Betânia entre a crueza e a imaginação

Diretor de fotografia Bruno Graziano compartilha sua experiência no filme
Betania Home
A protagonista Diana Mattos

Por Bruno Graziano

Desde a estreia do filme na Mostra Panorama da 74ª Berlinale, numa sessão para 800 pessoas, “Betânia” vem recebendo atenção mundial em artigos críticos que pontuam, entre elogios e questionamentos, seu caráter documental. O longa conta a história de uma brasileira de 65 anos que após a morte do marido é convencida pela família a mudar-se para a comunidade onde nasceu, mas nunca viveu, e que leva seu nome, Betânia. Uma narrativa sobre a pessoa e também sobre o lugar. O universo interior da protagonista em contraste com o evento extraordinário que é a formação das dunas desérticas e das lagoas mutáveis dos Lençóis Maranhenses.

Poster Betania

É uma produção da Salvatore Filmes, com direção e roteiro de Marcelo Botta, produção de Gabriel Di Giacomo, coprodução do Canal Brasil e produção associada da Ventre Studio.

Fundamentalmente, trata-se de um filme de ficção. Contamos uma história através de atrizes e atores interpretando um roteiro originalmente escrito a partir da imaginação. Porém, esta história também é livremente inspirada na crueza da vida e na personalidade de uma mulher real, Maria do Celso, que foi protagonista do documentário “A Dona das Dunas”, dirigido pelo Botta e fotografado por mim em 2018.

Eu entrei no projeto quando só havia uma sinopse. Botta me disse que gostaria de fazer um filme baseado na emoção. Seria um filme sobre a força de uma mulher brasileira, do interior mais profundo, que dialogaria com uma natureza bela e implacável, e que seria moldado pela cultura maranhense. O filme também era de baixo orçamento, 100% independente, num modelo de produção raro hoje em dia – a produtora se arriscaria sozinha na empreitada.

Tivemos muita liberdade para cocriarmos na pré-produção. Enquanto Botta escrevia o roteiro, visitávamos locações, participávamos da escolha de elenco, discutíamos cenas, planos, motivações e esse processo eu quero muito destacar aqui. A pré-produção in loco, mesclada à pesquisa, à preparação e à estratégia de filmagem, nos trouxe imensos desafios de planejamento e de desapego. Foram cinco semanas acordando junto com o sol em Santo Amaro do Maranhão, dividindo uma casa que era nossa base. Seis da manhã eu saia para nadar no rio Alegre e o Botta já estava acordado escrevendo mais uma cena do roteiro. No café da manhã, discutíamos com Luciana Coelho (coordenadora de produção), Mariana Cristal (diretora de arte), Tatiana Azevedo (assistente de direção) e Ezequiel Loustau (assistente de produção) sobre tudo o que fosse relacionado ao filme.

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Raoni Gruber (diretor de som), Cahhi Silva (microfonisra), André Freiras (foguista), Bruno Graziano (diretor de fotografia) e Hugo Marques (assistente de câmera). Foto: Felipe Larozza

Trocávamos referências, impressões sobre o lugar, e, principalmente, sabíamos dos desafios de cada departamento, o que nos fazia pensar de forma sintrópica. Raoni Gruber (diretor de som), Daniel Coala (Platô) e outras pessoas da equipe entravam remotamente. Nós visitamos praticamente toda a região dos Lençóis Maranhenses, mapeamos as luzes solar e lunar, o calor e o vento, e sobretudo como se comportava o povo dos Lençóis diante da modernidade. Essa simbiose entre o trabalhar (tínhamos um objetivo) e o viver (o acaso) era uma instigação diária. Muito do que está no filme, do que é mais característico do Maranhão e o que é mais endêmico culturalmente, surgiu nesta pré-produção. Eu, pessoalmente, não entregaria metade da energia que eu entreguei nas filmagens sem esse combustível maravilhoso e intenso. Ainda tivemos uma semana com toda a equipe junta, uma adaptação necessária ao início das filmagens.

