Um olhar sobre a ‘possível’ tragédia no longa-metragem ‘São Paulo Sociedade Anônima’, de Luiz Sérgio Person (1964-65)
Por Ninho Moraes, ABC
“Eu estremecia agonizando e procurava me erguer / Mas teu ventre era como areia movediça para os meus dedos / Procurei ficar imóvel e orar, mas fui me afogando em ti mesma / Desaparecendo no teu ser disperso que se contraía como a voragem / Depois foi o sono, o escuro, a morte / Quando despertei era claro e eu tinha brotado novamente: vinha cheio de pavor das tuas entranhas.”
Trecho de Agonia, de Vinicius de Moraes
A TÍTULO DE INTRODUÇÃO
O presente artigo, inédito e desenvolvido para o Centro Interdisciplinar de Pesquisa – CIP, da Faculdade Cásper Líbero, busca um olhar sobre a ‘possível’ tragédia no longa-metragem São Paulo Sociedade Anônima, de Luiz Sérgio Person (1964-65). A pergunta é: será que é uma tragédia ao modo helênico ou, em geral, o que se costuma denominar atualmente como tragédia?
Sim, como pretendo demonstrar o filme tem pelo menos duas características fortes de tragédia: a) a questão do herói trágico é uma delas; b) o coro trágico que somos todos nós e que, ao mesmo tempo, somos também o herói e, diante disso, acontece o papel ´catártico´ que vou explicitar adiante.
Vamos à sua gênese. O filme nasceu com o título provisório Agonia, inspirado na poesia acima. Na página 83 do roteiro original, depositada na Cinemateca Brasileiro, abaixo da palavra FIM, existe um lembrete manuscrito pelo próprio Person em que indicava a inserção de um trecho sobre as imagens. Não se sabe o motivo para a não inclusão. Arrisco 3 hipóteses: a) perdeu o sentido quando mudou o título; b) questões de direitos autorais; c) dificuldades e custos técnicos pois na época era muito caro colocar letreiros.
O autor (roteirista e diretor) voltara já com seu roteiro escrito de um período de estudos no Centro Sperimentale di Cinematografia, em Roma, no final de 1963. A produção foi organizada por Renato Magalhães Gouvea, que montou a empresa Socine apenas para realizar esse filme – e nunca mais fez outro. A filmagem, que durou dois meses, começou no dia 1º de maio de 1964. O lançamento ocorreu em 1965. A fotografia é do argentino Ricardo Aronovich. Montagem de Glauco Mirko Laurelli. Em meu Mestrado em Audiovisual na USP, analisei o filme sob várias óticas: a) representação da riqueza na cidade de São Paulo; b) um olhar filosófico sobre o tempo através da desmontagem e remontagem para colocar a estória em ordem cronológica c) a própria produção e marketing. Agora, o desafio é encontrar e revelar o trágico no personagem de Carlos (Walmor Chagas), nos desvelos com suas três “deusas” Ana, Hilda e Luciana (as atrizes Darlene Glória, Ana Esmeralda e Eva Wilma) e no confronto com seu aliado e, ao mesmo tempo, desafeto, Arturo Carrari, interpretado por Otelo Zeloni.
PRIMEIRO ATO – PRÓLOGO & CARLOS
O termo tragédia vem do latim tragoed?a e determina um tipo de “obra dramática” com ações fatais e que provocam espanto e compaixão. As personagens de uma tragédia se defrontam com “deuses” e convivem com situações que levam à fatalidade. Será o caso de Carlos? Será que Carlos de fato retorna para sua vida medíocre em São Paulo? Habituou-se dizer que o personagem principal da tragédia termina morto ou destruído moralmente. Ou até vive uma sublimação. É quando o herói supera as adversidades. Se o filme terminasse alguns minutos antes, o FIM seria declaradamente trágico, com o seu suicídio, acidente fatal ou desaparecimento nas curvas de uma estrada.
Também há outra chave de leitura. Caso de “Édipo Rei”, de Sófocles, onde o herói da tragédia tem uma jornada de sofrimento pelas dificuldades na vida, procura encontrar-se e reflete sobre o próprio destino. Ou seja, enfrenta o destino porque o “procurou” e nesse sentido o destino se cumpre. Édipo acaba por descobrir o humano e suas mazelas, assim como suas superações. Vamos ao Carlos.
