Sobre o Corpo e Seu Espaço: Trânsito e Interculturalidade em Amores Expressos

Amoresexpressos

Por Luana Mendonça Cabral
*Estudante do curso de graduação em Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Espírito Santo.

Introdução

Observa-se, naquilo que se entende por cinema contemporâneo, especialmente nas produções realizadas desde meados dos anos 90 até a atualidade, uma certa reconfiguração do papel do corpo nos filmes. Realizadores atuantes nesse período, como Tsai Ming-Liang, Gus Van Sant, Claire Dennis, Naomi Kawase, Pedro Costa e tantos outros são, em muito, os responsáveis pelo surgimento de novas políticas e poéticas do corpo no cinema, que renovam as estruturas de representação, compreensão e afirmação dos corpos na tela.

Ressaltemos, de antemão, que essa outra abordagem do corpo se apresenta de diferentes formas na obra de cada um dos cineastas citados, com a mesma pluralidade de discursos e estéticas que caracteriza internamente o conjunto desses diversos cinemas. Ainda assim, é possível se falar de uma reconfiguração do corpo no cinema partindo de uma análise das similaridades situadas na gênese da abordagem desses cineastas; não exatamente nos fins estilísticos ou discursivos, nem nos meios, relacionados à própria trama ou à construção da mise-en-scène. Há um sentido – que não raro perpassa os meios e fins aqui citados – mais abrangente, relacionado à compreensão, à apreensão do corpo enquanto elemento de significação do filme. É priorizado o contato do espectador com o filme através das superfícies desses corpos, que já não mais são uma armadura do ser-personagem, constituído primordialmente por sua alma, sua essência, mas constituem o ser em sua totalidade a partir de sua presença no mundo, do choque e do contato com os outros corpos. Um “corpo sujeito do discurso” (BEZERRA, 2010, p. 3), vivo e atuante.

Assim, o espectador, em primeira instância, se envolve com o filme por meio do “contato” com essas superfícies e da apreensão de algo que não diz respeito ao fio narrativo, à trama em si; algo que, de certa maneira, independe de uma linguagem, pendendo mais para o sensorial do que para o cognitivo, como afirma Júlio Bezerra em seu ensaio “O corpo como cogito: um cinema contemporâneo à luz de Merleau-Ponty” (2000). Nele, o autor busca realizar uma aproximação entre a teoria do pensador francês e determinado filão do cinema contemporâneo, identificando, em ambas as partes, uma afirmação do corpo como forma primária de inscrição e compreensão do mundo, que não é superior à linguagem mas possui seus próprios mecanismos e desdobramentos e é, inclusive, anterior à experiência, por assim dizer, intelectual.

As produções cinematográficas mais recentes se inserem, portanto, num contexto que torna necessário o exercício de um olhar mais cuidadoso em relação à articulação da corporeidade e da representação do corpo, humano ou não, na tela. Além dos já citados Hou Hsiao Hsien, Claire Dennis e Naomi Kawase, outros nomes surgem como importantes expoentes dessa ressignificação do corpo no cinema, como, por exemplo, o do brasileiro Karin Ainouz, do tailandês Apichatpong Weerasethakul e o do chinês Wong Kar-Wai. Sobre este último, é interessante notar como a inscrição dos corpos em seus filmes se dá de maneira distinta dos demais citados, distanciando-se, por exemplo, da tatilidade das imagens afetivas de Kawase, ou do cinema de fluxo de Hou. Há, contudo, uma fisicalidade emergente em seu cinema, inscrita nos corpos dos personagens e dos objetos, que também traz em si algo de afetivo e de pré-cognitivo.

Priorizando a experiência – quase sempre dependente de uma memória pré existente no espectador- mas não se desviando de uma construção minuciosa e, com efeito, autêntica do melodrama. Assim Wong Kar Wai realiza filmes que envolvem o espectador, primeiramente, pelas presenças corporais e seus movimentos na tela, para só depois inseri-lo na trama vivida pelos personagens. A narrativa, ainda que construída a partir de fragmentos, está presente e tem crucial importância na compreensão do filme, mas são essas superfícies deslizantes, que se tocam e se chocam, as responsáveis por mediar a relação espectador-filme. Nesse sentido, Amores Expressos (1994), terceiro longa-metragem do cineasta -precedido por As Tears Go Bye (1988) e Dias Selvagens (1990) – é um interessante exemplo da atuação desses corpos em cena, sobretudo por exteriorizar ou “tornar físico”, através desses corpos, algo que permeia o filme também em sua esfera discursiva: a temática dos deslocamentos, da transitoriedade.