Nossas referências vinham de fontes embaralhadas. Botta citou “Nomadland” (2020, Chloé Zhao), que havia vencido o Oscar de melhor filme, e me mostrou cenas de filmes jamaicanos clássicos. Eu imediatamente acessei “Cinzas no Paraíso” (1978, Terrence Malick), vencedor do Oscar de melhor fotografia, e senti o arrepio das câmeras de Dib Luft e Walter Carvalho. Botta é um pesquisador de música, sobretudo reggae, e abriu sua playlist como trilha sonora da casa onde vivíamos. Eu sonhei com as telas de Almeida Júnior (1850-1899) enquanto lia “Mulheres que correm com lobos” (2018, Clarissa Pinkola Estés). As vontades artísticas foram encharcadas pela referência local. As cores, as texturas, a arquitetura, a geografia, os gestos, as gírias, as lembranças e os sonhos, no contato sincero, mesmo que breve, se tornam um alimento cinematográfico. A mestiçagem que acontece entre documentário e ficção, quando normalizada, não constrange ninguém. Pelo contrário. No auge de cada diária de filmagem, tudo se fundia; equipe e elenco; locações e moradias reais; o tempo da vida e o tempo do filme.

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Nádia D’Cássia, Tião Carvalho, Michelle Cabral, Rosa Ewerton Jara e Diana Mattos. Foto: Felipe Larozza

Num projeto como este, em que há uma busca pela ousadia e os riscos são incontáveis, é necessário que tomemos decisões graves. Havia um dinheiro limitado, havia uma equipe enxuta e havia um petardo tropical pela frente. A direção foi clara de que não engessaria absolutamente nada. Nós entendemos que precisávamos ser leves e portáteis na medida do possível, e que o filme precisava de uma marca estética própria, sem igual no que já havia sido produzido sobre o lugar. Isso ditou sobretudo a escolha da câmera (Alexa Mini) e das lentes (anamórficas Lomo). A ciência de cor da Arri nos deixaria mais tranquilos em relação à diferença tonal das peles. As lentes soviéticas construídas nos anos 1980 para serem usadas na neve me pareceram ideais para o deserto. Para ter em mãos essas ferramentas, deveríamos abdicar de refletores e seu custo embutido. Decidimos então filmar tudo com luz natural ou com iluminação caseira redesenhada. É um desafio de planejamento (sol, lua, relógio, elétrica) e de entrega. Para mim, a câmera de um projeto neonaturalista há de ser uma câmera encantada que sabe entrar e sair de qualquer lugar.

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Nádia D’Cássia, Diana Mattos e Michelle Cabral. Foto: Felipe Larozza
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Cahhi Silva, Bruno Graziano, Caçula Rodrigues e Marcelo Botta. Foto: Felipe Larozza

Raoni Gruber, no som, só utilizaria boom, nada de lapela. E escolheria a dedo três microfones. Mariana Cristal, na arte, não maquiaria ninguém. Também pautaria a escolha de locações e de figurinos pensando sempre na verossimilhança. Botta construiu o roteiro final com a colaboração das atrizes, dos atores, da equipe local e de moradores. Diana Mattos entregou uma protagonista rígida e carinhosa. Tião Carvalho encantou como Ribamar e como mestre de Boi. Caçula Rodrigues hipnotizou como Tonhão. Nádia de Cássia trouxe a revolta de Vitória. Ulysses Azevedo impressionou como Antonio Filho. Michelle Cabral como Irineusa, Rosa Ewerton Jara como Jucélia, Vitão Santiago como Xambim e Caiçara Vibration como Ismael trouxeram com graça o restante da família que poderia ser de qualquer canto do Brasil. Anouk Mulard como Sofie e Tim Vidal como Bernard, franceses que vivem no Maranhão, são responsáveis pelo núcleo do absurdo. É o momento em que o público mais reage. Curiosamente, é a sequência mais ficcional, coreografada e pensada do filme. E decidimos filmar parte dela ao meio dia, no meio do verão, estando próximos da linha do equador. Penso nessas diárias nas dunas e reflito que quem não se deixa delirar um pouco ali não acessa o mais sublime.

Eu tenho o visor da câmera como o grande privilégio da profissão. Uma vez eu ouvi que quem operasse uma câmera de cinema deveria sentir o peso da sala cheia, e imaginar o assunto já impresso na tela grande. Eu me sinto um espectador enquanto filmo. O sangue esquenta e a fome é de “instantes de eternidade”.

