Por Carlos Ebert
O possessivo me incomoda. Minhas… Fica parecendo que as possuí, quando em sua grande maioria foram emprestadas ou alugadas. Mas como esse é o jeito coloquial de falar dessas coisas, fica assim mesmo.
Minha primeira câmera foi uma Keystone A-9. Parece um tijolo com uma objetiva espetada. Na verdade, nunca filmei um fotograma com ela. Pertencia a um amigo de meu pai, na casa de quem eu estudava para o vestibular (tinha um filho da minha idade, fera em matemática, física e que tais).
Fiquei fascinado pelo “tijolinho”, o amigo notou, e como sabia que o pai não mais a usava, sugeriu que me emprestasse. Não me lembro se tive a cara de pau de dar uma indireta, mas a memória é assim mesmo: higieniza as lembranças, apagando eventuais baixarias.
A Keystone foi meticulosamente examinada em todos os locais a que tive acesso sem remover parafusos. Cheguei a pedir uma bobina com filme revelado para aprender a carregar. Com ela filmei “virtualmente” algumas cenas em meu quarto. Tinha 17 anos. Após este aprendizado básico, quis partir para uma filmagem real.
Fui até a Óptica Lutz Ferrando, da Av. Rio Branco (em frente ao edifício Avenida Central), e perguntei ao vendedor se tinham filmes 16 mm para vender. Fui apresentado então ao Ansco Chrome e ao Gevapan 30, p&b, ambos reversíveis.
O preço de uma bobina de 30m excedia a minha mesada. Além disso, tinha a revelação. Não seria ainda o momento da minha estreia como câmera.
Como dizia Nelson Rodrigues, “Sem sorte você não chupa um picolé na esquina” (1). Assim, logo em seguida descobri que um amigo da rua tinha uma Revere, que além de equipada com a normal 25mm Wollensack, tinha mais duas objetivas da mesma marca: uma 17mm e uma 75mm. Extase: Agora dava até para “fazer um filme”.
Entretanto, logo descobri porque aquela preciosidade estava encostada: ao invés das tradicionais bobinas de 30m, ela usava um cartucho para 15m que obviamente não existia num raio de milhares de quilômetros.
Meu parceiro na descoberta, o hoje crítico de arte Paulo Sergio Duarte, tinha um irmão mais velho, fotógrafo amador sofisticado (tinha duas Leicas!), que se dispôs a resolver nosso problema, abrindo os cassetes antigos e carregando-os na camara escura com Plus-X negativo. Funcionou.
Filmamos com a Revere aquele que foi o meu primeiro filme (mudo e sem edição). Recebeu um título banal; ” Passos”, que descrevia perfeitamente o exercício de linguagem que tentamos fazer: Narrar a história de um cara que leva um fora da namorada que não comparece a um encontro marcado, apenas mostrando seus pés.
As guimbas de cigarro lançadas na calçada eram apagadas cada vez com mais raiva e o filme terminava com o bouquet numa lata de lixo. Não sei se feliz ou infelizmente, não sobrou um fotograma sequer desta primeira incursão cinematográfica.
O “estado da arte” da cinematografia amadora então era a Paillard-Bolex H-16 Rex. Objeto de culto e desejo dos projetos de cineasta como eu. A descoberta de que “o pai de fulano tem uma Bolex”, elevava em muito o status social, e porque não dizer “político”, do rapaz (que por ironia, na maioria dos casos não era interessado na “7ª arte”.
Deus dá nozes a quem não tem dentes… Assim, meu contato com as Bolex se resumia a um namoro platônico com uma novinha, que ficava exposta permanentemente na vitrine da Lutz Ferrando. Esplendida, com “tripé original, 3 objetivas Kern-Paillard e mala de prontidão”, parecia sussurrar: “não sou pro seu bico”…
Há tantas voltas do mundo, virei universitário. Na Faculdade Nacional de Arquitetura da Universidade do Brasil, reconheci imediatamente “meus pares”. Como uma quinta coluna, os “loucos por cinema” eram atraídos pelo curso de arquitetura, que se não era a sétima, pelo menos era uma das artes…
Rapidamente nos reunimos, reativamos o cine clube, mandamos consertar o Bell & Howell Filmosound 16mm do “Departamento de Recursos Audio-Visuais” e começamos a projetar.