Seja o policial 233, que sente a necessidade de correr para se livrar da “água do corpo” e, consequentemente, não mais ter condições físicas de chorar, ou seja a traficante de heroína que passa o dia dando voltas pela cidade até ficar com os pés calejados. Seja a aeromoça namorada do policial 633, que ganha a vida viajando pelo mundo, ou a atendente de lanchonete fast-food que planeja suas viagens e sonha com elas, estando sempre com o pensamento em um outro lugar que não aquele em que ela se encontra fisicamente. Em Amores Expressos, todos os personagens querem ou precisam se mover. E esse desejo – o consideremos como interior, uma vez que se localiza no campo das vontades ligadas às ideias, não “à pele”, ao desejo físico – é exteriorizado justamente por meio dos corpos dos atores, verdadeiros veículos agenciadores responsáveis por promover os incessantes deslocamentos dos personagens na projeção. E, assim como o trânsito é fisicamente representado, o encontro também o é, posto que os primeiros contatos feitos entre os personagens do filme são verdadeiras colisões, choques dos corpos em constante deslocamento na tela que só cessam seus movimentos para, casualmente, se encontrarem.

Neste artigo, buscarei identificar tais marcas de inscrição do corpo presentes em Amores Expressos e investigar uma certa fisicalidade característica de seu cinema que, no filme em questão, se volta não apenas para a materialidade e a superficialidade dos corpos, mas também para suas possibilidades cinéticas, articuladas, sobretudo, por vontades interiores dos personagens. Essa fisicalidade é importante, especialmente, por trazer em si uma representação plástica daquilo que o filme traz em seu âmago, sua essência; ou, simplesmente, do conjunto de temas que o motiva. Promovendo a criação de imagens simbólicas, verdadeiras metáforas visuais para itens discursivos nem sempre claros, por vezes até mesmo herméticos, Wong Kar-Wai presenteia o espectador com uma projeção constituída por várias camadas de significação. Nesse contexto, a relação entre corpo e espaço – o espaço da tela e também o espaço da cidade, diegético – é fundamental para a discussão aqui proposta; é, na verdade, seu elemento mais importante.

1 Corpo e Espaço

1.1 A mise-en-scène em questão

Uma mulher de cabelos loiros, sobretudo e óculos escuros caminha por entre os corredores lotados de pessoas de uma espécie de edifício, um complexo de residências e de lojas situado em Hong Kong, conhecido como Chun King Mansions. Chung King Express. Vemos, no céu, o movimento das nuvens. Surge, primeiro em voice over e depois em presença na imagem, a figura do Policial 233. Ele corre por Chung King Mansions perseguindo alguém, possivelmente um criminoso. As imagens são fluidas e se misturam umas às outras; por vezes, fundem-se em borrões de cor e luz que pintam a tela. Temos a impressão de não conseguir captar todos os movimentos filmados, dada a velocidade com que eles se dão – o congelamento das imagens contribui para isso. É como se o movimento, de tão ágil, fosse inapreensível. O policial e a mulher misteriosa, num choque estritamente corporal, se encontram.

Amores Expressos (Chung King San Lan, China, 1994) começa com um embrião da história que se desenvolverá – e se espelhará – mais adiante. Dividido em duas partes, que possuem um elo de ligação calcado nas relações entre os personagens, o filme nos apresenta a história de dois policiais que atendem por seus números de identificação – 233 e 663 (protagonistas da primeira e da segunda parte, respectivamente) – e seus encontros e desencontros amorosos, marcados por abandonos, dramas e uma certa nostalgia. É através deles que conhecemos os outros personagens da trama, fundamentais para o encadeamento de todas essas relações afetivas que dão motivação ao filme. Amores Expressos se baseia numa estrutura de repetição, principalmente no que diz respeito à trama, mas que se aplica também às questões formais. Como afirma Juliana Fausto em seu ensaio “No Clima para Wong Kar-Wai”, publicado pela revista Contracampo, a duplicidade no filme é quase total. Afirma, ainda:

Lá, há duas moças chamadas May, duas mulheres em perucas louras, duas aeromoças, dois policiais abandonados por suas namoradas. O que sobra então, o que não é repetição, são os detalhes. São eles que conferem singularidade a cada situação, tornando-as verdadeiramente humanas. (FAUSTO, [200-]).