A tragédia em São Paulo Sociedade Anônima tem tempo e espaço definidos: 5 anos – fato já antecipado por um letreiro que diz que o enredo se passa entre 1957 e 1962. Pode-se dizer, numa análise e decupagem mais detalhadas, que entre a primeira e a última cena, passam-se apenas 24 horas. Tudo acontece em um dia. Um verdadeiro tour de force para o ator Walmor Chagas, cujo personagem aparece em todas as cenas. De forma dramática, inclusive, as mulheres do filme nunca contracenam entre elas e tampouco citam a presença da outra. Já o outro “herói” masculino só aparece de fato na segunda parte do filme.
De acordo com a divisão em três partes proposta por Aristóteles, o Prólogo (que antecede a entrada do coro e localiza o tempo e o espaço na história até chegar ao Êxodo, onde o herói reconhece o seu erro e recebe o castigo divino.) inicia-se com a briga do casal de “heróis” e praticamente prenuncia o Episódio, com o diálogo entre as personagens – e também entre o coro e as personagens. Afinal, como tentei explicar, o filme praticamente se passa num ciclo solar, entre um nascer e outro nascer do Sol. De acordo com palavras do professor-doutor Ismail Xavier, anotadas em aulas de mestrado em Audiovisual na USP, desde o período clássico ‘o cinema se vale do desejo em controlar o sentimento do espectador: dramatizar, dar transparência e fazer mergulhar’. Para se chegar a isso, é preciso se partir de uma ‘pergunta inicial’, de um ‘paradigma inicial’. Durante os exatos 35 segundos iniciais, atrás de uma vidraça, o espectador de São Paulo Sociedade Anônima olha um casal que briga. Intui-se que estão num apartamento bem equipado, de classe média ainda em ascensão. Os dois discutem, mas não ouvimos as palavras, apenas vozes agressivas. Como se fosse uma fusão, a câmera capta o reflexo de prédios nas portas de vidro. Num clímax sem áudio nem música, Carlos empurra Luciana para o chão.
— Não vá embora, Carlos. Não vá. / (…) /
— É inútil. É como se fosse um câncer. Nada adiantaria.
Em seguida, Carlos passa a contar sua própria epopéia. Uma história que será contada com várias idas e vindas e na qual uma das características mais fortes é o tom documental. Tudo vem acompanhado com dados da realidade vivida pela Grande São Paulo nos anos JK, inclusive com notícias narradas em off pelo personagem:
Bastava abrir o jornal e escolher: precisa-se de jovens competentes para trabalhar na indústria automobilística […] Duas mil fábricas de autopeças cresceram em São Paulo da noite para o dia […] O programa de nacionalização dos veículos precisava ser acelerado.
Em resumo simplificado, o roteiro pode ser resumido pelo bordão de Carlos:
“Recomeçar, mil vezes recomeçar, recomeçar…”.
Ou como disse o próprio Person em depoimento para o cineclube Centro Dom Vital, na época do lançamento do filme (documento registrado na Cinemateca Brasileira sob o número D 287/2):
Ele não tem mais, mergulhado como está em sua condição burguesa, nenhuma possibilidade crítica realmente válida. É então que ataca pelos flancos, nos sintomas comezinhos, que nunca denunciam um mal maior. São as pequenas coceiras que só o exame atento e profundo poderia acusar o câncer. Nunca é capaz de desvendar a estrutura que o envolve nos males. Sua posição, como a de todos os inconscientes indivíduos de seu meio, é a de um moralista suburbano. Nunca vê o conjunto ou não quer ver as peças que deram origem ao defeito essencial do motor. Sua moral é compulsiva e mesquinha, ou ainda tristemente, inútil.
Pela visão helênica da tragédia, o herói nada mais é que o humano que aprende com seus erros, a “duros golpes” e com muito sofrimento. E que além do tempo e espaço também existe o “fora do tempo”, uma questão que é humana para sempre – e que está bastante presente em Carlos. Ele erra e assume. Foge. Ou supera seu erro admitindo-o para que essa superação aconteça. Principalmente admitindo para si mesmo. Trata-se do reconhecimento de que o “castigo divino” é uma “pedra de toque” para que o herói consiga enxergar a si próprio. É quando o herói, de fato, se torna quem ele é.
“Recomeçar, mil vezes recomeçar, recomeçar…”.
