O pífano é pop, é brasileiro, é cinema, é som

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Foto: Mariza Formaggini

Por Miguel Sá*

Festas populares, música na rua, equipe pequena, necessidade de agilidade… Como fazer o projeto de som de um documentário musical? Como ser fiel ao frescor das festas populares sem perder a qualidade sonora? 

Xingu, Cariri, Caruaru, Carioca é um documentário musical. Uma viagem pelo Brasil do pife ciceroneada pelo flautista e saxofonista Carlos Malta, criador do Pife Muderno, grupo musical, composto por músicos de flauta e percussão que explora as sonoridades e possibilidades musicais indicadas no pife tradicional. Por isso, a música ocupa um espaço tão importante quanto os depoimentos neste documentário diferente.

A qualidade sonora tem que ser máxima, mas realizar documentários tem especificidades que podem dificultar isto: a equipe tem que ser pequena para ter agilidade e não intimidar os entrevistados. Para não perder o calor das cenas, não é possível fazer maiores preparações técnicas. É preciso estar sempre pronto, sempre filmando, sem segundo take, geralmente em condições desfavoráveis para captar o melhor som.

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Captando Carlos Malta e Zabé da Loca. Foto: Mariza Formaggini

Acompanhado do pandeirista Bernardo Aguiar, Carlos Malta foi até a aldeia Ipatse Kuikuro, no Alto Xingu, Estado do Mato Grosso, onde tocaram com flautistas indígenas. Também há conversas e jams com pifeiros do Ceará, Paraíba e Pernambuco, como Isabel Marques da Silva – a Zabé da Loca – João do Pife, Marcos do Pife e a banda Dois Irmãos, de Caruaru. Esta última se juntou em um cortejo apoteótico com a Banda do Zé do Estado mais Edmilson do Pife na famosa Feira de Caruaru. No Crato (PA), Carlos Malta conversou e tocou com os irmãos Aniceto.

Já no Rio de Janeiro, o filme termina com mais um cortejo da praça São Salvador, no Flamengo, até a praia do Flamengo. O megacortejo teve muitas participações especiais, como a flautista Odette Ernst Dias e o percussionista Robertinho Silva

Roteiro 

A filmagem seguiu algumas premissas. Malta era o personagem principal. Ele seria sempre filmado em dupla com algum dos tocadores de pífano. Durante as entrevistas, o “pifeiro muderno” faria perguntas que demonstrassem as peculiaridades de cada instrumentista e a características de seus instrumentos. “Em vários momentos ele, que é um grande músico, faz a segunda flauta para jogar o protagonismo para os mestres dele. É um filme de relação, de encontros entre um músico contemporâneo, que trabalha com uma música mais jazzística, ressignificando os sons tradicionais. O filme é um pouco a síntese desse encontro entre esses dois mundos que são complementares, que tem uma interdependência”. Explica a diretora Beth Formaggini.

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Carlos Malta e Seu Raimundo Aniceto no Cariri Cearense. Foto: Mariza Formaggini

Durante as entrevistas, Carlos Malta se preocupou em mostrar os diferentes sotaques e sonoridades obtidos a partir daquele instrumento de bambu. Sotaques diferentes gerados pelos índios do Xingu e pelos pifeiros de diversas regiões do nordeste. “Uma das raízes é indígena, com as flautas gigantescas que eles tocam; tem o sotaque do Cariri, com os irmãos Aniceto. No filme procuramos mostrar também a hereditariedade e a continuidade e o prolongamento disso quando chegamos no Rio de Janeiro e encaramos um cortejo com 20 tocadores de pífano. O pife ficou pop”, brinca o músico.

Projeto de som

Beth Formaggini considera o som parte importante de seus filmes. “Antes, chamava sempre o Aurélio Dias (também baixista de artistas como Fernanda Abreu e Ed Motta, falecido em 2012). Comecei agora a trabalhar com o Damião Lopes, na parte de design de som”, expõe Beth. O som direto ficou por conta de Altyr Pereira, que também é músico.

Para definir o projeto sonoro, foram feitas reuniões entre Damião Lopes, Altyr Pereira, Beth e Carlos Malta. Várias questões foram debatidas: haveria captação de som com índios em uma aldeia tanto andando como parados, entrevistas intercaladas por diálogos e música e apresentações públicas em movimento na Feira de Caruaru entre outras situações mais ou menos complexas.

Além das questões técnicas, foi discutido também a adequação da captação de som à proposta do filme, com centralidade na música, verossimilhança do som captado com o ambiente onde era produzido e qualidade técnica na captação do som sem, no entanto, ficar com cara de som de estúdio de gravação.

