Os edits e seu impacto na promoção de filmes nacionais

Leia artigo de bacharela em Cinema e Audiovisual pela UESB
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Foto: Arquivo Pessoal

Por Jessica de Jesus Teixeira Dias[1]

Este trabalho explora o crescente interesse do público pelas produções audiovisuais brasileiras, atribuindo esse fenômeno à atuação de perfis online que compartilham edits de filmes. Essas montagens curtas têm se mostrado eficazes em despertar a curiosidade dos(as) telespectadores(as), contribuindo para um aumento da apreciação e do reconhecimento do cinema nacional.

Criadora do site Mulher no Cinema, a jornalista Luísa Pécora inicia um artigo para o site do Itaú Cultural (intitulado “Cinema brasileiro: o desafio de alcançar o público”) com uma reflexão necessária: como podemos conectar o público aos filmes nacionais? Essa questão recorrente evidencia um abismo percebido entre nós, brasileiros, e nossas próprias produções cinematográficas. Esse distanciamento, por sua vez, gera uma espécie de aversão por parte do público em relação aos filmes nacionais.

Considerando esse relevante problema que afeta nossa população, têm sido discutidas e implementadas várias contrapartidas. Dentre elas, destacam-se as cotas de tela para filmes brasileiros nas salas de cinema, esforços para uma divulgação e uma distribuição mais abrangentes dessas obras, e incentivos governamentais direcionados à produção cinematográfica nacional. No entanto, dentre todas as estratégias possíveis, dificilmente se imaginaria que uma das soluções poderia emergir de “edits” compartilhados nas redes sociais, trazendo uma renovação na forma de ver os filmes brasileiros que já foram lançados.

Termo originário do inglês para “editar”, o “edit” consiste em um vídeo curto composto por fragmentos de cenas de filmes, séries ou videoclipes, rapidamente editado com música de fundo ou frases memoráveis dos(as) personagens. Os registros de edits no YouTube tem seus rastros desde 2012, mas sua popularidade cresceu exponencialmente com o início das redes sociais, mais especificamente o Facebook. Tornou-se, então, uma prática comum entre fãs, que dedicam horas para produzir essas montagens, muitas vezes enaltecendo seus(suas) personagens favoritos(as).

Com o avanço tecnológico, aplicativos atualmente permitem a criação mais ágil de edits e sua rápida disseminação para um público mais amplo. Além disso, plataformas como TikTok e Instagram, ao priorizarem a postagem de vídeos curtos, amplificaram a exposição desses conteúdos, impulsionando-os, por meio de algoritmos direcionados, para usuários que consomem esse tipo de material.

Os edits compartilham uma estética semelhante a trailers já consolidados na promoção e na divulgação cinematográficas, pois consistem em montagens ágeis das cenas mais impactantes de um filme, buscando despertar a curiosidade do(a) espectador(a). A distinção crucial entre trailer e “edit” reside no fato de que, no “edit”, testemunhamos a visão singular do montador/editor, que possui a liberdade de manipular o filme de acordo com sua perspectiva. Isso pode resultar na ênfase de um vilão, por exemplo, mesmo que sua participação na trama original seja mais discreta. Além disso, os “edits” destacam-se por sua brevidade, podendo ter menos de 60 segundos, enquanto os trailers costumam ter uma duração entre 2 e 4 minutos, e contam às vezes com o recurso da narração e texto, coisas que não são tão comuns em “edits”.

Após esclarecer essas diferenças, entraremos agora no âmbito em que os edits se tornaram populares: as redes sociais, mais especificamente o X (antigo Twitter). Trata-se de uma rede que costumo utilizar e na qual vi três desses pequenos vídeos que me chamaram a atenção e sobre os quais tratarei aqui.

Esses edits não eram de filmes ou séries internacionais, como vejo frequentemente, mas sim de produções brasileiras como “Bingo: O Rei das Manhãs” (2017), dirigido por Daniel Rezende e ganhador do prêmio Grande Otelo de Melhor Longa-Metragem de Ficção; “Eu Sei Que Vou Te Amar” (1986), dirigido e roteirizado por Arnaldo Jabor (1940-2022), responsável por garantir a Palma de Ouro de Melhor Atriz para Fernanda Torres no Festival de Cannes; e “Hilda Furacão” (1998), minissérie da TV Globo dirigida por Wolf Maya.