Apesar de ter seu primeiro plano rodado um mês após o Golpe Militar, o que é uma ironia, Person preferiu não localizar a história nesse cenário para que não ficasse contextualizado e/ou datado. A tragédia não poderia passar por uma simples mudança do regime democrático para ditatorial. Era – e é – mais do que isso. Faz parte de um contexto maior, universal, econômico e com reflexos no comportamento de toda a sociedade. A revolução econômica, com a chegada de um novo tipo de indústria, a automobilística, com força e determinação, criou uma nova sociedade em tensão. E em paralelo mas de forma totalmente diferente do tipo de tensão política e social apresentada por Glauber Rocha, por exemplo, no filme Terra em Transe (também uma tragédia) filmado no mesmo período de São Paulo Sociedade Anônima.
Vou apresentar Carlos e o filme para quem não o assistiu. Trata-se da narrativa da vida de um funcionário comum de escritório comercial que vira Inspetor de Qualidade de uma grande indústria automobilística e, posteriormente, executivo de uma fábrica de autopeças em ascensão (e que usa métodos escusos para isso). Está na faixa etária dos 23 aos 30 anos. Bem sucedido, vive em constante crise pessoal e revolta-se, de forma íntima, sem revolução, contra seu fornecedor e futuro patrão, Arturo. Eles e as 3 mulheres são personagens anônimos, sem destaque, sem cartaz, sem manchetes, perdidos e achados no meio da multidão de uma cidade que explode e que forma ou destrói famílias.
O próprio Carlos tem um filho, um bebê, do qual não ficamos sequer sabendo do nome, não o vemos fazendo carinho ou a ele se referindo. É a negação da paternidade como nas mais tradicionais tragédias.
Rubens Machado Jr., que dedicou parte de sua livre-docência a São Paulo Sociedade Anônima é quem melhor descreve esse caráter trágico do habitante da capital paulista:
Na reconstituição do seu itinerário de desejos figura uma São Paulo habitada por divergentes perspectivas contidas na experiência de um só personagem – o que faz de Carlos o mais denso e espesso paulistano do cinema (p.72-75).
Vale notar que o professor não diz que a forma de interpretar de Walmor Chagas criou um ‘personagem’ denso e espesso. Mas sim um ‘paulistano’. Ou seja, uma pessoa de carne e osso, um reflexo da ‘minha cara’ (digo do espectador), alguém que já vi na rua e com quem posso já ter conversado. É como se a população paulistana finalmente tivesse um espelho para se refletir.
Já Ismail Xavier em São Paulo no cinema: expansão da cidade-máquina, corrosão da cidade arquipélago, na revista Sinopse da USP, é taxativo:
O mal-estar de Carlos permeia todas as ações e espaços, mas ganha sua melhor expressão na relação do protagonista com o universo do trabalho e com a configuração geral de uma experiência que é coletiva e se expressa nas cenas exteriores, mais do que na esfera dos dramas privados.
Denota-se aqui que o desafio do trabalho, o desafio do novo self made man (afinal, ele encontra sua esposa numa aula de inglês para novos executivos, uma novidade no período) faz parte de uma espécie de guerra, de luta, de conflito no melhor estilo trágico. O nosso herói não pára, está sempre em movimento, numa infinidade de cenas computadas pela produção. Foram 88 locações (fora de ordem cronológica): Praia, Sauna, Fábrica, Pátio da Fábrica, Escritório, Estrada 1 (de carro com Arturo), Estrada 2 (de lambreta), Estrada 3 (de carro com família de Arturo e Luciana e filho), Estrada 4 (à noite, de carro), Estrada 5 (de caminhão), Sítio, Escola de inglês, Festa, Restaurante na Galeria Metrópole, Praça da República, Viaduto do Chá, Praça do Patriarca, Centro de São Paulo a pé e de carro, Periferia com Arturo, Restaurante com Ana, Trem, Asilo, Apartamento de Hilda em São Paulo, Apartamento do amante de Hilda na praia, Hotel, Bar, Restaurante alemão, Terreno em São Bernardo, Casa dos pais de Luciana, Rua na frente da casa, Apartamento de Carlos e Luciana, Praça da Sé, Represa Guarapiranga, Praça Roosevelt etc. É como se fosse uma epopéia, uma maratona, uma necessidade de deambular e perambular por todos os cantos e recantos de São Paulo, tal qual um herói trágico.