Primeiro foi um ciclo Nouvelle Vague (me lembro de “Ascensor para o Cadafalso”, “Acossado” e “Jules e Jim”), depois um de Neo Realismo que encerrou com “O Bandido Giuliano”, nosso cult na época. Gianni Di Venanzo era então o meu guru. Assisti “A Noite” quatro vezes tentando “entender” aquelas noturnas deslumbrantes.
Mas a condição de espectadores cinéfilos não nos bastava. Assim começou a germinar o projeto de “fazer uma ficção”. Por comodidade, começamos pela locação: Um dos fundadores do grupo, o Rui , tinha uma casa em Ponta da Fruta – uma praia semi-deserta no litoral do Espírito Santo – onde uma colônia de pescadores definhava por falta do que pescar. Este seria o tema. Por que não um documentário? Porque “queríamos dizer algumas coisas” e achávamos o documentário “muito careta”. E assim foi: escrevemos o roteiro, dramatizando as “contradições” de uma família de pescadores e fomos para a locação.
Desta vez eu não seria o fotografo, seria o diretor. Acho que os colegas perceberam minha “pouca prática” e concordamos em chamar alguém mais experiente. O escolhido foi o Carlos Egberto Silveira, nosso colega de ABC, que tinha uma Pathé Webo, com um ótimo jogo de objetivas, tripé etc.
Desta aventura, saiu “Mar Morto”, que posteriormente foi ampliado para 35mm em negativo de som, transformando-se assim num “curta experimental”. Recentemente encontrei numa caixa, salva de uma enchente de janeiro, alguns contatos, que acredito serem as únicas imagens que restaram desta aventura.
A arquitetura era um quebra galho, e a notícia de que em São Paulo fora inaugurada a Escola Superior de Cinema da Faculdade São Luís, fez com que eu saltasse fora, sem sequer trancar a matrícula ou esvaziar o armário (alguém ganhou de presente um estojo de compassos Kern, régua T, esquadros etc.).
Fui morar com minha irmã no Brooklin, e finalmente passei a estudar cinema oficialmente. Se a escola decepcionou, os colegas não. Minha turma era formada entre outros por Cláudio Polópoli (que viria a ser meu sócio no primeiro e único longa que dirigi), Paulo Rufino, João Calegaro, Ana Carolina, Carlão Reichembach, Cesar Lofiego (por onde andas?) e João Carlos Colaferri. Já no início do primeiro ano formamos uma cooperativa para fazer “filmes de cinema”.
Neste ínterim o formato mais acessível passou a ser o 8mm. Ou seja: a qualidade caiu junto com os custos. Mesmo assim a nossa Nizo 8mm tinha óptica Schneider, e produzia imagens bem interessantes em filme reversível. Radicais, banimos a cor dos nossos filmes.
Voltei para a fotografia, e incursionamos por todos os gêneros. Até um filme romântico (escrito e dirigido pelo Colaferri) foi realizado, tendo (pasmem!) a Ana Carolina como heroina romântica.
Sem dúvida a mais envergonhada das atrizes que já filmei. O único 16mm desta época, fotografei para o Carlão Reichembach. Não me lembro o nome, mas o Jairo Ferreira publicou uma foto da filmagem em seu livro Cinema de Invenção, o mais expressivo documento deixado sobre o cinema independente de então em São Paulo.
Do 8mm passamos para o super 8mm. Mais área, um pouco mais de qualidade. O paradigma passou a ser a Canon 1470 e logo alguém conseguiu uma (emprestada como sempre….). Minha vida pessoal mudava rapidamente. Minha irmã descasou e voltou para o Rio. Fui morar de favor com um colega da escola – Eduardo, na praça Roosevelt (na ocasião ainda uma praça. O monstro de concreto, obra do Dr Paulo, foi feito depois).
Um dia, encontrei na rua por acaso José Alberto Reis, um dos integrantes do grupo que tinha feito Mar Morto. Ex gerente do Banco Mineiro do Oeste , estava em São Paulo para abrir e gerenciar a sucursal da Difilm, a distribuidora do cinema novo.
Me propôs dividirmos um apartamento na Vila Buarque, que era então o que a Vila Madalena é hoje – uma espécie de quartier latin da paulicéia, ainda completamente desvairada.
