Heloisa Passos, ABC, DAFB: “Deslembro”

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Por Danielle de Noronha

Com direção de Flávia Castro, o filme Deslembro conta a história de Joana, uma adolescente que mora em Paris com a família. Quando a anistia é decretada no Brasil, ela volta ao Rio de Janeiro, cidade onde nasceu e onde seu pai desapareceu nos porões do DOPS. Lá, seu passado ressurge. O filme estreou em 20 de junho e ainda está em cartaz em São Paulo e no Rio de Janeiro.

Confira a entrevista com a diretora de fotografia Heloisa Passos sobre o trabalho no filme.

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Heloisa Passos e Flávia Castro

Como surgiu o convite para fotografar Deslembro e quais suas impressões ao ler roteiro?

Tive uma primeira conversa com Flávia, falamos de dois filmes que eu fotografei, Rania e Mulher do Pai, ambos as protagonistas são adolescentes, assim como Deslembro. Li o roteiro e fiquei impressionada com a delicadeza dos diálogos e com a força visual detalhada nas sequencias. Ainda não tínhamos nenhuma intimidade, então resolvi enviar para ela o filme que eu estava finalizando naquele momento, meu primeiro longa como diretora e fotógrafa, Construindo Pontes. Logo na sequência veio o convite e eu me mudei para o Rio de Janeiro.

Quais foram as inspirações e referências para a fotografia do filme?

Diário de David Perlov foi uma primeira referência, depois vieram nossos próprios filmes, o curta “A aula vazia” da Flávia, alguns curtas que fotografei, como “Elo” e “Entre lá e cá”.  Depois vieram alguns filmes para sequências especificas, como por exemplo para a luz da noturna do carro: “Era uma vez na Anatolia” de Nuri Ceylan  para as diurnas do carro: “De Jueves a domingo” de Dominga Sotomayor, a reunião que Joana ouve o pai: i início de “Zabriskie Point” de Michelangelo Antonioni.

Esse primeiro momento é maravilhoso, descobrir minha afinidade fílmica com a diretora, depois vem o momento mais importante que é largar as referências e criar o nosso filme, Deslembro.

Deslembro foi filmado com quais câmeras e lentes? Por que vocês as escolheu? Foram realizados testes prévios?

Filmamos com Alexa Mini e Zeiss High Speed MKII. Em poucas cenas temos a 32mm Zeiss standard Speed T2.1 e Arri/Zeiss macro 200mm.Tem uma cena com a câmera Sony a7sII e 50mm Zeiss High Speed MKII e outra com a Sony a7sII e Zeiss 100mm macro.

Foram realizados teste de lentes e filtros na pele da protagonista, testamos Cooke S4/i, Zeiss High Speed MKII e Zeiss standard Speed T2.1, com diferentes filtros difusores. Estes testes foram projetados em DCP na sala de marcação de luz da O2post no Rio.

Nesse momento, a Flávia já tinha muito claro que não queria diferenciar a textura do filme entre o que era final dos anos 1960 e final dos anos 1970. O norte é que tudo o que a gente via era o interior de Joana. Dentro deste pensamento optamos pelas lentes suaves, menos definidas e mais luminosas, as Zeiss High Speed. Não vimos nenhuma necessidade de usar filtro difusor.

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Câmera Alexa Mini e a assistente de câmera Luz Guerra

O filme foi rodado em Paris e no Rio de Janeiro. Como foi a passagem pela França e quais as características do trabalho nas principais locações no Brasil?

O mais importante foi a clareza da Flávia em direcionar toda a equipe, principalmente eu e Ana Paula Cardozo (diretora de arte), para a ideia de que todo o filme passa pelas sensações de Joana. A partir disso foi definida a paleta de cores do filme, o Rio era invernal, com cores frias, e Paris era mais tropical. Um conceito que vai contra toda a convenção estilística das duas cidades, mas que atende ao propósito de Deslembro.

As filmagens se concentraram na cidade do Rio de Janeiro, inclusive os interiores de Paris. Filmamos em Paris somente as externas do filme. Fomos para Paris depois de dois meses da filmagem no Rio.

No Rio temos uma locação principal que é o apartamento onde eles vão morar, onde o tempo passa, tem a televisão, o tédio, o aniversário de Leon, o calor da cidade, o quarto de Joana, a pedra. Essa locação é o coração da fotografia do filme, digo isto como entendimento da fotografia do filme a partir do que Flávia já tinha clareza versus o lugar que vai se transformando no filme.