Para o ‘gran finale’, Person leva seu personagem para a estrada, onde se despede aos gritos: Tchau São Paulo… Mas estaciona, dorme e deixa o carro no acostamento, com vista para a Serra do Mar, e resolve voltar de carona num caminhão, ou jamanta, como consta no roteiro O êxodo se completa com a abnegação do personagem e a dúvida sobre sua entrega ou não à realidade do cotidiano.
SEGUNDO ATO – EPISÓDIO & SÃO PAULO
Essa civilidade aprendida dentro dos muros de uma acanhada e tristonha São Paulo que, entretanto, cedo – e ainda mais do que o Recife, mais intelectualista em seu modo de ser político e mestre de política – começou a ensinar ao brasileiro a ser cidadão em oposição a cortesão.
Gilberto Freyre
A tragédia está no nosso dia a dia. Está no cotidiano de uma cidade. Está nos eventos da vida real que despertam emoções trágicas. São Paulo é uma personagem no filme analisado – uma coadjuvante de luxo, mas sem a qual o filme não existiria. A metrópole viveu momentos dramáticos no período retratado, de um Brasil de JK para um início de um governo militar. Nas palavras do arquiteto e urbanista (FAU-USP) Nabil Bonduki, o Brasil passou pelo “mais acelerado processo de urbanização que ocorreu no mundo na segunda metade do século XX”.
Entre 1950 e 2000, a população urbana brasileira vivendo em cidades com mais de 20 mil habitantes cresceu de 11 milhões para 125 milhões (Revista Communicare, Faculdade Cásper Líbero, 2005).
Dados publicados no site do IBGE comprovam que a população urbana brasileira saltou de 12.880.182 pessoas para 123.076.830 entre 1940 e 1996, enquanto a população rural ficou equilibrada, de 28.356.133 para 33.993.332, entre homens e mulheres. Entre 1940 e 1960, época retratada em São Paulo Sociedade Anônima, a população do Brasil quase dobrou, ao passar de 41.236.315 para 70.070.457 habitantes, e mais do que dobrou nas áreas urbanas: de 12.880.182 para 31.303.034 pessoas.
Quem estava no centro desta explosão era a capital paulistana, depois de séculos de crescimento modesto. De acordo com o livro Capital da Solidão, de Roberto Pompeu de Toledo, São Paulo era uma cidade provinciana e sem importância até meados do século 19. Por volta de 1860, estava no ranking como a décima terceira cidade do país, menor do que Niterói, São Luis do Maranhão e até de Cuiabá. Fatores como a passagem da linha de trem de Campinas para o porto de Santos, levando café, e a abertura de uma das primeiras faculdades do país, a de Direito, no Largo de São Francisco, entre outros fatos, provocaram o início do crescimento. Foi essa demora, esse “isolamento” paulista e paulistano, que fez com que seus “cidadãos” (com define Gilberto Freyre, em oposição aos cortesãos) tenham características diferenciadas do resto do país, uma vez que pouco guardou dos traços reais da corte portuguesa instalada, primeiro na Bahia e depois no Rio de Janeiro. Rubens Machado Jr. escreve Em São Paulo, uma imagem que não pára:
O que salva a cidade de São Paulo desta transcendência batismal meio incômoda seria a sua moderna e selvagem certeza do progresso, garantindo a perda dos vínculos com qualquer tradição ou origem, devida ao seu ritual de fundação há mais de quatro séculos.
Em depoimento para o programa São Paulo em 4 Tempos, da TV Comunitária (2004), a professora de arquitetura da FAU-USP, Regina Meyer, afirma:
“…nos anos 50, a cidade de São Paulo entrou em efervescência. Foi a década da agitação urbana, da presença da classe operária, da chegada do grande capital. A indústria automobilística chega através do plano de metas de Juscelino e nós aumentamos em 1.105% o número de automóveis em 10 anos (…). Aquilo que foi pensado nos anos 20, concretizou-se em 30 e 40 e explode nos anos 50”.
No mesmo programa, o cineasta Carlos Reichenbach, ex-aluno e futuro amigo e parceiro de Person, ressalta:
“…o filme retrata a perversão desse progresso”.