Retornemos à sequência que inicia o filme, anteriormente descrita. Nela, estão presentes elementos que permearão toda a narrativa, sejam eles de natureza retórica ou formal. A narração em voice over que aparece em diversos momentos, costurando a narrativa; o congelamento das imagens em movimento, numa tentativa quase metafórica de lutar contra a efemeridade do presente e a velocidade com que ele se dá; as formas, cores e luzes da paisagem de uma Hong Kong contemporânea e multicultural. Os encontros acidentais e corporais, como o ocorrido entre o Policial 233 e a mulher misteriosa, se repetirão entre o Policial 233 e May, a jovem atendente de uma lanchonete fast food, e também entre o Policial 663 e essa mesma May, sempre casuais e inesperados, sempre físicos antes de sentimentais.

Uma vez que são o passo inicial para o estabelecimento de conexões entre os personagens, esses encontros tem importância crucial na trama. É possível, portanto, falar de uma relação direta entre a fisicalidade, a atuação dos corpos e das superfícies na tela, e o enredo do filme. As formas e superfícies, bem como sua atuação cinética, sua potência e seu movimento, são tão importantes quanto sua trama. São, na verdade, apreendidos pelo espectador anteriormente a ela. Em primeira instância, vemos superfícies, seus movimentos, colisões e reações. Depois, adentramos os personagens e suas histórias.

Existe, nos personagens de Amores Expressos, um desejo (ou uma necessidade) em comum de deslocamento, de mobilidade. Nenhum deles parece estar satisfeito em permanecer em apenas um lugar, ou pelo menos não aonde estão. Partir parece ser a única saída, a única opção. O que vemos na tela é, no mínimo, a representação visual disso. Os corpos dos personagens estão em constante movimento, indo de um lugar para o outro. Eles transitam pelo espaço da mise-en-scène e, como se coreografados, se chocam em meio a esse movimento frenético, constante. O desejo interior é, dessa forma, exteriorizado, como se não houvesse nenhuma barreira, nenhum obstáculo entre o que se quer e o que o corpo é capaz de agenciar. Em seu livro Movimento Total, ao falar sobre o corpo do bailarino, José Gil defende a existência de movimentos de transição, associados ao próprio sentido, “que contém em si sua significação completa” (GIL, 2001, p. 105). Ele explica:

São movimentos que mostram as maneiras de agir, as modalidades da ação quando são efectuadas por corpos. Para apanhar um objeto, temos de nos inclinar, quer dizer dobrar o corpo deixando-o cair ou forçando-o para baixo; para nos afastarmos, temos de deslocar a cabeça enquanto olhamos para o projéctil, etc. Todos estes movimentos que nada significam de preciso a não ser quando se integram em sequências significativas, finalizadas, têm contudo um sentido imediatamente apreensível: dobrar o corpo para diante, abandonar a cabeça à força da gravidade extraem o seu sentido do facto de pertencerem a uma espécie de linguagem do sentido, porque são movimentos do próprio sentido. Abandonar-se ao peso implica uma certa inflexão, um certo deslizar do corpo que faz sentido em múltiplas esferas de movimento: no pensamento (abandono-me aos meus pensamentos pesados), na emoção (cedo à tristeza), na existência (entrego-me ao meu destino), etc. (GIL, 2001, p. 111).

De certa maneira, tais movimentos são como reflexos. Impensados, quase mecânicos, são um meio de se chegar a algo, uma transição entre o estado em que se está e o estado em que se quer estar. São gestos de sentido imediato, que não se ligam a uma “linguagem do corpo”; são, pois, “compostos dos mesmos movimentos abstratos que compõem a emoção” (GIL, 2001, p.111). Transitam entre o corpo e o pensamento, de um sentido para o outro. No filme, o transitar, enquanto gesto, é uma tentativa – talvez inconsciente, talvez não – de mudar de lugar, de se deslocar. É sabido que o simples ato de movimentar-se, de andar pelas ruas da cidade, não surtirá o efeito que realmente se deseja (no caso, o de partir). Contudo, a exteriorização desse desejo parece ser quase natural. Ela se deixa transparecer através do gesto mais puro, mais direto, quase metafórico; se tenho a vontade de me deslocar, por mais abstrato que seja esse deslocamento, a forma mais honesta com que meu corpo pode expressar esse desejo é concretizando, ainda que “a pequenos passos”, a aspiração da alma, do ser em profundidade, quase que literalmente.