Essas produções, apesar de muito impactantes e de qualidade ímpar, surpreendentemente não aproveitaram do mesmo nível de reconhecimento que tiveram referências como “Central do Brasil” (1998), “Cidade de Deus” (2002) ou até mesmo um filme mais comercial, como “Minha Mãe É uma Peça” (2013).

A descoberta desses edits de filmes brasileiros despertou em mim e, pelo que pude identificar, em outros usuários do X (antigo Twitter) a reflexão sobre o impacto positivo que essa modalidade de divulgação pode ter em nossas produções cinematográficas. Ao lançar um holofote sobre filmes nacionais, essa iniciativa tem o potencial de reacender o interesse do público, seja para rever os títulos ou, em muitos casos, para assisti-los pela primeira vez.

Termo originário do inglês para ‘editar’, o ‘edit’ consiste em um vídeo curto composto por fragmentos de cenas de filmes, séries ou videoclipes, rapidamente editado com música de fundo ou frases memoráveis dos(as) personagens.”

ANÁLISE DOS DADOS

Analisando esses três exemplos de filmes brasileiros, a partir de uma investigação rápida utilizando o Google Trends (ferramenta disponibilizada pelo Google que rastreia o volume de pesquisas de um termo ao longo do tempo e apresenta um gráfico que mostra o interesse dos usuários ao longo dos anos, traçando um panorama de 0 a 100, sendo 100 o número máximo de interesse pelo tema), percebi dados interessantes sobre o filme “Bingo: O Rei das Manhãs”.

Por exemplo, em 31 de agosto de 2019, o interesse por esse termo era 7; entretanto, em 28 de março de 2020, esse número aumentou para 18, mais notavelmente em 21 de janeiro de 2023, quando houve um crescimento relevante (21). E, em março do mesmo ano, esse número subiu para 29. Paralelamente, a conta no Instagram e no X/Twitter @scfimoon, especializada em compartilhar edits de filmes e que acumula uma base de 25,2 mil seguidores, teve seu primeiro edit de filme brasileiro publicado em novembro de 2021. O edit de “Bingo: O Rei das Manhãs” foi compartilhado em julho de 2023, alcançando grande repercussão, com 40,2 mil curtidas e 15,6 milhões de visualizações no X/Twitter.

Outro exemplo notável é o de “Hilda Furacão” no Google Trends. Houve um aumento considerável nas buscas relacionadas à minissérie ao longo dos anos. Por exemplo, em 16 de fevereiro de 2019, alcançou 6 de interesse por parte dos usuários, e em 30 de dezembro de 2023 esse número aumentou para 100. A crescente curiosidade dos usuários em relação à minissérie foi sentida pelo aumento da busca pelo termo “Hilda Furacão onde assistir”, refletindo a demanda do público por informações específicas relacionadas à disponibilidade da série.

Além disso, o filme “Eu Sei Que Vou Te Amar”, que em 13 de fevereiro de 2021 tinha um total de zero interesse, apresentou um cenário completamente distinto entre 13 e 19 de fevereiro de 2022, com 76 de interesse. Já entre o final de 2023 e começo de 2024, o interesse pelo tema aumentou para 100, mesma época em que o perfil do X/Twitter e do Instagram @scfimoon fez a postagem do edit do filme, alcançando só no X/Twitter 59,8 mil visualizações, além de outras 49 mil no Instagram. A segunda pesquisa relacionada a esse tema é “Eu sei que vou te amar onde assistir”,  mesma situação que aconteceu com “Hilda Furacão”.

Esses dados revelam, de forma otimista, a notável influência das redes sociais na ressurgência e promoção do cinema nacional. Esses espaços se tornaram plataformas-chave para impulsionar o interesse por filmes brasileiros, não apenas reacendendo a curiosidade, mas também redesenhando estratégias para atrair mais espectadores(as).