Vale notar que as “São Paulos”, capital e estado, vivem uma de suas maiores tragédias entre 2014 e 2015, justamente nos 50 anos de São Paulo Sociedade Anônima. Trata-se de um cataclismo ecológico provocada por sua maior seca, pelo maior período de estiagem, pela total falta de chuva. É como se fosse uma crônica de uma tragédia anunciada, para se apropriar de uma expressão que virou ditado. A região metropolitana alcançou a impressionante marca de 25 milhões de habitantes, fazendo que a capital (e seus 12 milhões de cidadãos, como diz Gilberto Freyre) incorporasse cidades vizinhas como Campinas e Santos, para ficar entre dois pólos, incluindo o complexo do ABC (Santo André, São Bernardo e São Caetano), que aparece com enormes terrenos vazios no filme de Person. A capital de então tinha “apenas” 5 milhões de habitantes.
Ouso dizer que a obra tem um tom premonitório, como se todo o enredo conduzisse à explosão e ao domínio dos automóveis, ao crescimento acelerado das jovens metrópoles, à impermeabilização dos solos, à poluição constante do ar e, entre outras conseqüências, tudo que a população vive nesse ano de 2015. Talvez o Êxodo,se quisermos pintar de forma dramática….
E no Êxodo, encontramos a POESIA…
As palavras revelam bastante de um filme em gestação. O prenome Eu determina o agente. Agonizar e sintoma de agonia. Resistir, o verbo de lutar. Mas algo puxa para baixo, areia movediça, afogamento, desaparecimento, morte: “E o pavor das tuas entranhas”, como descrita na poesia Agonia, retirada da montagem final. A cidade se assemelha a uma mulher – no caso, de um homem. Ou vice-versa. Alguém que se ama e se odeia como em qualquer relacionamento. É interessante notar a paixão de Person por Vinicius. Na cena em que revela o suicídio da personagem Hilda a câmera de Ricardo Aronovich passeia pelo quarto e se fixa em livros de cabeceira, onde se encontra a obra Para Viver um Grande Amor. Uma pequena e sutil citação. As palavras finais do poema falam do ‘sono’, do ‘escuro’, da ‘morte’, que atingem a amiga, Hilda, a que mais balança Carlos. No roteiro, Person escreve:
Hilda está seminua como se dormisse numa noite de calor. Numa mesinha, um cinzeiro cheio de pontas de cigarro, tubos de comprimidos, um copo de bebida: tudo numa arrumação clássica de suicídio com barbitúricos.
É a hora em que a tragédia se revela. É na hora da morte dela que ele decide romper o casamento, o trabalho, a vida na cidade e partir para o desconhecido.
A questão do suicídio foi ressaltada por vários críticos. Caso de José Wolf no Jornal do Comércio com o título ‘São Paulo: a tragédia do homem-multidão’ (com a ortografia original).
Ah! O suicídio. Mas para que o suicídio? Por que? Quando Carlos amanhece no alto da estrada, êle se encontra novamente com a vida, a vida dos homens simples, que trabalham ao seu lado. Pede carona e volta para São Paulo. Mas, como viver daí para diante? Excluída, pois, a hipótese do suicídio, nada mais lhe resta que o afrontamento lúcido, frio – como a filosofia Bergmaniana – do homem com a própria vida com o próprio absurdo. E’ necessário recomeçar. Recomeçar. Recomeçar. A multidão de aproxima da tela. Carlos é um dêles. Como todos devem enfrentar, lutando como o Sisifo de Le Mythe de Sisyphe, de Albert Camus. Para Camus, Sisifo é o condenado a transportar um enorme bloco de pedra até o cimo de uma colina. Tôdas as vêzes que alcançava o alto da colina o bloco escapava-lhe e rolava pelas encostas da colina, obrigando-o a recomeçar sempre. Contudo, Camus termina sua obra dizendo que ‘é preciso imaginar Sisifo feliz’. A única saída é recomeçar como o condenado Sisifo. Tudo: o sofrimento, as correrias, as andanças, o amor, VIDA, prosseguindo o homem em seu ciclo de pesadêlo até que Alguém lhe responda.
Os jornais italianos que acompanharam a jornada do filme pela Mostra do Novo Cinema de Pesaro (1965), na Itália, com curadoria do cineasta Pier Paolo Pasolini, onde o filme foi premiado com a votação do público comentaram a questão do suicídio. Il Popolo entre eles. Eles falam da rara opção urbana de Person e de sua busca em interpretar a crise de identidade que assola a cidade industrial de São Paulo, nos moldes dos filmes europeus.