1.2 Trânsitos interculturais: diálogos entre o local e o global

Os corpos em trânsito são representados por uma maneira de filmar que prioriza a fluidez dos planos, a relação do tempo com as imagens, em detrimento de uma duração das mesmas. São “Figuras em fluxo, rarefeitas, manchas na tela, corpos que se desmaterializam. Nem alegorias nem símbolos, só experiências que em breve não serão. Fugazes.” (LOPES, 2012, p. 219 ). O congelamento das imagens e os enquadramentos insustentáveis, cuja falta de harmonia entre os pesos torna o equilíbrio impossível, tornando o espaço tão insustentável quanto o tempo, que se constitui por sua efemeridade (VENTURA, 2009, p. 3.425), imperam nos sequências do filme, sobretudo nas exteriores, nas quais a cidade de Hong Kong é uma espécie de palco-personagem, pois não está ali apenas como local onde se desenvolve a trama mas também como uma essência e, acima de tudo, uma presença física relevante para as questões de mise-en-scène. Seu estado de cidade contemporânea e multicultural é ali bem representado por meio de grandes aglomerações urbanas, que participam da coreografia dos corpos na mise-en-scène, e pela construção de uma paisagem que possui interferências da cultura global, ultrapassando as fronteiras entre oriente e ocidente. Uma certa noção de interculturalidade, de relação mútua entre o local e o global.

A trilha sonora de Amores Expressos, constituída, principalmente, por músicas pop de sucesso internacional, de bandas como Cocteau Twins e The Cranberries, algumas cantadas em chinês, também se liga a uma concepção de interculturalidade, “que se opõem a qualquer discurso essencialista de identidade, autenticidade e pureza culturais” (CANCLINI apud LOPES, 2012, p. 35). Como o pesquisador Denilson Lopes afirma em seu artigo Paisagens Transculturais, “é na transitividade da música entre culturas que encontramos uma das paisagens mais ricas para pensar o pertencimento de forma pós-identitária e translocal” (2010, p. 105). Há uma constante troca cultural entre diferentes noções de nacionalidade e de lugar, aglomeradas num mesmo espaço. Assim, as questões de globalização, ligadas ao mercado, passam a interferir também na nossa experiência de vida cotidiana, inclusive estética, e nos nossos afetos e memórias. (LOPES, 2012, p. 35).

A personagem May, interpretada pela atriz e cantora – que dá voz às versões em chinês das músicas pop presentes na trilha sonora do filme – Faye Wong, dialoga com o conceito de interculturalidade a todo momento. Funcionária de um fast food, elemento representativo do capitalismo global, exportado dos Estados Unidos para todo o mundo, a jovem trabalha para acumular dinheiro e viajar (novamente, o desejo de partir é motivação das ações dos personagens). Ela possui interesse especial em conhecer o Estado da Califórnia, nos EUA. Não por acaso, a música que toca incessantemente em seu cd player é California Dreaming, da banda novaiorquina The Mamas and The Papas. Fay consegue realizar seu desejo quando passa a trabalhar como aeromoça. Ela deixa para trás a lanchonete na qual trabalhava e sua relação conturbada (e quase unilateral) com o Policial 633 e vai conhecer o mundo, incluindo a Califórnia. Contudo, ao chegar no destino tão aguardado, se decepciona. O lugar não correspondia às expectativas por ela criadas ao ouvir a música.

Seguindo uma já mencionada estrutura de repetição, o filme apresenta o ofício de comissária de bordo relacionado-o a duas personagens. Anteriormente a May, conhecemos a ex-namorada do Policial 633 através das lembranças deste. Ela ganha a vida como aeromoça, viajando pelo mundo. Um dia, ela parte definitivamente e abandona seu companheiro, sob a justificativa de querer experimentar algo novo. A profissão parece ser uma chave interessante para se adentrar a questão da transitoriedade e também da interculturalidade. Além de permitir o deslocamento por entre os espaços, agenciando partidas e chegadas, ela torna mais possível e simples o trânsito entre diferentes culturas, se as considerarmos dentro dos limites das fronteiras geográficas. As viagens das comissárias de bordo, portanto, estabelecem uma relação quase metafórica com a temática dos deslocamentos. Afinal de contas, qual o sentido mais direto de se conceber uma trajetória constante, motivada pelo desejo de mudar de lugar, de partir, que não estar em um avião que perpassa vários espaços, numa velocidade conferida apenas a ele mesmo?

