Concept da série “Amorteamo”. Ilustrador: Eduardo Vieira
Por Danielle de Noronha
Nos últimos anos, foi possível acompanhar o crescimento na produção de séries de TV brasileiras e uma grande migração de profissionais do cinema para a televisão, tanto para os canais abertos como por assinatura. Um dos fatores que possibilitou essas mudanças foi o digital, que facilitou que as produções televisivas tivessem acesso às câmeras de cinema e também pudessem reconfigurar os seus sets e a forma de produzir conteúdos. Outra questão que ajudou a impulsionar a produção de séries foi a Lei da TV Paga (12.485/2011) que, dentre os seus objetivos, visa aumentar a produção e a circulação de conteúdo audiovisual brasileiro.
Por outro lado, também já é possível notar uma identificação do público com o formato das séries, que é influenciada, principalmente, pela produção realizada nos Estados Unidos e por novas plataformas de exibição, como o Netflix. Nesse contexto, a produção de séries brasileiras começa a ganhar espaço não apenas na produção/exibição, mas também no diálogo com o público.
Por mais que não existam tantas diferenças na criação artística do projeto de dramaturgia entre o trabalho para cinema e TV, como explica a diretora de arte Yurika Yamasaki (Hilda Furacão, Mulher Invisível, Magnífica 70), a produção de séries possui dinâmicas próprias, com necessidade de adequação aos orçamentos, que impõe desafios e exige da equipe de arte diferentes maneiras de pensar o fazer cinematográfico. Como pontua o diretor de arte Marcos Carvalheiro (Vizinhos, Felizes para sempre? – foto ao lado, Os experientes): “cada formato exige que a gente encare o trabalho de uma forma diferente, tanto em relação ao tamanho da demanda quanto aos prazos”.
Longa-metragem X Série de TV
Em comparação à produção de um longa, a primeira diferença é a pré-produção: “a falta de pré-produção é regra”, diz o diretor de arte Cassio Amarante, ABC (Som e Fúria, A mulher do prefeito, Três Terezas). “Por ser uma produção longa, a pré-produção também deveria ser mais longa, mas no geral você trabalha com uma pré proporcional a de um longa-metragem, mas que gera um produto muito maior”, pondera. Marcos acredita que como a pré-produção acaba sendo muito corrida é necessário que o profissional entre no projeto com muita objetividade: “acaba contando muito a experiência profissional e pessoal que você tem para abordar o tema. Se é um tema que você nunca teve contato acaba sendo mais difícil de se aprofundar”.
Além disso, a diretora de arte Monica Palazzo (Tudo o que é sólido pode derreter – foto abaixo, Cinelab, O zoo da Zu) lembra da importância de realizar os testes, que nem sempre são possíveis numa produção de série. “Teste tem que ser feito. Quando tem efeitos de pós-produção, testes mecânicos, de maquiagem, de perucas. Ou quando tem algum tratamento especifico em relação à cor. Isso é muito comum de ser feito em curtas e longas. Testes tem que ser feitos e tem que entrar no calendário”.
Outro ponto, que diferencia o trabalho nas séries de TV do cinema, é que normalmente a filmagem inicia sem que todos os roteiros estejam prontos, o que pode causar mudanças nos prazos e nos orçamentos. “Às vezes vem umas mudanças que acabam interferindo diretamente nos orçamentos das equipes. Então a gente tem que ter uma relação muito precisa e muito bem amarada entre a produção executiva, responsável pelo desenho geral do projeto como um todo, quem está fazendo o meio de campo com o canal e os roteiristas, para que os roteiros fiquem dentro do conceito e das possibilidades orçamentarias”, conta Monica.
Por outro lado, do ponto de vista da narrativa, o trabalho tem mais tempo de construção de ambientes e personagens, que ainda pode ser aprimorado ao longo da série. “Quando você faz uma série, muitas vezes, você faz o mesmo esforço para construir um filme, do ponto de vista da construção dos personagens ou do ponto de vista da reconstrução de uma época, por exemplo, e aquilo acaba rendendo muitas horas de material, são muitos episódios, e aquele trabalho que a gente fez na construção inicial é melhor aproveitado. Em geral, as séries, nas suas segundas e terceiras temporadas, já vêm com a questão da arte bem digerida porque você já tem os personagens construídos, os ambientes escolhidos…A primeira temporada é sempre uma descoberta, que envolve pesquisa e muita interação com os departamentos e com a equipe”, explica Cassio.
A equipe de arte nas séries de TV
O trabalho em equipe é um dos principais fatores que deve ser levado em consideração na hora de produzir qualquer trabalho audiovisual. Como lembra Cassio: “o legal e bacana é que é um trabalho coletivo, em que você consegue acrescentar elementos narrativos, que ajudam um diretor a contar aquela história. O objetivo da direção de arte é ajudar a contar a história e armar o diretor de mais elementos para que ela seja contada da forma mais convincente possível”.