Il suicídio di una donna che aveva amato anni prima è l’occasione per tornare indietro com la memoria, e com ciò egli spiega a se stesso che moralmente non può accettare il meccanismo del benessere che lo trascina. Decide di fuggire, ma, accorgendosi che la sua fuga non può risolvere niente, torna indietro. In questo caso la memoria serve a chiarificare il presente, a verificare la morale di uma vita. Il film brasiliano, tagliato debitamente di alcune sequenze inutili, è un bel film e soprattutto è utile ad indicarci come la nuova estetica possa essere applicata anche a temi morali, quali la construzione di una determinata società.
Resumo livre da tradução:
O suicídio de uma mulher amada aviva sua memória. Não aceita o mecanismo do cotidiano e decide fugir. É um belo filme e mostra como uma nova estética pode ser aplicada ao lado de um tema moral e pela construção de uma determinada sociedade.
É como se Carlos vivesse esta angústia até o limite. Ele busca uma carreira, mas não se entrega. Tenta se relacionar com mulheres de diferentes personalidades, mas não se encontra. Hilda, a única que lhe balança o sentimento e desafia seu intelecto e sua forma de pensar, acaba se matando. A idéia do futuro o atormenta? A do passado o prende no mesmo lugar? Aristóteles (d) escreve:
O fim que se pretende alcançar [é] o resultado de uma certa maneira de agir e não de uma maneira de ser.
Nem todas as obras passam pelo final catártico. Há até as de finais neutros ou felizes ou dúbios. No que constitui uma tragédia? Ésquilo, Sófocles e Eurípedes deram a chave através de suas montagens. Person, apaixonado por teatro como era, criador até de uma revista sobre o tema – e que durou poucos exemplares – era amigo e parceiro de Cacilda Becker na companhia que levava seu nome. Ela era casada com Walmor Chagas e, juntos, montavam tragédias gregas nos palcos e até na televisão que, na época, não alcançava o grande público.
Person certamente conhecia Poética. Ali, Aristóteles descreve a tragédia como imitação de uma ação completa e elevada numa linguagem com ritmo, harmonia e canto. As partes se constituem de versos recitados e cantados, e nela atuam os personagens diretamente. Não há relato indireto, para provocar expurgação ou purificação dos sentimentos através de compaixão e temor.
A tragédia clássica exige três condições que são parcialmente ou quase integralmente atendidas em São Paulo Sociedade Anônima: a) Personagens de elevada condição (heróis, reis e deuses) – o que cada um, dentro até da mediocridade do cotidiano, tenta ser; b) ser contada em linguagem elevada e digna, o que Person faz com maestria; c) ter um final triste – geralmente com a destruição, loucura, ou ato exagerado dos personagens (ou apenas do principal, caso de Carlos).
Todos são vítimas do orgulho de quem tenta se rebelar contra as forças do destino – e isso ocorre até mesmo pela personagem Ana, que é garota-propaganda, mas se crê uma rainha-diva e faz tudo em defesa da mãe internada num hospício.
TERCEIRO ATO – ÊXODO & MELODRAMA
O filme era, para mim, um longo processo de raciocínio executado através da observação do comportamento da classe média de nossa cidade que, aos trancos e barrancos, não consegue sair de si mesma e passivamente aceita o seu destino estéril
Luiz Sérgio Person
Para a sua visão de tragédia, Person é pioneiro em enxergar e descrever a classe média em ascensão, com seus desejos de consumo e de produção desenfreada, como nas palavras acima, escritas para o jornal O Estado de Minas.Não temia a palavra “melodramática”, inclusive na utilização de música quase operística, nas margens do exagero. No roteiro original, cena 2, descreve o tipo de sonoridade que espera para o início:
Diversos planos muito rápidos do amanhecer de São Paulo, principalmente nos bairros populares e industriais. Bondes e ônibus que passam cheios. Correrias, entrada de fábricas. Em todos os planos, uma grande quantidade de gente que se movimenta, ocupando densamente o quadro. Sobre estas imagens entram os demais títulos do filme. Uma música hurlante (…) alterna-se com a melodia e a letra simples de “FAVELA” (Heckel Tavares).
A música do alagoano Heckel Tavares (1896-1969), pianista, regente e folclorista e que sempre misturou o erudito com o popular, chega a ser soletrada e cantada baixinha por Walmor Chagas. E serve de contraponto às músicas originais criadas por Cláudio Petraglia, e que serviam para sua pretensão em ser “hurlante”.