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Heloisa Passos e Márcio Luiz Lima (Marcinho, gaffer)
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Heloisa Passos e Giba Araújo (maquinista)

Eu tinha um desafio, foi proibido colocar qualquer refletor na parte da frente do prédio, janela principal da sala, muito presente na decupagem do filme. Então, observar a luz natural nesse apartamento foi fundamental para mim, assim, junto com Marcinho (gaffer) e a Lara (assistente de direção), definimos que horas filma o que. A luz natural agregada com pouca luz dentro do apartamento foi o conceito desta locação e a partir dai de todas as outras.

Em Paris filmamos com uma equipe muita reduzida, a primeira assistente de câmera, Marie Mery, entendeu completamente nossa proposta e necessidade. Lá, tive um segundo assistente de câmera/logger, um assistente de elétrica, um assistente de maquinária e um ajudante (motorista). Experiência incrível! Eu falava em espanhol com Marie, em português com o segundo assistente e inglês com a elétrica e maquinária, e claro soltava umas palavras em francês para deixar rolar o melhor clima possível.

Deslembro é o primeiro longa de ficção da diretora Flávia Castro e a temática traz diversas relações com a memória dela. Poderia nos contar um pouco de como foi a parceria de vocês neste projeto?

O que de muito lindo aconteceu nessa parceria foi que tanto eu quanto a Flávia trouxemos nossas experiências do documentário para pensar Deslembro. Após a experiência do Construindo Pontes e do Deslembro ficou muito claro para mim, eu não faço documentário e ficção, eu faço filmes.

Tinha uma delicadeza muito grande em entender os dois mundos e não diferenciá-los; o mundo da vida e sensações da Flávia e o da Joana. Foi assim que fiz minha intuição fluir, agregando o que é da diretora, da personagem, o que é meu, o que é da Ana Paula, o que é de cada um, diariamente recebendo e trazendo para a construção narrativa do filme. O título original do filme era: A memória é um musculo da imaginação, esta foi a minha frase de ordem e desordem para abraçar a câmera e realizar o filme.

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Equipe de câmera: Heloisa Passos, Luz Guerra, Juliana Martins e Judith Chagas

O filme mostra três gerações de mulheres, com diferentes formas de rememorar o passado e viver o presente, e também contou com uma equipe majoritariamente composta por mulheres. Poderia falar um pouco sobre essa presença feminina no filme, tanto atrás quanto na frente das câmeras?

Deslembro é um filme protagonizado e realizado por mulheres.

Inicialmente, eu não era a diretora de fotografia desse filme, então, quando eu entrei no filme a equipe já estava composta majoritariamente por mulheres; a produção (executiva, produtora, assistentes), a diretora de arte, a figurinista, a técnica de som, a assistente de direção. A minha equipe de câmera começou 100% com mulheres: Luz Guerra, Juliana Martins, Judith Chagas, depois venho a Kika Cunha e o Tiago Rivaldo. Eu sempre tento trazer as mulheres para minha equipe, acho importante que elas tenham essa oportunidade, assim como eu tive. Em Paris, também uma assistente de câmera, a Marie.

Uma boa parte do elenco é formada por crianças e adolescentes. Como foi trabalhar com eles e em especial com a estreante e protagonista Jeanne Boudier?

O elenco só chegava no set quando todos os departamentos já estavam prontos, esse foi o nosso combinado. Existia uma sincronia para que isso acontecesse, no caso da fotografia tudo estava muito relacionado com as três semanas de pré-produção que tive e a organização das equipes de assistência de direção (liderada por Lara Carmo) e da equipe de elétrica e maquinaria (liderada por Marcinho), e, claro, a produção caminhando sempre junto, passo a passo com a gente (liderada por Gisela Camara, Bárbara Defanti e Chaiana Furtado).

Quando Joana e os meninos chegavam para filmar existia uma tranquilidade, um silencio para a Flávia contar para eles o que seria a cena. Fazíamos um ensaio ou muitas vezes o ensaio já era filmado.

A preparação do filme foi importante para afinarmos nossos olhares, desenhar os enquadramentos, e também decidir as logísticas de como, quando e onde colocar a câmera e a luz. Mesmo assim, acredito que descobrir como filmar juntas, pela primeira vez, crianças e adolescentes em planos sequências longos e câmera na mão, somente se consolida com os próprios atores no cenário e na luz do filme. Esse era o nosso desafio diário.

