A luz em Maputo

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Por Júlia Zakia

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Em maio de 2005, Carlos Ebert me perguntou se eu poderia acompanhar o fotógrafo Eduardo Serra durante sua estadia em São Paulo. O fotógrafo português que vive na França há mais de 40 anos era o convidado-homenageado da semana ABC daquele ano. Estando no último ano do curso de áudio-visual da Escola de Comunicações e Artes da USP e sendo sócia estudante, aceitei o convite e tive prazer em ser cicerone de Eduardo Serra.

Sua fala na Cinemateca Brasileira foi emocionante. Ele falou com naturalidade sobre o trabalho de iluminar no cinema. Comentou sobre o uso e nominação dos “projetores de luz”, como ele prefere chamar, já que um refletor é algo que reflete a luz, como um isopor, mas o que tem lâmpada e ilumina é um projetor, pois projeta a luz. Mostrou também seqüências de alguns filmes dos quais foi fotógrafo, dividindo as experiências e as formas de iluminar e resolver uma cena. Acolheu com gosto a homenagem feita pela Associação Brasileira de Cinematografia.

Afora a cinemateca, andamos por alguns lugares da cidade e conversamos um pouco. Sua calma e silêncio mostram a origem do que é possível ver em seu trabalho no cinema. Seus olhos recebem a vida com serenidade e algum pesar, despertando emoções e uma capacidade técnica que o deixa à vontade com o fazer da luz.

Sua natureza se transforma: ele percebe os sistemas de correntes variáveis e as transfere para outros sistemas, de intensidade, linguagem e tensão diferentes. A luz parte dele e vai em sua direção, ao mesmo tempo. Eles se encontram num ponto e ai caminham juntos para a cena.

Em maio de 2006 tive a oportunidade de acompanhar um período das filmagens de “Diamante de Sangue”, dirigido por Edward Zwick e fotografado por Eduardo Serra. Observar seu trabalho durante essas semanas foi muito importante. Nunca tinha ido à um set de longa-metragem. Havia trabalhado e freqüentado os sets de nossos curtas-metragens feitos na faculdade, mas não conhecia de perto outras formas de cinema, em nenhuma outra escala.

As sequências que acompanhei foram rodadas em Moçambique. Na capital Maputo e em Gorba, uma aldeia estrada à dentro. O vento gelado vindo do Oceano Índico. Um pôr-do-sol com o céu ardendo em cores e movimentos. Um lugar também triste e miserável, mas onde as pessoas vivem num ritmo mais manso, menos estressadas. A vida é mais natural, embora violentada por muitas faltas e guerras, é menos neurótica e mais risonha.

A estrutura hollywoodiana é exorbitante e contrastava com o lugar. Eles realmente têm muito de tudo: pessoas, equipamentos, negativos, veículos, funções e regras. E ver Eduardo inserido nesse contexto, não era diferente de vê-lo aqui no Brasil. Mesmo que aqui ele estivesse narrando algumas experiências, e lá estivesse regendo toda a imagem de um longa-metragem de estrutura pesada e cara, ele se comportava da mesma maneira.

Estava à trabalho e estava nisso com calma, novamente. Sua relação com os câmeras, assistentes, eletricistas e maquinistas era boa. Todos o respeitam. Ele não humilha ouagridealguém pelos erros cometidos. Ele refaz e manda refazer até chegar à sua total precisão, com agilidade e detalhamento, mas sem alarde.

A luz ia sendo construída, natural e expressiva, na experiência de trabalho e na vontade de enxergar. Foi fascinante observar esse querido “mestre de ofício”. Ele olhava o ambiente e começava: “Aqui e ali”, “aqui e ali”; e aos poucos a luz ia sendo feita. Muitas pessoas trabalhando para isso acontecer e ele andando, medindo e instruindo. O cartão cinza levemente amassado no bolso da calça e o fotômetro na mão, com paciência. Antes mesmo de poder rodar, já era possível se sentir inserido na atmosfera fílmica. O entorno era outro.

Tive oportunidade de acompanhar noturnas externas e internas e diurnas internas e externas também. Aprendi muito. Gostei de ver coisas simples como os balões de hélio fazendo a luz da lua na água do mar. Para o filme era só um fundo, o reflexo da luz na água escura. Mas estar ali olhando para o mar e ver aquela lua baixinha, transformando a realidade, foi inspirador.