Dois anos depois do lançamento de São Paulo Sociedade Anônima, Person ainda se sentia provocado, estimulado, a repensar sobre o fato de “ser ou não ser” melodramático. No mesmo depoimento até usa a palavra ‘Dramalhão’, uma forma sub-reptícia de se acusar algo de ‘Melodramático’. Ou seja, o ‘Grande Drama’ escondido por trás de certa modernidade que ninguém conseguia negar:
Quando apresentei S.P.S.A., dentro e fora do Brasil, a par do sucesso de público e uma série de críticas favoráveis, não faltou quem dissesse que eu havia feito um filme acadêmico, pseudo-moderno, um dramalhão camuflado por uma complicada estrutura narrativa que visava despistar a sua mediocridade. Houve mesmo quem me acusasse, e gente de uma certa consideração, de haver dado um certo acento alienado, niilista, insignificante ao final do filme. Isso, se de fato aconteceu, contrariou as minhas mais modestas pretensões (O Estado de Minas).
Mas afinal, o que o melodrama herdou da tragédia? Ele segue seus princípios formais – e que evoluíram num longo período da história com um estilo que foi se tornando bruto e sem sutilezas psicológicas e poéticas. Mas a tragédia é insuperável, pois o melodrama apenas recorta e não requer a reflexão existencial, do sentido de tudo, da superação de si, do crescimento humano, do “quem sou eu” filosófico. Que é, a meu ver, o objetivo maior de Person. São Paulo Sociedade Anônima é uma tragédia, mais do que melodrama. Person, sem o saber, fez uma obra trágica. Afinal, o que aproxima os heróis dos homens comuns é uma falha do ser humano que não provém do caráter do personagem, mas que coloca o homem em conflito com os deuses e a cidade.
Carlos: Recomeçar, recomeçar, mil vezes recomeçar…
Para provocar o terror e a compaixão, o público precisa se identificar com as situações apresentadas no palco. A mímesis provoca a kátharsis, que pode ser traduzida como a purgação dos sentimentos de terror e compaixão por parte dos espectadores. Superação. O prazer é alcançado com o fim terrível do personagem trágico – sempre punido. É a vivência da dor na vivência da arte. Nesse sentido, Carlos não é punido, mas perde toda sua base. A tragédia tem o propósito de excitar o terror e a compaixão (especialmente quando a “mocinha” se encontra numa situação terrível, ameaçada pelo vilão). Normalmente, ele só sai dela com a ajuda do herói melodramático – mas é isso que nunca surge em São Paulo Sociedade Anônima porque Carlos vai servir de herói e vilão ao mesmo tempo. O espectador se identifica com ele através do lado mau, de fujão e opressor; e do bom, pela necessidade de liberdade. Há a coragem do herói e o castigo do vilão. Há lágrimas dos espectadores como no público grego e as representações das tragédias.
O melodrama pode existir mesmo quando não explora a chave melodramática ao limite. É o que acontece em São Paulo Sociedade Anônima, aonde as angústias e procuras do personagem principal não o levam a encontrar uma saída, como seria a proposta natural de um ‘cinema industrial’.
Após o suicídio de Hilda, por exemplo, Carlos poderia encontrar seu caminho natural: de forma tranquila, render-se à Luciana e finalmente cuidar de seu filho que tanto despreza. Ou, por outro lado, romper com a esposa de uma forma organizada, demitir-se da fábrica de Arturo (de quem quase ficaria sócio) pegar o próprio carro, um ônibus, um trem ou um avião e ‘Pirar’, expressão que usa na discussão final com sua esposa.
Mas não: Person propõe a ruptura total, a quebra dos parâmetros, inclusive com uma transgressão não-natural, o roubo de um carro. Ou nas palavras de Ismail Xavier:
Carlos não encontra compensação na vida doméstica como em melodramas de final feliz (Revista Sinopse – USP).
Passo a palavra final para Luiz Sérgio Person.
É assim mesmo que vejo o cinema. Um cinema cujo tempo presente seja a sua matéria e o seu fim. Um cinema até anti-estético se for o caso, um cinema anti-eterno (pois o tempo não está para catedrais góticas!), um cinema voltado à realidade presente, destinado a servir à realidade presente sem moralismos de segunda ordem (O Estado de Minas).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BONDUKI, Nabil. Urbanização no Brasil pós-golpe de 64. Communicare (revista de pesquisa). São Paulo, Faculdade Cásper Líbero, 2005.
