Por Danielle de Noronha
O diretor de fotografia Toca Seabra, ABC fala sobre o filme “Mundo Cão”, que estreia no dia 17 de março. O filme conta a história de Santana, que trabalha no Departamento de Combate às Zoonoses recolhendo cachorros abandonados. Simpático e bonachão, avesso a confusões, vive razoavelmente bem num subúrbio com sua família, conseguindo manter a violência longe de casa. Até o dia em que captura, exercendo seu ofício, um enorme cachorro. Decorridos alguns dias, apresenta-se alguém, furioso, dizendo-se dono do cão. Por um mal-entendido, o homem se indispõe com Santana, e suas atitudes vão alterar completamente a vida dele.
Como surgiu o convite para participar do “Mundo Cão”?
O convite partiu naturalmente do Marcos Jorge com quem fiz “Estômago” em 2006 e a partir disso desenvolvemos uma relação de trabalho bastante boa, com liberdade e colaboração mútuas. Foi quase natural a gente ter feito este filme juntos pela boa parceria que temos.
Quais foram suas primeiras impressões quando você leu o roteiro?
Ah, eu gostei bastante. Eu gosto das histórias do Marcos e do Lusa Silvestre. Eu acho que eles falam de coisas que me interessam bastante, coisas básicas do ser humano. De fome, de desejo, de vingança (de coisas que são as mesmas desde a antiguidade). Gosto de histórias que tratam do essencial.
Como foi a pré-produção? Quais testes foram realizados?
Na realidade não fizemos testes (porque para fazê-los de fato implicam em locações/figurinos e maquiagem prontos), preferimos nos dedicar a escolher muito bem as locações e tentar mapear os conceitos centrais. Foi uma busca incessante por locações ideais. Claro que quando a gente diz “ideais” queremos dizer “as melhores possíveis”, mas você tem que buscar muito para encontrá-las. Mesmo que você tenha que fazer uma interferência grande como foi feito na casa do Santana (pelo diretor de Arte, Valdy Lopes), a locação pronta possibilitou rodarmos com bastante acerto. Havia uma logística dramática e de produção bastante adequada. A produtora Claudia da Natividade prepara muito bem os filmes, ela faz uma pré-produção bastante longa e eu acho que isso se paga na hora de realizar porque a gente consegue um bom resultado mesmo se tratando de filmes que não são de grande orçamento. Isso me agrada bastante porque na hora que você vai filmar existe uma série de questões já resolvidas. Aí você pode pensar mais nas questões dramáticas. Tanto o Marcos quanto a Claudia sabem equacionar também o filme em relação ao orçamento, não são filmes ricos, mas são filmes que se faz com um grau de competência que eu acho bastante alto.
Quais câmeras e lentes foram escolhidos? Por quê?
Escolhi rodar com uma Alexa porque as câmeras da ARRI, sejam Alexas, Amiras ou Minis, são muito superiores quando comparadas a outras câmeras disponíveis. Para mim é natural a escolha de uma câmera ARRI porque, além dela ter a qualidade igual a qualquer uma das melhores Sony ou RED, ela tem uma ergonomia que as outras estão longe de ter. Então sempre que eu posso, eu uso ARRI. Neste filme alugamos uma Alexa porque era o que tínhamos disponível no deal possível de produção. Eu, hoje, preferiria ter tido uma Amira, que é um pouco menor, equivale mais ou menos a uma Aaton 16mm (melhor ergonomia ever) para nós que operamos câmera. É uma câmera mais leve e eu poderia ter feito melhor a câmera na mão, mas na época ela não estava disponível. Em relação às lentes, nós usamos Zeiss Ultra Prime. Eu gostaria de ter usado as Cooke S4 (minhas favoritas), mas o nosso fornecedor não tinha esse jogo de lentes e locarmos por fora ficaria muito mais caro.
Quando e onde foram as filmagens?
Foram cerca de seis semanas em torno de abril de 2014, em São Paulo. A casa do Santana foi locada num bairro pobre, razoavelmente estruturado, que poderíamos chamar de classe média baixa, formado por gente trabalhadora (a realidade do Santana é o que, segundo o sociólogo Jessé de Souza, podemos chamar de batalhador brasileiro / uma família estruturada ainda em processo de acumular bens imateriais, tempo e conhecimento, além dos bens materiais básicos, para que “lá na frente”, outra geração talvez, possa se constituir como uma classe média baixa emergente). Talvez o que seja mais conflitante nesta história é que essa situação hiperviolenta acontece contra uma família que a princípio teria pouca chance de se envolver com esse tipo de violência. O que acontece é que o Santana (que trabalha no Departamento de Zoonoses) recolhe o cachorro de um marginal, um ex-policial (Lázaro Ramos) que hoje é empresário de jogos ilegais, e a partir daí se desencadeia um processo de vingança brutal que afeta a vida e a história da família dele.