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Gravando o cortejo na feira de Caruaru. Foto: Mariza Formaggini

Captação de som direto

A partir das conversas com a equipe do filme e de sua experiência, Altyr Pereira fez a escolha dos equipamentos pensando em versatilidade. Ele queria poder captar os diálogos e as músicas e também ter segurança nas captações. Para isto, optou pelo uso simultâneo de sistemas lapela e de captação mais aberta do ambiente com os booms. “Não conheço nenhum amigo que tenha gravado bandas de pífano. É uma experiência muito particular, um instrumento muito agudo, cheio de overtones, tocado, em geral, em lugares abertos. No Xingu, o som estava pronto. No nordeste, experimentei mais com colocação de lapela e com o microfone estéreo”, expõe o técnico de som direto.

Altyr ressalta a importância de contextualizar o som do instrumento dentro do ambiente de forma que esta sonoridade possa ser reconstruída na mixagem. “O instrumento e o jeito de tocar se desenvolveu nesse lugar, então a sonoridade do instrumento também é a do instrumento no ambiente. O desafio era tentar transformar esse som numa captação tecnicamente perfeita e audível. Será que, depois, este som vai contar a história direitinho para alguém ouvir depois em outro lugar? Vai explicar bem o que é o pife? Então você tem que trazer o pife, porque se você tiver muito ambiente, os instrumentos somem. A seleção é radical, a escolha é artificial. É tirar do ambiente uma coisa que parece com ele, mas não é ele”, demonstra.

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Captando Crianças no Xingu. Foto: Mariza Formaggini

Os microfones usados pelo técnico foram, principalmente, os Sennheiser MKH 418 Stereo MS e MKH 416. Altyr tinha em mente que o 418 seria o microfone que daria o tom do som direto, mas houve situações onde o MKH416 acabou funcionando melhor. “Usei o 418 porque dá a possibilidade de usar só o centro se precisar. Como intercalava depoimentos com musica – o que é outro desafio, porque o cara estava falando e, do nada, pegava o pife e já vinha aquela pressão no microfone – então tinha que achar esse equilíbrio. O 418 é um microfone versátil, mas funciona com muita pressão sonora, não é para gravar um ambiente silencioso porque começa a ter ruído do sistema dele. No Xingu, onde já havia estado antes, você um índio a 200 metros de distância do outro falando entre sí sem gritar. O ambiente é realmente silencioso. Aí me dei conta que o 416, que é um microfone mono, hipercardioide, funcionaria melhor. Fiz uma textura diferente do ambiente do nordeste”, detalha.

Para garantir a captação dos pifes e diálogos, Altyr não abriu mão de sistemas de microfonação lapela, que foram os da Lectrosonic . Ele levou três sistemas de lapela mais quatro cápsulas, sendo uma Sanken e três Countryman B6. “Descobri que as cápsulas Countryman funcionavam muito bem em todos os pifeiros, menos no Malta. Para ele, a que soava bem era a Sanken. O Malta vem de um outro mundo. Ele bebe naquela fonte dos pifeiros, também tem aquela sonoridade áspera se quiser, mas toca em vários registros, e a Sanken teve uma melhor resposta”, define Altyr.

Há regras que são consagradas no som direto. Por exemplo: o técnico deve respeitar o eixo de captação do microfone. Mas quando se faz captações em situações pouco comuns, às vezes é necessário soluções diferentes. Altyr se diverte quando lembra dos “absurdos” que teve de fazer. “Tanto no Xingu como no nordeste, em alguns momentos, me vi com o microfone totalmente fora de eixo. Se passasse um colega lá ia dizer que estou louco. ‘Olha só, o microfone está apontado para a parede, para o teto, para o chão’. Mas a ferramenta que eu mais respeito é o meu ouvido. O manual, nessas horas, eu jogo fora. Eu procurava achar o meio termo entre o que estava gravando e o que queria ouvir. Mostrar aquela experiência viva no ambiente, mas com aquela atenção especial no pife”, relembra.

Mixagem

Damião Lopes foi o responsável pelo projeto de som e também a mixagem do filme. Após a edição de imagem, o trabalho começou, no Pro Tools do estúdio de Damião, com uma pré mixagem dos diálogos para dar a referência do volume. No estúdio dele, Damião contou com o Pro Tools X, com 5.1 plug-ins de restauração da iZotope e Waves, com redutores de ruído e filtros, além de equalizadores e compressores da Avid e reverb TL Space. “Em qualquer filme você tem a mixagem do dialogo como uma referência. Trabalhei com equalização, entradas e saídas (das falas), cortes, dinâmica, compressão e uma série de ferramentas para trazer o nível do diálogo. Com o nível do diálogo estabelecido no filme, você tem um ponto de referência para trazer música e outros elementos, sempre em relação aos diálogos. Depois eu fiz uma edição e uma mixagem dos outros efeitos”, detalha.