MACHADO JR., Rubens. Imagens brasileiras da metrópole: a presença da cidade de São Paulo na história do cinema. Tese (Livre-Docência) — Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, 2007.
______. São Paulo em movimento: a representação cinematográfica da metrópole nos anos 20. Dissertação (Mestrado) — Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. São Paulo, 1989.
______. São Paulo vista pelo cinema: ensaio sobre a representação do espaço urbano. São Paulo: Divisão de Pesquisas em Artes Contemporâneas, CCSP, Secretaria de Cultura do Município (Cadernos de História da Cultura e da Arte).
______.São Paulo, uma imagem que não pára. Revista D’Art. São Paulo, Divisão de Pesquisas do Centro Cultural São Paulo, nº 9/10, p. 59-66, nov 2002 (Arte e cultura: a cidade como lugar).
MORAES, Vinicius (poesia Agonia). Forma e Exegese (Rio de Janeiro: Irmãos Pongetti, p.173, 1935)
TOLEDO, Roberto Pompeu de. A Capital da Solidão. São Paulo: Objetiva, 2003
XAVIER, Ismail. O olhar e a cena: melodrama, Hollywood, Cinema Novo, Nelson Rodrigues. São Paulo: Cosac&Naify, 2003.
______.São Paulo no cinema: expansão da cidade-máquina, corrosão da cidade arquipélago. Sinopse (revista de cinema). São Paulo, Cinusp, ano VIII, nº 11, p. 18-25, set 2006.
ARTIGOS DE JORNAL
OLIVEIRA, L. C. Person e a má consciência da burguesia. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 28 nov 1965, s/p.
PAIVA, Salvyano Cavalcanti de. São Paulo S.A. Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 25 nov 1965, s/p.
UM DEPOIMENTO DE PERSON. O Estado de Minas. Belo Horizonte, 24 set 1967, s/p.
WOLF, José. São Paulo: a tragédia do homem-multidão. Jornal do Comércio. Rio de Janeiro, 5 dez. 1965, s/p.
PROGRAMAS DE TV
São Paulo em 4 Tempos, TV Comunitária (2004): depoimentos da professora de arquitetura da FAU-USP, Regina Meyer, e do cineasta Carlos Reichenbach.
NOTAS DO AUTOR:
O material foi pesquisado no acervo pessoal do produtor e agente cultural Renato Magalhães Gouvea e na biblioteca da Cinemateca Brasileira de São Paulo, onde estão depositados o negativo e cópias do filme, assim como o roteiro original e documentos.
As fotos para o artigo e para o livro publicado pela editora da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo foram cedidas por Marina Person, filha de Luiz Sérgio Person, e por Renato Magalhães Gouvea.
O DVD com o filme e extras (entrevistas realizadas por Marina Person e comerciais dirigidos por Luiz Sérgio Person) foi lançado inicialmente pela Vídeofilmes e agora é da distribuidora Bretz-Back Five. A classificação é de 12 anos.
NINHO MORAES é jornalista e professor da Faculdade Cásper Líbero, onde se formou. Tem mestrado em Audiovisual pela ECA-USP. Foi coordenador do curso de cinema da Universidade Anhembi Morumbi (2006-08). Autor dos livros CARA A CARA COM MARÍLIA GABRIELA (Siciliano) e RADIOGRAFIA DE UM FILME: SÃO PAULO SOCIEDADE ANÔNIMA, de Luiz Sérgio Person (Imprensa Oficial). Escreveu e dirigiu os documentários FUTURO DO PRETÉRITO: TROPICALISMO NOW! (2012), 100% JARDIM ÂNGELA (2013), BRASIL DA VIRADA (2007) e as ficções ONDAS (1986) e BRANCO & PRETO (1988). .Em televisão, criou e dirigiu programas como METRÓPOLIS (TV Cultura), SAIA JUSTA (GNT) e todos protagonizados por Marília Gabriela nas emissoras GNT, Band, CNT, SBT, RedeTV! e TV UOL. Em ficção na TV, escreveu e dirigiu o teleteatro LUCY PUMA, UMA GATA DA PESADA (TV CULTURA). É conselheiro da ABC – Associação Brasileira de Cinematografia.