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Caçula Rodrigues, Tim Vidal e Anouk Moullard. Foto: Felipe Larozza

Cenas surgiam diante da vida. As duas manifestações do Boi que filmamos na comunidade foram no fim de tarde, começo da noite. Aquilo ali para mim é ficção, mesmo que tenha sido captado usando a linguagem mais documental, da câmera na mão habitada dançando junto, suando junto. Porque o que vemos ali é fidedigno na essência, mas não na estética. Aquilo foi produzido para o filme, e o filme resgatou aquela chama nos cantadores, músicos e dançantes. No caminho inverso, as matriarcas mais relevantes de Betânia conversam sobre a história do lugar sentadas numa árvore caída, contam casos e cantam lamentos em volta da mesa e interagem com a protagonista em diversos momentos. Aquilo pra mim é documentário, mesmo que tenha sido ensaiado, agendado, decupado, repetido. O filme de ficção imaginado se transformaria num registro documental cru. Ou vice-e-versa. Eu vejo aquelas senhoras na tela e lembro que elas pensavam que cinema e vida é a mesma coisa. Essa confusão é só nossa, gente do cinema. A edição de Marcio Hashimoto enriqueceu ainda mais essa incerteza do que é real e do que é montagem. Formou-se um caleidoscópio difícil de não delirar.

A trilha sonora capitaneada por Botta e com pérolas de A Barca, Tião Carvalho, Edivaldo Marquita e Misael Pereira. A cor inspirada de Marcus Tenchella e Luisa Cavenagh, elevando o look das Lomos (35mm, 50mm, 75mm e 100mm) à toda potência. O desenho de som imersivo de Martin Grignaschi. A ótima mixagem de Caio Guerin e Armando Torres Jr. O VFX cabuloso de Cauê Bravim e Gabriel Benício. O filme que nasceu no cinema é mais fantástico do que o filme que colocamos na lata, e que por sua vez é mais rústico do que o imaginado inicialmente.

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Bruno Graziano. Foto: André Freitas

Foi um fazer cinematográfico que se sustentou, eu acredito, na liberdade criativa e na vontade sincera de emocionar. Eu agradeço Marcelo Botta e Gabriel Di Giacomo pela amizade e parceria de uma década. Agradeço Luciana Coelho pela generosidade e pela elegância na produção. Agradeço Raoni Gruber por ter sido até hoje meu maior parceiro de cinema. Agradeço Mariana Cristal pela harmoniosa dobradinha. Agradeço ao André Freitas, parceiro de confiança e um artesão do foco. E agradeço Edu Rabin, sócio aqui da ABC, que dividiu comigo conversas valiosas antes de partirmos cada um para sua missão como diretores de fotografia.

Cinema é cedo e longe.

Ficha Técnica:

Elenco: Diana Mattos, Tião Carvalho, Nadia D'Cássia, Caçula Rodrigues, Michelle Cabral, Rosa Ewerton Jara, Vitão Santiago, Enme Paixão, Anouk Moullard, Tim Vidal e Caiçara Vibration
Uma produção: Salvatore Filmes 
Escrito e dirigido por: Marcelo Botta 
Produzido por: Gabriel Di Giacomo
Produção Executiva: Luciana Coelho e Isabel Abdush
Produção associada: Paula Cosenza, João Queiroz, Marcelo Campaner e Márcio Hashimoto
Direção de Arte: Mariana Cristal Hui 
Fotografia: Bruno Graziano 
Montagem: Márcio Hashimoto
Som direto: Raoni Gruber
Desenho de som: Martin Grignaschi 
Mixagem: Caio Guerin e Armando Torres Jr
Música: marcelo Botta, Tião Carvalho, A Barca, Edivaldo Marquita e Misael Pereira VFX: Cauê Bravim e Gabriel Benício
Cor: Marcus Tenchella e Luisa Cavanagh 
Equipe de Fotografia:
Câmera: Bruno Graziano
1º AC: André Freitas (Rasta) 
2º AC: Hugo Marques 
GMA: Gabriel Mendonça 
Still: Felipe Larozza 
Produtora: Jessica lauane 
Maquinista: Bruno Paes
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