Acima de tudo, o intercultural em Amores Expressos é representado por elementos globais que se misturam à cultural local, no caso, de Hong Kong. E não apenas a música, antes discutida, é agente dessa interculturalidade. Os sintomas de uma globalização presente estão nas ruas e nas casas dos personagens; no que comem, no que vestem. Desde as latas industrialziadas de abacaxi consumidas com afinco pelo Policial 233 até a logomarca da Coca-Cola, presente em tantos e diversos momentos do filme, percebemos ma interferência de elementos que nada tem a ver com uma cultura nacional nas relações cotidianas dos personagens. É notável, portanto, a existência de uma paisagem transcultural ligada, sobretudo, aos fluxos midiáticos, que ultrapassam as fronteiras nacionais e se misturam à experiência cultural cotidiana local.

Considerações finais

A relação entre o corpo cinematográfico e seu espaço perpassa o filme Amores Expressos de maneira retórica e formal. Temos, no desenvolvimento de sua trama, uma discussão sobre a temática dos deslocamentos trazida, principalmente, pela atuação dos personagens (enquanto construções psicológicas complexas, além das “superfícies”), que estão constantemente em busca de fugir, de partir, com se ir embora fosse a única solução. Contudo, antes mesmo que isso seja desenvolvido discursivamente, vemos, na tela, corpos que transitam incessantemente, correndo de um lugar para o outro; instáveis, assim como os enquadramentos e a mise-en-scène do filme, que se expressam mais dentro do fluxo imagético no qual se constitui o filme do que em si mesmos.

Assim, elementos considerados estritamente visuais não dizem respeito, de fato, apenas à plasticidade do filme. São elos de ligação entre o que vemos e o que compreendemos a partir do desenrolar da trama e dos personagens. Uma relação de troca, completamente mútua, entre a forma e o discurso do filme. Muito por isso, o cinema de Wong Kai-Wai é tão marcado de características estilísticas bem definidas e que estão sempre presentes, em maior ou menor intensidade, em seus filmes. A necessidade de filmar adequando os aspectos formais à temática dos filmes parece ser um tipo de modus operandis do cineasta chinês. Amores Expressos é o filme exemplar disso, devido a sua impressionante sintonia formal e discursiva.

Wong Kar-Wai aposta numa certa fisicalidade do cinema, que valoriza a atuação das superfícies, dos corpos e da matéria, estabelecendo uma relação direta com o espectador e suas experiências através de símbolos visuais, que antecedem a construção dramática. Em Amores Expressos, somos levados a nos identificarmos com os personagens, primeiramente, pelo que vemos e apreendemos das imagens, do fluxo espaço-temporal do qual se constitui o filme. Nesse sentido, a estrutura de repetição – presente não apenas no filme aqui estudado, mas em toda a obra wongiana – parece ser um lembrete, uma recado para o espectador; o que importa, nesse cinema, não é tão somente o arco narrativo que se desenvolve, mas toda uma experiência estética capaz de despertar sensações e afetos. Um cinema para ser apreendido muito antes de ser compreendido.

Referências Bibliográficas

BEZERRA, Julio. O corpo como cogito: Um cinema contemporâneo à luz de Merleau-Ponty. In: Revista da Associação Nacional dos Programas de Pós-graduação em Comunicação, v. 13. Brasília, 2010.

FAUSTO, Juliana. No clima para Wong Kar Wai. In: Revista Contracampo. [200-] Disponível em: http://www.contracampo.com.br/21/wong.htm. Acesso em: 06 de Dez. de 2014.

GIL, José. Movimento Total: O Corpo e a Dança. Tradução de Miguel Serras Pereira. Lisboa: Relógio D’água Editores, 2001.

LOPES, Denilson. No coração do mundo: paisagens transculturais. Rio de Janeiro. Rocco, 2012.

______, Denilson. Paisagens transculturais. In: FRANÇA, Vera; LOPES, Denilson. Cinema, Globalização e Interculturalidade. Unochapecó. Argos, 2010.

MARQUES, Luisa. O corpo que dança e os corpos dos filmes. In: Revista Contracampo. [200-] Disponível em: http://www.contracampo.com.br/91/artcorpo.htm#. Acesso em: 06 de Dez. De 2014.

VENTURA, Fran. Wong Kar-Wai, el Hombre contra el instant. Estética de una filosofia. 2009. 6° Congresso SOPCOM. Disponível em: http://conferencias.ulusofona.pt/index.php/sopcom_iberico/sopcom_iberico09/paper/viewFile/334/318. Acesso em: 06 de Dez. De 2014.

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