). Logo à frente, no centro do estúdio, temos uma grande escada de ferro em formato de “ferradura” também fechada por tecido translucido. Abaixo dessa escada temos alguns “mocós”/mesas com livros, objetos que elas recebiam e materiais de artesanato que elas faziam enquanto presas (pintura, crochê, costura, acessórios, bijuterias, etc.).

Logo adiante visualizamos uma pequena escada que ficava no topo da torre e uma pilha de colchões empoeirados. Mais à frente, temos outras duas celas suspensas, com somente suas portas reais de ferro no chão e seus limites projetados no piso. A maior de todas, do lado esquerdo, elas chamavam de “celão” (onde conquistaram até uma TV compartilhada) e do lado direito uma cela cúbica que elas transformaram em uma cozinha comunitária. Perto do celão temos o guarda-roupa compartilhado delas.

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No piso, de todo o estúdio, algumas grafias representando os muros altos onde os guardas apitavam os jogos de vôlei: ruas, postes, os locais onde dormiam os carcereiros, a divisa com a ala masculina, o corredor que dava acesso às celas de presas comuns, etc. Em uma sala ao lado do estúdio montamos uma assembleia com cadeiras, quadro e giz (uma segunda opção de cenário caso elas não se identificassem com a cenografia do Torre, que acabou nem sendo utilizada).

Então, para você, realmente foi um desafio essa coisa da gente partir, não de uma planta, não de um projeto, mas de esboços da memória desse conjunto de mulheres?

Em um projeto de época de ficção, com reproduções e reconstituições fieis, em pré-produção recorremos a uma pesquisa de plantas, projetos, fotos daquela edificação que será reproduzida/reconstituída. No caso do Torre, documentário que se apropria de alguns recursos da ficção, nosso ponto de partida foi os esboços de memória de 16 donzelas.

O interessante, para nossa surpresa, foi que cada Donzela desenhou a torre de uma forma diferente, mostrando que aquele espaço foi vivenciado e era visto por elas de formas diferentes. Algumas desenharam somente alguns elementos, aqueles que lembravam mais ou que gostariam de recordar. Outras desenharam todos os espaços com detalhes. A quantidade, disposição, tamanho das celas variavam nos desenhos.

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O principal ponto comum entre eles era a escada, sempre representada de alguma forma, palco dos encontros e desencontros, de despedidas e cantorias (canto internacional, suíte do pescador). Foi também o elemento mais polêmico no projeto do cenário, elas queriam ver antes, participar e ajudar nessa representação.

Última questão. Por que você fez esse filme? O que que essas mulheres deixaram para você?

Ter tido a honra e a oportunidade de fazer a Direção de Arte do Torre das Donzelas foi um presente. Quando fui convidada para participar do projeto em 2016, tinha acabado de ter um filho em 2015 e este foi o meu retorno ao mercado de trabalho pós-maternidade. Me senti abraçada e muito inspirada por essas mulheres e suas histórias de vida, pela diretora Susanna e por esse projeto lindo, potente, forte/sensível/deliciado ao mesmo tempo, que também fala sobre empoderamento e esse acolhimento/sororidade entre nós.

Além disso, foi minha estreia como Diretora de Arte em longas, depois de 11 anos como Cenógrafa no cinema. Esse projeto, especial em tantas esferas para mim, foi feito muito em família, com uma equipe pequena, meu marido George Saldanha trabalhou na equipe de Som, minha irmã Helga Queiroz fez a Cenografia e meu filho Gael teve uma pequena participação quando ainda era um bebê de 11 meses (que infelizmente acabou não entrando no filme). Além disso minha equipe era principalmente composta por mulheres e amigas.

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Foi um trabalho muito gratificante, desafiador e emocionante: costurar o fio dessa memória coletiva viva e fragmentada e contribuir para a quebra deste silêncio que durou mais de 40 anos. Agradeço imensamente a Diretora Susanna e a você, Nuno, pelo convite e confiança depositada em mim e na minha equipe, por nos permitir esse mergulho profundo dentro da nossa própria história.

Impossível não trazê-lo para atualidade e compará-lo com nossa realidade no País. Vivemos numa frágil democracia, constantemente ferida e atacada, numa espécie de ditadura moderna, as vezes disfarçada, as vezes escancarada, mas também com perseguições e prisões políticas.

Essas guerreiras mulheres deixam para nós e para posteridade exemplo de luta e resistência, exemplo de como seguir e vencer os piores e mais difíceis obstáculos da vida com amor e alegria, como fizeram na Torre. Elas são a prova viva de que não se pode aprisionar a liberdade das ideias, pensamentos e ideologias.

Ficha Técnica:
Direção: Susanna Lira
Assistente de direção: Muriel Alves
Produção Executiva: Nuno Godolphim e Susanna Lira
Produção: Lívia Nunes
Coprodução: Canal GNT/ Canal Brasil
Roteirista: Susanna Lira, Rodrigo Hinrichsen, Muriel Alves e Michel Carvalho
Direção de fotografia: Tiago Tambelli
Operação de câmera: Tiago Tambelli e Jorge Bernardo
Direção de Arte: Glauce Queiroz
Operação de som: George Saldanha e Tito Gomes
Direção musical: Flávia Tygel
Mixagem: Bernardo Uzeda
Montagem: Celia Freitas, EDT, Paulo Mainhard
Maquiagem: Paula Vidal
Distribuidora: Elo Company

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