Apresentado por Zé Alberto ao Maurice Capovilla, fui ser fotografo de still de seu longa de estréia “Bebel, Garota Propaganda”. Roberto Santos, que era meu professor na escola de cinema, era o produtor executivo e Waldemar Lima, já famoso pelo seu trabalho em Deus e o Diabo na Terra do Sol, o fotógrafo.
Ai se iniciou meu verdadeiro aprendizado como profissional. Observando Mestre Lima lidar com as luzes e a Arri IIC, novinha em folha, importada pelo George Jonas, aprendi muitas lições. Felizmente, tenho o prazer de desfrutar de sua preciosa amizade até hoje.
Na realidade meu contato com as Arriflex 35mm era anterior a Bebel. Já tinha feito um curta com o José Roberto Noronha – O Lobisomem, usando a mitológica IIb do Patrimônio Histórico, que andava pelo eixo Rio – São Paulo, nas mãos de gente como Joaquim Pedro e Fernando Coni Campos.
A camera – que era de todos e de ninguém, tinha uma zoom Som Berthiot 35 – 135mm com comando linear, pau prá toda obra, dois chassis de 60m e ponto final.
Rogério Sganzerla, outro amigo de sempre , saiu da casa do irmão no Sumaré e foi morar conosco na Vila. Trazia permanentemente um calhamaço de papeis ensebados e meio rasgados pelo uso, onde anotava e emendava furiosamente – a todo momento e lugar, as seqüências que mais tarde comporiam o Bandido da Luz Vermelha. Nossa amizade foi se estreitando e ele me convidou para participar do filme.
Não me sentia ainda capacitado para enfrentar um longa, mas como só tínhamos condições naquele momento para filmar exteriores dia, entrei na parada. Mais tarde, com a chegada de um produtor da boca do lixo (José da Costa Cordeiro, o Deca da Urânio Filmes), decidimos chamar um diretor de fotografia “de verdade” para encarar as noturnas e os interiores.
Conversamos com Hélio Silva, que nos fora indicado por Ivan “China” de Souza, nosso diretor de produção. Hélio já estava comprometido. Não me lembro mais por sugestão de quem, fomos então procurar Peter Overback. Timido e caladão, Peter emprestou ao filme seu excepcional talento como iluminador.
Como seu operador de camera, tive o privilégio de acompanhar de perto seu processo criativo, e aprender a pensar a imagem cinematográfica em função da narrativa. Acho que tivemos sucesso. O Bandido é de todos os filmes que participei, aquele que mantém intacto seu interesse depois de mais de 30 anos. Não é a toa que figura sempre entre os melhores filmes brasileiros de todos os tempos.
Depois do Bandido, que fazer? Rogério armava A Mulher de Todos, mas atrasou e eu fui parar numa co-produção luso-brasileira chamada Leg – Sou louca por Você, escrita e dirigida pelo ator português Rui Gomes. A produção aparentava ter recursos (mais tarde descobriríamos todos a extensão da armação).
Puseram a minha disposição um bom parque de luz, um negativo novo Fuji (todas as latas da mesma emulsão. Uau!!!), o laboratório Rex (meu predileto então) e principalmente uma Cameflex com 8 lentes Kinoptik novas. Todas as desgraças e injustiças sofridas então foram – vistas com o distanciamento de hoje, recompensadas pela experiência excepcional que tive.
Trabalhei com feras da pesada, remanescentes da Vera Cruz (Sergio , Alexandre e Vladimir Warnowski e Pedro Kopchak) que me deram o suporte que precisava para fazer um trabalho de qualidade. Uma manobra da produtora que assumiu a massa falida do filme, conseguiu provar na Justiça do Trabalho que eu não participara do filme, e que portanto não tinha nada a receber. Fiquei na saudade. Coisas do cinema nacional…
Minha estreia na cor em longa metragem foi em 1970 com República da Traição. Além de co-roteirista, produtor e diretor, fotografei e fiz camera (normal para os padrões da época…) Meu assistente de camera era André Faria com quem trabalharia mais tarde (1972 – ele diretor e eu fotógrafo) , em Prata Palomares.
Como este relato tem como foco narrativo as cameras e não os filmes, tenho a registrar apenas que foram muitos os filmes que fiz com as Arris IIb e IIC – as cameras oficiais do cinema brasileiro de então, e que a Cameflex era um “artigo de luxo”, e que sua presença no set era sinal de status elevado da produção.
