Farkas

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Por Maurice Capovilla

Farkas
Farkas Tamás György (Budapeste, 17 de outubro de 1924 — São Paulo, 25 de março de 2011)

Conhecer Thomaz Farkas foi um privilégio para um pequeno grupo de jovens que queria fazer cinema documentário em São Paulo. Ele era uma figura conhecida nos meios culturais e artísticos, mas nós, ligados ao cinema não tínhamos, até 1963, um contato mais direto com ele. Foi em meados desse ano que chegou a São Paulo uma comitiva de cineastas, liderada por Fernando Birri, para apresentar a obra documental da Escola de Santa Fé. Acompanhando Birri estavam os seus principais colaboradores: Edgardo Pallero, diretor de produção, Dolly Pussi, pesquisadora e roteirista e seu assistente de direção Manuel Horácio Gimenez. É preciso dizer que a Escola Documental da Universidade do Litoral, fundada por Birri em 1958 foi a primeira escola de cinema documentário da América Latina e ponto de referência para todas as experiências posteriores de formação cinematográfica. Mas em 63 a Escola estava em crise em função das turbulências políticas do golpe de 62 de José Maria Guido e Arturo Illia.

Creio que por causa disso Fernando e sua troupe chegaram ao Brasil, a convite de Rudá de Andrade, que fora seu colega no Centro Sperimentale de Cinematografia de Roma. E foi a partir daí que deu-se o momento histórico do encontro do cinema documentário paulista, que estava por nascer, com seu futuro mentor e realizador Thomaz Farkas. A informação desse encontro é dada pelo próprio Birri:

“Rudá organizou um grande painel, onde todos nós estávamos. Mais do que um painel em si, o que mais me lembro é de quando termina nossa exposição – havíamos mostrado alguns dos nossos filmes, saímos e estamos todos reunidos. Evidentemente Paulo Emílio Salles Gomes reinava na noite com suas gargalhadas. As raízes se cruzavam sob a terra, estávamos juntos, as coisas estavam ditas, tudo estava claríssimo neste momento. E entre esta turma de companheiros aparece então um vendedor de aparelhos cinematográficos que decide compartilhá-los com seus amigos e também fazer cinema em São Paulo. Chamava-se Thomaz Farkas”.

Nesta noite, de alguma maneira, nasce o primeiro embrião do que depois iria ser o Movimento Documentarista de São Paulo. E deste pequeno grupo nascem Memória do Cangaço de Paulo Gil, Subterrâneos do Futebol de Capovilla, Viramundo de Geraldo Sarno, Nossa Escola de Samba de Manuel Gimenes, além do famoso documentário de cordel de Sergio Muniz.

Thomaz já é um fotógrafo conceituado nacional e internacionalmente quando aproximou-se do cinema documentário, sem dúvida influenciado por Birri e Tiré Dié, o filme símbolo de um novo enfoque do cinema documentário latino americano que traz consigo, a novidade do som direto em sua verdadeira função. Coincidentemente chegara ao Brasil em outubro de 62, convidado pela UNESCO, para dar um curso de cinema no Rio de Janeiro, o cineasta documentarista sueco Arne Sucksdoff. Fazia parte da sua bagagem uma Arriflex e um gravador Nagra inexistente até então no Brasil. Sua vinda fora articulada pelo diplomata Lauro Escorel, Chefe do Departamento Cultural e de informação do Itamaraty.

Com certeza havia por trás desse convite um projeto de apropriação técnica do som direto, pois a segunda opção era Jean Rouch. Fizeram parte desse curso 18 jovens da geração que viria realizar o cinema novo, dentre eles Dib Lutfi, Eduardo Escorel, Arnaldo Jabor, Luiz Carlos Saldanha, David Neves e um único paulista, Wladimir Herzog. A prova final do curso, que viria a terminar em fevereiro de 63, resultou em Marimbás, um documentário dirigido por Wlado, sobre pescadores do Posto 6 de Copacabana e que vem a ser, a primeira experiência de som direto através do Nagra no Brasil.

