Por Danielle de Noronha
Eneida, de 83 anos, faz uma jornada rumo a seu passado, em busca da filha primogênita que não vê há mais de 25 anos. Com a ajuda de sua filha do meio, a cineasta Heloisa Passos, Eneida embarca em uma odisseia que tenta derrubar o muro que divide a família. Nesta entrevista, conversamos com Heloisa para saber mais sobre o filme.
Helo, conte um pouquinho sobre quando começou o desejo de realizar o filme e como foi o processo de escrita do roteiro.
Era a primeira vez que eu e minha mãe viajamos juntas em Portugal e era a primeira vez que ela pisava em terras portuguesas. Com um álbum de fotografia na mão, partimos em busca dos lugares onde meu avô viveu até os seus 12 anos. Quando chegamos na aldeia onde ele nasceu, em Trás-os-Montes, minha mãe me pediu para ser filmada, pensando em compartilhar aquilo tudo com suas outras filhas. Um desejo quase impossível que a fez, uma vez mais, me pedir ajuda para se reaproximar da minha irmã mais velha.
A partir dessa viagem surgiu o projeto do filme. Convidei Leticia Simões, minha parceira de escrita, e que trabalhou comigo no “Construindo Pontes”, para escrever o argumento e juntas criamos uma primeira ideia de estrutura dramática na qual Eneida revelava seu caderninho de notas e cartas não enviadas para a neta. Nesse momento, a proposta era ela seguir, em paralelo, uma busca pela neta e pela filha primogênita. Quando estávamos próximas de iniciar a pré-produção do filme, Iana Cossoy Paro se juntou a mim no roteiro e passamos a pesquisar outras possibilidades de narrativa diante da dificuldade de ter acesso a essa parte da família. Iniciamos o roteiro ouvindo Eneida e decidimos montar um set de filmagem num salão de beleza, sem a minha presença. Essa estratégia foi pensada para que minha mãe pudesse contar a história a pessoas que ela não conhecia. Convidei a Rose Verçosa (maquiadora e caracterizadora no cinema) para receber minha mãe no salão, assim como os diretores de fotografia Rui Poças e Janice D’Ávila, responsáveis pela filmagem dessa cena. A partir daí, criamos várias possibilidades fílmicas e o desenvolvimento do roteiro passou a ser realizado em paralelo com o que a vida nos entregava. Digo isso porque um filme é sempre uma reinterpretação, uma reescritura do mundo e nós, documentaristas, também narramos o mundo, tanto quanto a ficção.
“Eneida” tem também um resgate de imagens e narrativas do passado da sua família. Aliás, a memória é um tema central. Como foi a pesquisa desse material e como ele te ajudou na construção visual do filme?
Os álbuns de fotografia que meu avô fazia e dava de presente para a minha mãe me fascinavam. Era tudo muito simples, fotos da família colocadas num plástico e encadernadas. Foi assim que a fotografia entrou dentro de mim, e, como meu avô, eu também faço álbuns de fotografias. A câmera sempre fez parte do meu cotidiano e eu sempre gostei de registrar a família e os amigos. Pesquisar esse material significou abrir os arquivos da família, principalmente o meu e o da minha mãe para poder contar essa história. E contar histórias é lançar o olhar para as nossas memórias, é revisitar lugares e ir atrás do que perdemos. É uma forma de reinventar a memória. Assim foi a feitura desse filme.
Apesar do filme ser centrado numa narrativa autobiográfica, que envolve a sua família, ele trata de questões sociais e coletivas que dialogam com a realidade de muitas outras famílias, em especial vinculadas às mulheres, como maternidade, empoderamento, etc. Também percebemos essa relação individual-coletivo no “Construindo Pontes”. Como é essa relação para você e como isso moveu o seu processo criativo?