Marcos conta que a equipe de arte das séries é praticamente a mesma do cinema, porém, geralmente, há um reforço para o trabalho de set. “Na série, como é muito pesado o dia a dia de filmagem, a gente acaba tendo um pouco mais de equipe no set”, diz. “Também, eu já fiz duas séries filmando com equipes paralelas, mas a equipe de arte, via de regra, não dobra. Então a gente tem dois sets rodando ao mesmo tempo, mas não tem uma equipe em dobro, o que torna o trabalho mais puxado em termos de demanda para a equipe de arte”, complementa.
Segundo Monica, existe um pensamento sobre uma equipe “básica”, mas cada projeto tem seu tamanho e suas características e, neste sentido, a equipe precisa ser desenhada de acordo com as necessidades do projeto. A autonomia de criação no departamento de arte dentro de uma série varia bastante e depende da direção do projeto, que é a responsável por definir a equipe que será montada, conforme explica Yurika. “Por exemplo, na série Amorteamo, com gravação de 95% no estúdio, ambientação no século XIX e com necessidade de complementação dos cenários na pós-produção, tínhamos incorporados na equipe de cenografia profissionais de 3D que repassavam o projeto para ser executado. Na série Magnifica 70, com característica mista (estúdio e locações com ou sem interferências cenográficas), duas frentes de gravação simultâneas, quatro diretores e com um diretor geral, mantivemos a equipe tradicional reforçando a produção artística. Neste caso, a pós ficou a cargo do diretor. Ao time da arte se agregam os cenotécnicos, os pintores e pintores de arte, aderecistas, efeitistas, modelistas, costureiras, motoristas, ajudantes braçais, maquinistas e eletricistas de cenário”, conta.
Marcos ainda menciona que, para montar a equipe de arte, ele busca profissionais específicos para cada projeto. “É preciso ver as pessoas que mais vão se adequar ao projeto. Eu gosto muito de aproveitar a riqueza que cada um traz. Juntos, a gente começa a construir cada personagem, cada núcleo, cada ambiente, começa a pesquisar, a colocar na parede o que a gente acha que tem a ver com cada personagem. Chega um momento que todo mundo já se apropriou do trabalho, já conhece os personagens e o resultado é muito rico”. E, além da cooperação entre os participantes da equipe de arte, há também a riqueza do diálogo com as demais equipes do projeto. “Depois de ler o roteiro, que leio muito pela sensação, eu dialogo com o diretor, com o produtor, para entender o tamanho do projeto, e logo vem as conversas criativas com o fotógrafo, as quais eu levo uma proposta de palheta de cor, em que discutimos a necessidade de determinados testes, de correção de cor, etc.”, esclarece Monica.
Algumas considerações para o futuro
Para Yurica, a linguagem e a criação dos personagens centrais carismáticos que dão abertura para futuras criações dramatúrgicas são os pontos mais bem resolvidos atualmente nas séries. Entretanto, ainda há um longo caminho a recorrer. Cassio pondera que ainda falta um pouco de ousadia. “As séries estão todas um pouco dentro do mesmo perfil de produção, de universo, de tipo de personagem. Parece que para administrar os custos de produção quase ninguém corre mais riscos e a busca é fazer um produto mais controlável. Não se arrisca do ponto de vista da linguagem, da temática, da narrativa não ser linear, é tudo bastante padronizado. Acho que falta ousadia. E no cinema também. Pouca fantasia, poucas tentativas de ir para outros lugares, para novos ambientes e novos personagens”, diz. “O que acontece também é que existem faixas orçamentárias muito distintas, entre produtos muito parecidos. E isso dá uma chapada nas capacidades de produção e de transformação na construção de universos fictícios”, complementa Cassio.
Outra questão mencionada é a necessidade de uma estrutura melhor para o departamento de arte. “Nos Estados Unidos, para os técnicos de arte, também existem muitas locadoras, de objetos, de quadros, etc. Aqui, os nossos equipamentos ainda não têm uma organização de núcleos, entre locadoras e estúdios, que criem condições para que todos consigam desenvolver um trabalho melhor. Não tem equipamentos de set específicos para arte. No caso da série, é o que o próprio nome diz: se produz em série. Nós somos uma indústria artesanal produzindo em série. O departamento de arte hoje está assim. Qualquer coisa começa do zero, comprando e pesquisando objeto, vai na loja, vai na outra, uma van na rua, é muito artesanal ainda. Para se encaixar na indústria da série é um caminho longo ainda”, explica Marcos. O diretor de arte continua: “a fotografia já entrou no mercado de séries no Brasil mais estruturada, no que diz respeito aos técnicos, profissionais, estrutura, locadoras, além de regras mais estabelecidas. O departamento de arte ainda está nesse caminho. Também em relação à formação. É uma demanda muito grande, muita gente nova. A gente não tem escolas de direção de arte no país. Os profissionais da arte vêm de diversas formações, como arquitetura, artes plásticas, cinema. A gente não tem escola específica, você se forma no mercado e sua formação depende de com quem você trabalha”.
Entretanto, Marcos acredita que as séries trouxeram mais oxigênio para o mundo do audiovisual, já que elas possibilitam que novas ideias e gêneros sejam explorados. “Eu, particularmente, gosto muito de fazer séries. Principalmente dessa característica de conseguir colaborar com a construção visual da narrativa, do personagem, com mais ferramentas e tempo”, conclui.