Por Fábio Fraccarolli
Quem se coloca frente a uma pintura de um artista que admira, tenta respirar ali, perto de onde respirou o pintor. Tenta quase que absorver sua autenticidade.
No cinema a autenticidade não é física. Conquista outro tipo de relação com o espectador.
Essa diferença foi tratada de modo exemplar no filme Vertigo (Um corpo que cai) de Alfred Hitchcock (1958). O filme conta a história de um assassinato planejado de forma que a única testemunha, o protagonista Scottie, por uma debilidade em enfrentar alturas, presencie o momento da morte da vítima, Madeleine, como um legítimo suicídio.
A trama se desenrola quando a testemunha, apaixonada pela vítima, é acomedida por uma profunda tristeza e passa a buscá-la na imagem de outras pessoas. É o suficiente para que desvende toda a trama em que estava incautamente envolvido. Neste filme o espectador é forçado a assumir o vertiginoso ponto de vista do protagonista Scottie (James Stewart) que mantém com Madeleine (Kim Novak) uma relação semelhante à de um espectador e uma obra de arte pela qual é aficcionado.
Na história, nos identificamos com Scottie assim que ele se torna um mero espectador seguindo Madeleine pelas ruas de São Francisco, em um suposto estado de confusão mental (ou possessão). A partir daí as relações dos personagens são estrategicamente manipuladas num jogo de inversões.
A idéia, é que a beleza feminina tem o poder de levar o homem à insanidade. Com a técnica de eliminar repentinamente um protagonista, Hitchcock justifica a mente perturbada de Scottie que procura uma dolorosa cura: a cópia perfeita de seu objeto de adoração. Recriar Madeleine em uma transeunte (Judy, também interpretada por Kim Novak) é tão insano e reprovável quanto compreensível.
Mas é também reprovável que Judy aceite ser transformada. Relutante no início, vai se tornando flexível permitindo que Scottie recrie em si o objeto que represente seu original. Scottie foi enganado quando se apaixonou por uma imitação de obra de arte, e o negativo poder da aparência da mulher influiu no caráter do bom homem tornando-o um perverso cúmplice do espectador.
O melhor momento da inversão de relações com o espectador é aquele em que observamos Scottie, que observa Madeleine (na trama, possuída pelo espírito de uma mulher, Carlotta, pintada em um retrato), no museu observando o próprio retrato de Carlotta, que na pintura por sua vez olha para a platéia. Nesta hora o espectador é o “original” buscando sua “autenticidade” na pintura que representa o corpo de sua alma. A figura de Carlotta procura enigmaticamente, algo no olhar do espectador.
A ver, o protagonista Scottie procura ao mesmo tempo a cura para sua obsessão e para sua vertigem. Só a encontra encarando de frente o abismo.
( VERTIGO é hoje considerado a obra prima de Alfred Hitchcock e seu melhor filme. Nele foi inventada a famosa técnica “forward zoom / reverse tracking” ou “dolly out / zoom in” em que Hitchcock gastou exorbitantes US$19.000,00. Foi restaurado em 1997-98 por James Harris e Robert Katz. A versão restaurada está disponÌvel no DVD brasileiro e contém um documentário sobre o filme e a restauração. )
Fábio Fraccarolli é artista plástico e restaurador digital nos Estudios Mega em São Paulo. [email protected]