Acho que um dos pilares da relação individual coletivo nesse filme é a personagem Eneida. Ela é uma personagem que gera empatia por dois motivos principais. O primeiro é sua busca, seu desejo, sua tarefa dramática de reconciliar-se com uma de suas filhas. Uma filha que rompeu com a família por ter motivos irreconciliáveis que levaram a essa ruptura, motivos individuais que estão diretamente relacionados a grandes questões coletivas, como o patriarcado e a religião. E os próprios temas “ruptura”, “separação” são temas coletivos. Vivemos em um país (e em um mundo) marcado por divisões, rachaduras, quebras. E os possíveis caminhos para desfazer esses abismos provavelmente são coletivos. O segundo motivo são as próprias características individuais, a complexidade e as contradições da personagem que se revelam no filme. Sem ser uma personagem simbólica, Eneida pode ser considerada uma expressão de uma geração de mulheres de classe média brasileiras, equilibristas e mediadoras entre filhos e pais, entre espaços públicos e privados, entre o mundo da casa e o mundo do trabalho, entre desejos e frustrações.
Quais câmeras e lentes foram utilizadas e por que elas foram escolhidas?
Na diária do salão de beleza, se tratando de dois retratos de Eneida, um através do espelho e outro enquadramento lateral mais fechado, usamos duas Alexas XT com Cooke S4. Essa opção foi definitivamente para trazer uma textura suave na pele da personagem numa sequencia única e tão importante no filme.
No dia a dia, acompanhando a vida da Eneida em Curitiba e a busca de Eneida em São Paulo, usamos duas câmeras: Canon C-300 Mark II com as lentes mais abertas e a Sony a7s II + gravador Atomos Shogun com as lentes 85mm e 100mm.
Como o filme é um road-movie da subjetividade, tem algumas câmeras gripadas no carro, essa câmera foi a Sony a7s II + gravador Atomos Shogun com as lentes Nikon 50mm e 28mm.
Câmeras: Arri Alexa XT, Canon C300 Mark II, Sony a7s II + gravador Atomos Shogun. Lentes: Cooke S4 T2.1 (40, 50, 85, 100, 135mm), Canon Cinema Prime CN T1.3 (24,35,50,85mm), Carl Zeiss ZE T2.0 (35mm e macro 100mm), Nikon (50mm T1.4 e 28mm t2.8) e Cooke 25-250mm.
Quem e quais obras te serviram de inspiração para a narrativa e fotografia em “Eneida”?
- “O Marido da Cabelereira” de Patrice Leconte – Para a sequencia do salão de beleza
- “Diário 1973-1983”de David Perlov – Para o cotidiano de Eneida
- “De Jueves a Domingo” de Dominga Sotomayor – para as câmeras dentro e fora do carro
Como era o dia a dia das filmagens e o seu diálogo com as demais profissionais que fizeram a câmera e o som? Quanto tempo levou para o filme ser realizado?
A primeira fase de filmagem, que eu chamo de álbum de família, foi realizada por mim durante alguns anos em momentos espalhados. Eu comecei filmar Eneida dez anos antes do filme estrear, fazendo um travelog com minha mãe em Portugal, depois passei a fazer esse álbum de família, filmando os encontros e desencontros ao redor de Eneida. No aniversário de 80 anos de Eneida, eu não poderia filmá-la, o mais importante era estar comemorando do lado dela, então, convidei o João Castelo Branco para filmar essa festa.
A segunda fase de filmagem se iniciou com o filme contemplado pelo FSA e com o valor do projeto na conta.
A primeira diária do filme aconteceu num salão de beleza, convidei Rui Poças, aip, abc para fotografar essa sequencia e a Janice D’Ávila, abc, dafb para fazer a segunda câmera, o som direto foi realizado por João Godoy, abc.
Para iniciar as filmagens de Eneida na minha casa em São Paulo e na casa dela em Curitiba, convidei Julia Zakia, dafb para fotografar e no som direto tivemos Tales Manfrinato e Lucas Maffini. Para as filmagens de Eneida no trem (prólogo do filme) e para as sequências do final do filme em Curitiba convidei Hellen Braga, dafb para fotografar e Renata Corrêa para fazer a segunda câmera e mais uma vez Lucas Maffini no som direto. A Janice D’ Ávila fotografou também algumas sequências do meio para o final do filme em São Paulo.