Numa ilação perigosa, ouso dizer que as presenças de Birri e Sucksdorff no Brasil influenciaram não só a nova geração dos cineastas que estavam virtualmente surgindo em São Paulo e no Rio, mas refletiu-se profundamente em Thomaz no sentido de se preparar para fazer documentários. Tanto é certo que em fins de 63, Thomas adquiriu uma Arriflex 16mm. e o Nagra que Sucksdorff tinha deixado no Brasil. E não havia atrás disso ainda nenhum projeto.

O que vai se propor agora, nesse texto de relembranças e afirmações jamais provadas, é revirar o passado para saber como se transforma o fotógrafo consagrado e o comerciante bem sucedido num produtor de filmes, num documentarista, num artista do audiovisual.

Tudo começa em 31 de março de 64, lá pelas 6 horas da tarde, na confluência do Anhangabaú com a São João, num famoso bar de esquina onde nos reunimos para saber que rumo tomar em função da perturbação política que se iniciava. Eu sai da Ultima Hora, onde exercia a função de repórter especial e outros foram chegando para encontrar um meio de saber o que fazer. Guarnieri, Juca de Oliveira, Rudá de Andrade, Caio Graco, Jean Claude Bernardet, Wlado, (não posso citar mais nomes porque a memória é fraca), mas lá pelas tantas um grupo decidiu ir para a casa de Caio Prado Jr. pai de Caio Graco, e outro para a casa de Thomas, no Pacaembú. Ele nos recebeu, passamos a noite sem dormir e no dia seguinte fomos para sua casa em Guarujá. Logo chegaram Sergio Muniz, Wlado, Geraldo Sarno que vinha da Bahia e mais tarde, naquela semana, os argentinos da Escola de Santa Fé que estavam com Birri no Brasil, Edgardo Pallero, Dolly Pussi e Manuel Gimenez. E foi em Guarujá que a ideia surgiu a partir de uma frase despreocupada de Thomas. O que é que vocês querem fazer? Queremos fazer filmes, respondemos.

Numa reunião com todos presentes Thomas pede um tema para cada um. Geraldo propõe a imigração nordestina em São Paulo. O título Viramundo já devia estar na sua cabeça e foi elementar e definitivo. Eu já tinha um título, do livro de João Saldanha, Subterrâneos do Futebol, só não tinha a autorização. E Manuel Gimenez, com toda timidez levanta a voz para propor documentar a preparação e o desfile de uma pequena escola de samba no Rio de Janeiro chamada Unidos de Vila Isabel que ele nomeou de Nossa Escola de Samba.

Começamos a trabalhar tendo como cenário o mar de Guarujá. Pouco tempo depois, Thomas encontra-se, num bar da Av. Atlântica no Rio, com Paulo Gil Soares, que vinha da Bahia depois de filmar um longo depoimento em 35mm com o famoso Coronel Zé Rufino, responsável pela morte de Corisco e de mais de 20 cangaceiros. Thomaz assume a produção para complementar o filme com novos depoimentos de antigos cangaceiros em Salvador e a restauração das imagens do bando de Lampião, registradas em 36 pelo fotógrafo Benjamim Abrahão e que estavam perdidas em Fortaleza, no Ceará. Dessa forma nasce Memória do Cangaço.

Assim começa o processo que resulta na série de filmes do longa metragem Brasil Verdade, primeira etapa da uma longa caminhada que a Caravana Farkaz faz pelos sertões do Nordeste com seu grupo de destemidos cineastas que devem estar abertos a relembranças como essa. Thomaz formou, a partir daí, um grupo e fez parte dele, como produtor e como fotógrafo, deu o exemplo de compartilhar e tornar possível o sonho de cada um de nós sem se importar com o momento histórico complicado em que vivíamos. Um homem sem medo, dedicado a romper com todos os obstáculos, visionário e magnânimo, aprendiz e mestre da arte de tornar possível o que aparentava ser impossível.

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