O cineasta Ygor Palopoli,em um vídeo compartilhado nas redes sociais, explora a ascensão dosedits de “Hilda Furacão”, exemplificando como essa minissérie alcançou um novo destaque, especialmente em âmbito internacional, graças aos editsdivulgados no TikTok. O sucesso meteórico desse conteúdo desencadeou um fenômeno, impulsionando a criação de um número considerável de contas dedicadas a esse tipo de produção.

Para além desses dados, é interessante trazer aqui um pouco da história e a importância da montagem no cinema mundial, que foi uma das responsáveis  pelo desenvolvimento da linguagem cinematográfica. O cineasta estadunidense Edwin S. Porter (1870-1941), com o  “O Grande Roubo do Trem” (1903), foi considerado o “pai” da montagem cinematográfica. Em seu filme, ele experimentou técnicas como o uso de cortes para criar tensão e contar uma história mais complexa.

Já o diretor estadunidense D.W. Griffith (1875-1948), em “O Nascimento de Uma Nação” (1915), expandiu ainda mais as técnicas de montagem, introduzindo close-ups, movimentos de câmera e a ideia de contar uma história por meio de diferentes ângulos e perspectivas.

Não podemos esquecer do realizador soviético Sergei Eisenstein (1898-1948), um teórico influente da montagem em “O Encouraçado Potemkin” (1925), desenvolvendo a teoria da montagem dialética e destacando a importância dos contrastes e conflitos para criar impacto emocional e político.

Além desses diretores, o britânico Alfred Hitchcock (1899-1980), mais conhecido como o “Mestre do Suspense”, utilizou a montagem de forma única para criar tensão e envolvimento emocional em seus filmes, como no clássico “Psicose” (1960), com sua famosa cena no chuveiro.

Temos também o importante movimento de cineastas franceses mundialmente conhecido como Nouvelle Vague, que ocorreu entre o final da década de 1950 e o início dos anos 1960. Grandes nomes como Jean-Luc Godard e François Truffaut desafiaram convenções narrativas e experimentaram, por meio da montagem, diversas formas de expressar suas visões artísticas.

Outro ponto importante na história da montagem mundial é o papel das mulheres, muitas vezes invisibilizado. Antigamente, a montagem era artesanal, cortando-se e colando-se as películas. Essa função foi comumente atribuída às mulheres, por ser considerado um trabalho mais “delicado”, criando assim grandes nomes de montadoras, como Dorothy Arzner. Nos anos 1920 e 1930, Dorothy desafiou normas de gênero ao se tornar uma das primeiras diretoras de Hollywood. Ela também trabalhou como editora antes de se tornar cineasta, contribuindo para a edição de filmes silenciosos. Além dela, Margaret Booth, conhecida como “a mulher que corta os filmes de Hollywood”, foi uma das primeiras mulheres a se destacar como editora-chefe de um grande estúdio de cinema, a MGM. Sua carreira se estendeu dos anos 1910 até 1960.

Um livro que contribui para o entendimento da história e dos tipos de montagem cinematográfica é “Estética da Montagem” (2016), de Vincent Amiel, que destaca os diversos tipos de montagem presentes no cinema. Amiel explica também sobre os raccords, termo francês que significa “ligação” ou “conexão”, e no contexto cinematográfico se refere às técnicas utilizadas na montagem para garantir uma transição suave e contínua entre diferentes planos, cenas ou elementos visuais. Essas técnicas são fundamentais para criar uma narrativa coesa e envolvente, permitindo que o filme flua de maneira harmoniosa.

Na leitura de “Estética da Montagem”, pode-se identificar nos raccords e na montagem por correspondência, fortemente influenciada pelo cinema da vanguarda francês, algo que existe em “edits” como “Bingo: O Rei das Manhãs”: os usuários narram histórias que se assemelham às do filme “Coringa (2019)”, de Todd Phillips. Os editores manipulam os cortes de forma a aproximar a experiência do(a) espectador(a) da atmosfera de “Coringa”. Esses dois filmes contam histórias distintas, mas a montagem das edições busca encontrar semelhanças entre as narrativas, aproximando os dois universos e permitindo que cada criador expresse sua visão artística dos(as) personagens, e até mesmo do filme como um todo. Dessa forma, esses pequenos fragmentos redefinem o poder da edição, trazendo uma perspectiva artística que vai além do diretor original, oferecendo uma interpretação única e pessoal do filme e usando técnicas de montagem que foram utilizadas por grandes cineastas do mundo.