Ainda nessa época tive uma experiência interessante que foi usar uma Parvo L num documentário. Era como entrar na máquina do tempo. Fazia-se o foco na película, e como na época as emulsões já eram bem mais espessas e com camada anti halo, valia mais a trena do que o olho. Na hora de filmar a opção era o visor lateral de paralaxe. Uma coisa era certa: a “angustia do copião” aumentava significativamente.
Com Zé Celso Martinez Corrêa e o elenco do Teatro Oficina, fiz O Rei da Vela. Tínhamos co-produção com a RAI italiana que mandou uma Arri 16 BL novinha com uma zoom Zeiss 10-100mm e um nagra III todo equipado, que mestre Amedeo Riva operava. Neste filme e em Prata Palomares fui assistido por Rogério Noel, um grande talento, prematuramente desaparecido.
Nos intervalos jogávamos uma adivinhação que ele trouxe da convivência com o Dib Luft, e que consistia em ajustar “pelo olho” a exposição da cena , anotar as aberturas e depois tirar a teima com o fotômetro. Um ótimo exercício! O trabalho de camera de O Rei da Vela me deu a oportunidade de excursionar por todos os estilos:
O primeiro ato tinha uma linguagem próxima aos filmes b da Warner (em preto e branco), com ângulos exóticos e muita camera no chão. O segundo era um carnaval com a camera dançando na mão o tempo todo e cores esfuziantes. No terceiro voltava para o tripé e ganhava movimentos lentos de dolly. Usei muito a luz teatral a qual adicionava um mínimo de fill light, apenas para adequar o contraste à disciplina do Ecktachrome reversível.
A esta altura, comprei a minha primeira (e última) camera cinematográfica: uma Arri 16 S, com uma Angenieux 12-120 e 2 chassis de 120 m. Com ela fiz documentários, curtas e longas, alguns deles ampliados depois para 35mm. Era uma ferramenta notável por sua versatilidade e resistência. Resistiu impávida à umidade amazônica e à secura nordestina. Quando vendi fiquei triste. Deixou saudades…
Problemas com a censura em vários filmes, alguns dos quais eu era co-produtor, me levaram a um “auto-exílio” de quatro anos numa cidadezinha na serra, em Minas Geraes. Para sobreviver, virei hortelão, dono de restaurante e professor secundário.
Quando voltei as lides cinematográficas, a tecnologia tinha dado um salto e as cameras 35mm eram todas auto-blimpadas. Voltei ao cinema pela publicidade e minha experiência com as BL I, II e III foram quase que exclusivamente em comerciais.
Comecei a fazer trabalhos em vídeo nos formatos U-matic e 1´. O vídeo então era visto com maus olhos pela quase totalidade dos DFs. Uma exceção notável foi o Affonso Beato, que quando encontrei em NY em 1970, já se interessava pelo assunto e fazia um curso na RCA.
Vi futuro no suporte e de uma maneira um tanto desordenada e com auxílio dos livros existentes na biblioteca do consulado americano do Rio, fui estudando a matéria enquanto praticava na Telecine Maruim com Mair Tavares, Orlando Senna, Eduardo Escorel e Gustavo Hadba entre outros.
O Gustavo tinha uma Sony de um tubo, acoplada a um gravador U-matic com que fizemos vídeos experimentais e de ficção (alguns premiados nos primeiros VideoBrasil.).
Dai prá frente venho me utilizando alternadamente dos dois suportes. Ultimamente o transfer de digital para película tem me propiciado fazer alguns documentários que em filme seriam impraticáveis pelo alto custo.
O suporte filme ainda apresenta superioridade com relação ao digital, mas as diferenças vem se reduzindo rapidamente, e num futuro próximo a escolha entre os suportes será semelhante àquela dos pintores entre óleo e acrílico: Mais uma questão de gosto e adequação estética do que de qualidade.
(1) Na minha rua General Glicério (morei no mesmo prédio em que o Walter Carvalho mora hoje), fui muito amigo do Paulo Roberto Rodrigues, sobrinho do Nelson Rodrigues, desaparecido tragicamente com toda a família no desabamento do predio onde moravam, numa chuvarada de verão na década de 60. Nelson era uma figurinha carimbada, e a presença dele nas festinhas da família chamava a atenção. Lembro-me dele num aniversário com a calça presa por uma gravata, igual a que levava posta no pescoço. Uma figura…