O mais importante para fazer esse cinema íntimo que eu faço é a personagem confiar em mim e a partir daí se estabelece uma troca na qual o passo que se dá adiante é sempre junto com o outro.
Como foi a sua preparação e de Eneida para o filme?
Eu acho que a nossa grande preparação para esse filme foi o meu filme anterior, “Construindo Pontes”.
Poderia falar um pouco da dinâmica do workflow de pós e qual a sua participação na em todo o processo de pós do filme?
Tivemos uma única assistente de montagem durante toda a segunda fase do filme, aproximadamente 3 anos. Leticia Mota, além de assistente de montagem, foi quem organizou todo o workflow do projeto, na maioria das vezes os cartões filmados foram descarregados na produtora, dessa forma Leticia organizava todos os cartões por diárias. O material filmado na Sony a7s II, criamos um LUT no Davinci para as diurnas e outro para as noturnas. Durante a montagem do filme, usei muito vezes a ferramenta do color no Premier junto com a montadora, Tina Hardy.
Sua mãe participou de todas as etapas de realização do documentário? Quais foram as impressões dela ao assisti-lo pela primeira vez?
Minha mãe participou do filme com muita entrega e dedicação. Na fase da montagem, eu fui apresentando algumas sequências separadas do filme para ela, essa troca foi importante para ela entender a liberdade que eu tenho para criar o meu cinema.
Como parte do filme foi dublado, nos passamos alguns meses da pandemia fazendo algumas tentativas desse trabalho totalmente novo para nós. Contamos com a experiência do Alessandro Laroca (editor de som e mixador) que foi para nós um maestro para propor como fazer as várias dublagens que tem no filme.
Onde serão as próximas exibições do filme?
O filme está correndo os festivais e em 2023 será lançado nas salas de cinema.
É TUDO VERDADE, 2022, 24˚ Festival Du Cinéma Bréslien de Paris, FIDÉ – Abertura do Festival de Cinema Documental Estudantil, 24˚ Cine Las Americas, 26th Infinnito Brazilian Film Festival, 21˚ EDOC (Encuentros del Otro Cine).
Algo mais que gostaria de acrescentar?
Sim, gostaria de falar de colaboradores fundamentais no processo do filme; do BiD que criou a trilha original do filme, ele criou a música tema do filme pensando nos vários universos do filme, as cordas portuguesas misturadas com melodias judaicas e com a densidade das guitarras distorcidas que reforçam o caminhar da historia. Um trabalho muito junto com a montagem, a trilha sugerindo outras passagens musicais que funcionaram lindamente nesse lugar “on the road” do filme.
Tive duas consultoras, Daniela Capelato no roteiro e Isabela Monteiro de Casto na montagem, foi muito importante o processo de lapidação do filme com a consultoria das duas durante alguns momentos da montagem do filme.
Quero agradecer à ABC e em especial à Dani pelo convite e pela oportunidade de fazer eu parar para refletir no processo da feitura do filme e poder compartilhar com todos que circulam dentro e fora da ABC.
Obrigada.
Heloisa Passos
Ficha Técnica:
Direção: Heloisa Passos
Argumento: Heloisa Passsos e Leticia Simões
Roteiro: Heloisa Passos, Iana Cossoy Paro e Tina Hardy
Consultora de Roteiro: Daniela Capelato
Produção: Heloisa Passos, Eliane Ferreira, Tina Hardy e Pablo Iraola
Produção Executiva: Eliane Ferreira
Direção de Fotografia : Heloisa Passos, abc, dafb, Hellen Braga, dafb e Julia Zakia, dafb
Fotografia Adicional: Janice D’ávila, abc, dafb e Rui Poças, aip, abc
Montagem: Tina Hardy
Consultora de Montagem: Isabela Monteiro de Castro
Colorista: Samanta do Amaral
Som direto: Tales Manfrinato e Lucas Maffini
Design Sonoro: Alessandro Laroca e Eduardo Virmond
Trilha Original: Eduardo BiD
Produção: Maquina Filmes e Muiraquitã Filmes