CONCLUSÕES

Esses pequenos vídeos que, muitas vezes, se tornam virais são testemunhos convincentes do poder intrínseco ao marketing orgânico das redes sociais. Além disso, reacendem o interesse por filmes brasileiros e têm desempenhado um papel fundamental na reinvenção de estratégias de marketing e divulgação. Funcionam, ainda, como uma porta de entrada para um novo público, proporcionando uma abordagem mais dinâmica e envolvente para a promoção cinematográfica. A capacidade desses vídeos em capturar a essência de uma produção, até mesmo de mostrar o olhar daquela pessoa que fez o “edit” e transmitir emoções em poucos segundos, é um testemunho do potencial revolucionário das plataformas digitais para redefinir narrativas e táticas de marketing, expandir o alcance de obras e facilitar o acesso de diversas pessoas a produções fora do eixo cinema e streaming.

Esses pequenos vídeos que, muitas vezes, se tornam virais são testemunhos convincentes do poder intrínseco ao marketing orgânico das redes sociais. Além disso, reacendem o interesse por filmes brasileiros”

A disseminação dos edits nas redes sociais, portanto, tem aproximado os usuários do cinema e, mais especificamente, do cinema brasileiro, estabelecendo uma reconexão entre diversas obras e seu público. Essa proximidade não se limita à apreciação das obras, mas também abrange o entendimento do processo cinematográfico em si.

Isso porque os edits têm bases sólidas e justificáveis dentro da montagem cinematográfica, proporcionando uma introdução acessível para aqueles que não possuem um conhecimento teórico aprofundado. Essa abordagem, portanto, não apenas destaca as maravilhas do ato de montar e editar narrativas, mas também incentiva o exercício da criatividade artística.

Dessa forma, os edits despertam o interesse dos brasileiros por suas próprias obras cinematográficas, criando uma ponte entre o público e o cinema nacional. E esse fenômeno evidencia não apenas a influência do conteúdo gerado pelo usuário na divulgação de filmes, mas também destaca o poder transformador das redes sociais na criação de comunidades engajadas e na promoção cultural. Em suma, o sucesso dos edits não se restringe ao entretenimento, mas representa um marco na forma como a arte cinematográfica é compartilhada, apreciada e disseminada atualmente.

Referências

AMIEL, V. Estética da montagem. São Paulo: Texto & Grafia, 2007.

GOOGLE. Google Trends. Hilda Furacão. Disponível em: Hilda Furacão - Pesquisar - Google Trends. Acesso em: 06/01/2024. Base de dados.

GOOGLE. Google Trends. Bingo: O Rei das Manhãs. Disponível em: Bingo: O Rei das Manhãs - Pesquisar - Google Trends. Acesso em: 06/01/2024. Base de dados.

GOOGLE. Google Trends. Eu sei que vou te amar. Disponível em: Eu sei que vou te amar - Pesquisar - Google Trends. Acesso em: 09/01/2024. Base de dados.

LU. Faço edits de filmes nacionais. Set 2022. X/Twitter: @scfimoon. Disponível em: lu (@scfimoon). Acesso em: 06/01/2024.

PALOPOLI, Y. Esta é uma linha do tempo de como Hilda Furacão se tornou um fenômeno [..] São Paulo, 02 jan. 2024. X/Twitter: @ygorpalopoli. Disponível em: Posts de mídia de Ygor Palopoli (@ygorpalopoli). Acesso em: 06/01/2024.

PÉCORA, L. Cinema brasileiro: o desafio para chegar ao público. In: Itaú Cultural. Grande Angular. São Paulo, 23 ago. 2023. Disponível em: Cinema brasileiro: o desafio para chegar ao público. Itaú Cultural (itaucultural.org.br). Acesso em: 06/01/2024.

[1] Bacharela em Cinema e Audiovisual pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). E-mail: [email protected]

Conceitos e opiniões expressos nos artigos científicos publicados são de responsabilidade exclusiva dos(as) autores(as), não refletindo necessariamente a opinião da ABC.
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