O filme viaja entre diferentes lugares. Poderia falar um pouco mais de como a fotografia atuou para diferenciá-los e como foi o diálogo com as equipes de arte e som?

Como já disse antes, não usamos lentes e filtros para diferenciar o final dos anos 1960 e final dos 1970. O mais importante veio do roteiro, em 1969 a câmera é o olhar de Joana, então a altura desta câmera é de uma menina de 6 anos, ela anda, ela respira, ela contempla, ela ouve. A paleta de cor do filme foi minuciosamente pensada pela Ana Paula Cardoso (diretora de arte), pela Renata Russo (figurinista), por mim e pela Flávia. Cores não saturadas no Rio de Janeiro e cores mais vibrantes em Paris. Há muitos anos trabalho com Valéria Ferro, parceira do som e da vida, ela está sempre atenta e propondo um olhar sonoro para os filmes.

Como foi o workflow de pós e qual a sua participação nele?

Depois de algumas visitas de locação, exercitando os enquadramentos nos formatos 1:85 e 2:39 com visor do diretor (artemis), decidimos realizar o filme em 2:39. A locação do apartamento no Rio de Janeiro foi definitiva para entendermos que o filme seria mais cinematográfico no formato 2:39.

Fizemos testes em 2.8K RAW e 2K ProRes 4444XQ, estes testes foram projetados em DCP 2K na O2post no Rio de Janeiro. Junto com a direção e a produção, chegamos à conclusão e decidimos juntas filmar em: 2K ProRes 4444XQ. Por que essa decisão? Se trata de um filme de baixo orçamento, finalizado em 2K e sem efeitos na pós-produção, o que precisa neste momento de decisão é o bom senso, entender o projeto como um todo.

Nesse tipo de projeto, o que eu acho muito importante para realizar o filme é a diretora de fotografia estar presente mais tempo na pré-produção, preparando com todos os departamentos possíveis o filme.

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Juliana Martins (assistente de câmera) ,Giba Araújo e Heloisa Passos

Por último, é impossível pensar no filme e não refletir sobre nosso momento político atual. Na sua opinião, qual a importância do cinema – e especificamente de Deslembro e outros filmes que olham para o passado desde a perspectiva dos dias atuais – para a construção das narrativas sobre o nosso passado e presente?

Nós vivemos em um país onde a anistia foi sancionada para os dois lados: para aqueles que lutaram pela democracia e também para os torturadores. Existe um lapso na nossa história, ninguém foi punido por violentar brutalmente os/as brasileiros/as, e isso, sem dúvida, traz consequências avassaladoras que perduram até os dias de hoje. No dia 29 de julho de 2019, o atual presidente do Brasil violentou os brasileiros ao se referir, de forma vil, ao assassinato do pai do presidente da OAB no período da ditadura civil-militar. Aonde vamos parar? O Estado precisa se responsabilizar pelos crimes ocorridos naquele período.

Deslembro percorre um caminho sensível, um olhar de como o passado, o presente e o futuro breve respiram juntos. Através do universo de Joana, o filme suscita reflexões que vão do pequeno mundo de cada um, do nosso mundo e do nosso país.

Algo mais que gostaria de acrescentar?

Quero citar aqui uma etapa muito importante do filme, a marcação de luz. Realizei este trabalho minucioso de cor e textura com o Fábio na O2post no Rio de Janeiro. Fabinho é um parceiro de longa data, foi na Labocine que realizamos nossos primeiros longas juntos. A marcação de luz do Deslembro foi gerada genuinamente entre descobertas e consolidações de uma forma madura, três pessoas celebrando a cada quadro o que é fazer cinema.

Quero agradecer à ABC pela oportunidade em fazer eu parar e pensar na realização de Deslembro. Vida longa ao cinema brasileiro e à ABC!

Ficha Técnica
Roteiro: Flávia Castro
Direção: Flávia Castro
Produção: Walter Salles, Gisela B Camara e Flávia Castro
Produção Executiva: Gisela B Camara e Maria Carlota Bruno
Direção de Fotografia e Câmera: Heloisa Passos, ABC
Gaffer: Márcio Luiz lima (Marcinho)
Maquinista: Giba Araújo
Direção de Arte: Ana Paula Cardoso
Figurino: Renata Russo
Som Direto: Valeria Ferro
Edição: François Gedigier e Flávia Castro
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