Alguma curiosidade para contar das filmagens?
O filme tem cenas muito interessantes, bem construídas, como uma sequência da morte de um personagem que foi feito com um rigor, que acho, foi a melhor sequência desse gênero que eu já fiz. É um conjunto de planos que começa dentro do ambiente de um necrotério, passa ao exterior e depois, já na rua, dá uma reviravolta que define todo o resto do filme. Essa sequência teve uma construção cinematográfica muito fora do que eu estou acostumado, foi muito especial. O Marcos é um diretor que tem muita experiência de publicidade e quando precisa amarrar uma coisa complicada, com dificuldade técnica, ele tem uma grande facilidade. É muito tranquilo trabalhar com ele nesse aspecto porque domina muito bem a narrativa cinematográfica.
Outra coisa são os atores. O que mais me mobiliza quando eu faço um filme é a voltagem do desempenho dos atores. Neste caso trabalhamos com três atores incríveis: Lázaro Ramos, Babu Santana e Adriana Esteves. Realmente incrível. Também teve a questão de trabalhar com cachorros, não é fácil, né? Tem dias que eles estão mais energéticos, outros menos. Não foi fácil não, foi muito bacana, mas eles deram muito trabalho.
Onde você buscou inspiração para a fotografia deste filme?
Eu busco sempre no roteiro. Vou tentando entender ele como se fosse um mapa poético. Você tem que fazer uma cartografia da emoção dos personagens e da narrativa, de como essa história vai sendo conduzida. As cenas de família são mais acolhedoras. Quando o universo do marginal se instala, as cores do filme se tornam menos quentes, mais frias e descoloridas. Tem um certo contraste que incomoda as vezes. E nesse filme experimentei uma opção que não usei quase nunca. Em geral usamos diafragmas bastante abertos, para ter desfoque no fundo, mas nesse filme eu tomei o partido oposto. Eu trabalhei com o diafragma muito alto, porque eu queria adicionar dureza. Eu quis mais profundidade de campo, que as coisas estivessem foco, não sempre seletivo, queria que tivesse tudo em foco. Ambientes mais duros, não acolhedores, que eu acho que mesmo inconscientemente tem um peso narrativo. Imagino que isso pode ajudar a traduzir um pouco a falta de escolha, que em determinadas situações, a vida te coloca e você é obrigado a lidar. De um modo ou de outro.
Como foi a parceria com o diretor de arte?
A parceria com o Valdy foi a melhor possível. Falamos bastante de cor, de luz, de texturas. A percepção dele é muito apurada e o que ele construiu foi de encontro com o que me parecia adequado também. A casa da família é um primor, sensacional. Os outros lugares também. Eu fiquei super a vontade. Eu acho que quem é bom, em geral, é muito colaborativo. Acho que quanto melhor é a pessoa/o profissional que você trabalha, com raras exceções que por sorte não conheço, mais fácil é realizar o trabalho, mais generoso. Estamos juntos pra fazer o projeto, o que conta é o filme, não nosso trabalho individual.
Como foi o workflow de pós? E como foi sua participação nesse workflow?
Olha, o nosso supervisor de pós foi o Sandro Di Segni e ele desenhou as soluções para os problemas/sequências que a gente apresentava, apontando o que era possível fazer. Tem sequências complicadíssimas, bem complexas. Então a decupagem era feita baseada naquilo que a gente já sabia que ele tinha de soluções para nos dar. A finalização foi bastante sofisticada. Mas eu não participei muito. Durante a filmagem o Sandro me dizia o que ele precisava, mas eu não fiz o processo de construção das imagens. Eu voltei pro Rio e o Marcos fez com o Sandro. Depois eu voltei para São Paulo para marcar a luz com o colorista Foca (O2), por uma semana, mas o filme já estava todo editado.
Qual a sua expectativa para a estreia do filme? Como você acha que o público vai recebê-lo?
Num outro momento, o “Mundo Cão” poderia ser um mais filme popular, mas talvez ele não tem as características “infantilizantes” dos filmes que são populares hoje em dia.
Você ficou satisfeito com a cópia final DCP?
Fiquei muito satisfeito. Na realidade, eu sou bastante contente com o mundo digital, eu adorava película, mas odiava os laboratórios (exceções pontuais à parte), porque finalizar os filmes aqui com as condições que a gente tinha era muito difícil. Eu fico muito contente de ter o DCP hoje porque ele é menos descontrolado. Claro, tem uma sala diferente da outra, mas o nosso país não tem padrão para nada. Não tem padrão para saúde, para educação. Vai ter padrão pra DCP?
Ficha Técnica
Diretor: Marcos Jorge
Produção: Cláudia da Natividade e Iafa Britz
Direção de Fotografia: Toca Seabra, ABC
Direção de Arte: Valdy Lopes
Figurino: Cássio Brasil
Som Direto: Romeu Quinto, ABC
Montagem: Andre Finotti