“Cameraperson”, uma câmera que sente

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Por Rogério Luiz Oliveira

“Você me fez chorar mesmo sem eu entender a sua língua” – São as palavras de alguém que, por trás da câmera, ouve o jovem Najibullah Afghan (Najib) contar como ficou sem a visão de um olho e, na mesma ocasião, presenciar o irmão ser desfigurado e perder a vida durante um ataque no Afeganistão. A frase, dita neste contexto, é uma síntese adequada do que provoca Cameraperson (2016), um documentário raro, construído ao longo de 25 anos. É este o tempo de dedicação da diretora de fotografia Kirsten Johnson à profissão. E nesse documentário, que reúne imagens de inúmeros filmes que fotografou ao longo das duas décadas e meia, com diferentes diretore(a)s, ela dá uma aula de cinematografia. Seja pelo aspecto humano e os motivos pelos quais se pode enquadrar alguém no visor da câmera, seja pelo viés técnico-estético que passa pela forma como ela encontra o enquadramento desejado, tudo inspira.

Passando pelas reações provocadas por uma luta de boxe, pelo nascimento de uma criança em condições limitadas na Nigéria, por uma breve reflexão sobre a imagem ao acompanhar o filósofo Jacques Derrida atravessando a rua, experimentando a tensão vivenciada pela equipe diante da fachada de uma detenção para prisioneiros da Al Qaeda no Iêmen; ao ser testemunha, a câmera de Johnson é sensorial, mas sem se render ao horror da guerra. A diretora de fotografia, aqui atuando como diretora que seleciona fragmentos de uma riqueza admirável, nos conduz para dentro do instante de suas escolhas. E como nos ensina a forma como ela controla o zoom da câmera, associado com o controle de foco. O recurso de zoom que normalmente fica de fora das montagens finais, aqui se torna matéria-prima fundamental e, para ela, é sinônimo de busca. Ou, por outro lado, é estratégia de fotógrafos e cinegrafistas que, de longe, registram as imagens da destruição. Em Cameraperson é diferente. O aumento ou diminuição do quadro em muitos momentos é o modo como a direção de fotografia procede na definição da composição mais adequada, acentuando gestos e expressões. É como se auscultássemos o processo criativo dela, sentindo a pulsação de cada tomada de decisão para chegar ao quadro ideal.

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Sem falar na revelação do modo como a diretora de fotografia filma. O tempo das tomadas, o deslocamento da câmera na base do tripé, a corrida da fotógrafa para reenquadrar um camponês que acabou de sair do quadro e que ela se esforça para incluir novamente na composição para dar opções de montagem. A estratégia é recorrente. Ela aperta o botão de gravação e as tremidas de câmera naturais da movimentação brusca, ocasionada pelo deslocamento da fotógrafa e seu equipamento, constituem o todo do plano, tornando as tomadas ainda mais interessantes, justamente por mostrar o que acontece quando o corte predomina. É bem certo que essa convicção que a acompanha em certos planos balança quando a beleza em questão é indigesta. Este é outro aspecto primordial. Em meio ao plano, Johnson indaga, por vezes, junto com a direção, se se deve ou não continuar gravando. É, por isso, um documentário sobre o sentido se registrar as imagens dos outros, o que fica ainda mais acentuado por se tratarem de ambientes em que o sofrimento e a dor fazem parte dos contextos. No entanto, o que salta aos olhos da fotógrafa é a dignidade que está por trás das calamidades. Em lugar de uma observação fria e distante de teleobjetivas, Kirsten chega a brincar – utilizando uma força de expressão -, numa roda gigante com o mesmo Najib, vítima dos ataques ao Afeganistão. Conforme a roda gira, ela esmiúça o espaço em torno, explorando a dança das sombras e as mudanças de cenário provocadas pelo movimento.

Cameraperson é uma vivência íntima com o instante de criação da fotógrafa. Em determinado momento, ouvimos o suspiro de Johnson ao ver um relâmpago cortar o horizonte diante de sua câmera. Por isso, o filme não deixa de ilustrar a espera, a companheira da direção de fotografia, especialmente quando se trata do registro documental. Ouvimos, ademais e curiosamente, o som da respiração e até um espirro nitidamente identificado, de tão próxima que ela está da câmera. Posiciona o equipamento, faz silêncio, e nos convida para sentir espaços que, em muitos dos casos, foram cenário de estupro, tortura, escravidão.

Kirsten Johnson nos leva para uma volta ao mundo: Uganda, Cuba, Libéria, Texas, Alabama, Pensilvânia (EUA), Afeganistão, Iêmen, Nigéria, Bósnia. A experiência cinematográfica neste último território faz com que tenhamos a certeza de que o documentário, além de ser uma coleção singular de imagens e sons, é um convite à profunda reflexão acerca do estatuto da imagem. A todo momento somos convidados a pensar no sentido do registro imagético. E o mais interessante é que isso acontece à medida que as imagens são registradas. Ela reflete, filmando. Ela sente, rodando o take. É como se Johnson pensasse com a câmera ligada sobre a questão da “beleza exorbitante”, para utilizar a expressão de Jean Galard[1] (2012). É como se ela sentisse, junto com as pessoas entrevistadas o que significa ter seus dramas registrados por uma câmera. Contudo, em vez de se render ao voyeurismo pelas imagens cruas de uma realidade sangrenta, ela sonda estes lugares com olhar atento aos detalhes interiores de quem vivencia as situações às quais estão submetidas as pessoas nesses lugares. Sua delicadeza se manifesta quando, na impossibilidade de revelar as identidades, percorre as mãos das pessoas entrevistadas. Ou nos planos em que acompanha as sombras, em vez das coisas. A sugestão é um traço acentuadamente explorado nessa experiência fotográfica.

Cameraperson é, ainda, um grande filme sobre a direção de fotografia porque durante os seus cento e dois minutos revela a imersão de uma fotógrafa no terreno movediço da memória. As imagens resgatadas com habilidade e perspicácia do material bruto de filmes em que trabalhou constituem um conjunto maior, complementado com imagens pessoais de Johnson: a brincadeira com os filhos gêmeos, o momento de descontração com o pai, o enfrentamento da questão delicada vivida pela mãe que convive com a doença de Alzheimer. Este último contexto é enfrentado criativamente pela diretora que, em um dos raros momentos, aparece na frente da câmera revolvendo os baús e caixas com objetos e documentos da mãe.

O documentário nos oferece uma oportunidade de mergulhar no fazer cinematográfico, permitindo compreendermos os caminhos pelos quais passa a construção de pensamento e sensibilidade de uma câmera na mão. Cameraperson é, acima de tudo, um filme sobre a universalidade da imagem, não porque apenas bem feita, mas porque universais são os dramas humanos. Encontramos, nessa volta ao mundo à bordo de um visor, elementos para desvendar a frase retirada do filme apresentada inicialmente. Mesmo que não houvesse legenda para as falas de Najib ou para outros tantos personagens dessa história, ainda assim seria possível sentir e, quem sabe chorar, com as imagens registradas por Kirsten Johnson e outro(a)s diretore(a)s de fotografia que colaboraram com a construção visual desse documentário necessário e indispensável aos que estudam e fazem a direção de fotografia.

[1] GALARD, Jean. Beleza Exorbitante: reflexões sobre o abuso estético. Tradução de Iraci D. Poleti. São Paulo: Editora Fap-Unifesp, 2012.

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