Ou o final da fuga em “Free Town”, na transição da cena diurna de guerra para a noturna de comemoração violenta, nas ruas ocupadas. Fotografia noturna com o resultado das explosões e mortes do dia, projetores piscando combinados ao fogo de verdade, os faróis dos carros girando em círculo. Muitas labaredas espalhadas, era uma externa gigante, mais de um quarteirão usado na fuga dos dois atores principais. A praça toda e as ruas estavam prontas, a atmosfera toda era quente, dantesca. Podia-se olhar para uma grande distância e ainda ter a sensação daquilo tudo ser real. Estávamos perto do inferno. Crianças brincam armadas, dançam ao pé do enforcado.

Em outros lugares menores, como em uma cena de interior/dia, por exemplo, a luz foi construída a partir de um corredor escuro, com uma fonte luminosa natural, uma porta à alguns metros. Aos poucos as luzes foram sendo acesas, pequenos projetores iluminando os garotos seqüestrados e pelados, amontoados no chão. Uma luz mais leve, na proporção do espaço, contida no reflexo dos corpos pelados. Logo os “revolucionários” chutavam a porta e a luz de fora, natural, entrava rasgando, e ai víamos bem os chutes que davam nos meninos.

“This is Africa”, como é falado pelos brancos do filme, é a fácil justificativa de supor entender a África e seus problemas, vendo-os como sina, fatalidades da história dos povos. Vinda de um país onde se fala português e estando em outro país de mesmo idioma oficial, não podia pensar “Isso é África”, sem saber o que sentir, mas sabendo serem muitas as áfricas e muitas as diferentes vidas. E tendo acesso a elas, a minha presença ali faria sentido.

Estávamos numa cena num campo de refugiados com muitos figurantes em fila. Sentei-me à sombra com mulheres bem jovens, lindas com seus filhos pequenos amarrados a seus corpos pelas capulanas, tecidos coloridos e firmes.

Entre essas moças conheci Felicidade, que falava um português muito bom de se ouvir. Estive atenta, mas não a vi na tela grande, parecia uma massa de retirantes. E lembrarque de perto o olhar dela era tão lindo. Ela falou dos problemas de se viver em Moçambique, mas de muita coisa bonita também.

Os diamantes não são de sangue, eles são de pedra, de brilho, de raro. Os homens é que são de sangue, aprenderam a se comportar assim: pra matar, odiar, usurpar. As facetas dos diamantes se refletem, se espirram e rebatem. Algumas escapam, são os feixes que se esquivam, produzindo outros sentimentos, tão caros às belas luzes de cinema.

E desse tipo é a iluminação de Eduardo, em volume, além do quadro. Não é em superfície; ele insere o set e as pessoas numa outra dimensão luminosa. Muitas cenas poderiam ser rodadas de diversos ângulos, pois a luz estava pronta para o volume da cena em interação com os corpos dos atores. Houve cenas, por exemplo, que foram feitas com 8 câmeras 35mm rodando ao mesmo tempo.

Gostei de ver o filme pronto em tela grande, mas esse olhar e essa iluminação que vi em Moçambique, vai além do filme, porque contempla as coisas. As imagens ficam retidaspor mais tempo em nosso cérebro, podendo ser curtidas como artefato motriz do tempo presente. Vivemos juntos com a projeção e depois dela. No resultado final de “Diamante de sangue”, os cortes em geral são tão rápidos que fica difícil acessar algumas fendas que o cinema pode oferecer, aproveitando as paisagens e os contornos.

Ali ou em qualquer lugar, nós podemos participar de aventuras transformadoras ou ficarmos apáticos aos semelhantes à espera de um colírio exterior, pois os olhos estão grudando, desbotados. A ausência de cor é uma invenção do Homem, como o sangue do diamante. Transmitir o quê, então?

A beleza de ver Eduardo Serra trabalhando estava em como a extensão de um olhar alcança as superfícies da pele, da parede e do vazio, através da luz. E é esse conjunto que toca as coisas: essa luz que vem desse olhar, horizontal.

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