A partir daí, o trabalho de mixagem envolveu mesclar o som dos microfones lapela, boom e, em alguns momentos, até mesmo da câmera, de forma a criar o ambiente sonoro do filme. “Tem automações acontecendo o tempo inteiro. Na tribo, tem sons montados para trazer a textura daquele ambiente sonoro, tem surround, tem toda a parte de montagem de ambiente. Não é um filme de som direto bruto, tem muita coisa montada também. Por exemplo, nas sequencias mais abertas tem um som com mais ambiente e, de repente corta para um plano fechado no Malta. Aí eu uso o lapela para dar a textura naquele plano. Não é igual a mixagem de música, que aquilo tem um equilíbrio geral que permanece. Mas o que deu mais trabalho foram as situações de cortejo, que tinha som mais alto, mais baixo… Tinha que tentar dar uma unidade nessas frequências.”, explica o técnico de mixagem.

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Damião Lopez. Foto: Miguel Sá

Há também situações nas quais um técnico de som pode trabalhar criativamente. Durante a introdução do filme, foi usada uma cartela de apresentação. A trilha era uma música tocada pelos índios do Xingu. No entanto, o tratamento sonoro dado àquela trilha foi diferente no momento em que ela tocava sobre a cartela e quando houve o corte para os próprios índios tocando a mesma música. “Ali eu brinquei com a ideia de que na cartela a música é não diegética, como acontece nos videoclipes, onde você tem imagens editadas que, não necessariamente, tem a ver com as imagens. Dei um tratamento um pouco diferente, um pouco mais de reverb e mais surround”, exemplifica Damião. Já quando a imagem cortava para os índios tocando a mesma música, o técnico deixou apenas o ambiente gravado na hora da captação do som. Naquele momento, o som era diegético – ou seja, pertencia à imagem – e o técnico deu ênfase ao ambiente natural da música.

Depois, Damião e Beth Formaggini se reuniram no estúdio dele para fazer uma revisão antes de ir ao estúdio do Centro Técnico Audiovisual (CTAV), na Avenida Brasil, no Rio de Janeiro. “O processo é basicamente trazer uma seção de Pro Tools. A idéia aqui não é revisar conceito, mas basicamente ouvir em uma sala grande o que já se revisou. Esse é o meu processo. Fazer a pre-mix no meu estúdio e vir aqui revisar”, explica o soundesigner. O estúdio do CTAV é público. Para utiliza-lo, é preciso fazer um projeto.

Damião ressaltou a qualidade do material de som direto que Altyr entregou. “Poderia ter tido problemas sérios de perder uma cena, porque neste filme há situações em que o técnico não tem muito como preparar e refazer uma cena. É um negócio que é ali, naquele momento que tem de resolver. Neste filme, um som distorcido ou um microfone sem tanta qualidade teria um impacto terrível porque ele depende muito da qualidade sonora. São várias entradas de música. O som direto foi fundamental”, destaca.

Trabalho meticuloso

No resultado final, fica evidente o resultado do respeito tanto pelo que os músicos tocaram como pela paisagem sonora dos locais onde aconteceram as filmagens. Um bom exemplo do cuidado do trabalho é a edição do cortejo da Feira de Caruaru, feito em conjunto por Beth, Carlos Malta e a editora Joana Collier, onde não há nenhuma passagem brusca que desconcentre o espectador da música.

Beth Formaggini e Carlos Malta: O encontro, a idéia, o filme

O documentário surgiu do encontro de Carlos Malta com a cineasta e produtora Beth Formaggini. “Queria fazer um filme que contasse a história de como vim a aprender a tocar pífano. Sobre como isso chegou pra mim no Rio de Janeiro em 1972”, comenta Malta. Foi neste ano que ele ouviu a música Pipoca Moderna no disco Expresso 2222, de Gilberto Gil, e se fascinou com a sonoridade das bandas de pífano tradicionais do nordeste.

Um pouco mais tarde, já como músico profissional, o flautista teve uma longa história musical com Hermeto Pascoal, do fim dos anos 1970 até meados da década de 1990. “Depois de passar por essa vida toda com a música de base nordestina, resolvi montar uma banda de pífano. Isso já vai fazer 20 anos, e fiquei com essa vontade de juntar esses caquinhos para fazer um quadro de uma música que tem raízes europeias, africanas e indígenas. A banda de pífanos sintetiza o que realmente é a música brasileira”.

Em meados dos anos 2000, Carlos Malta participou do evento Selo Instrumental, coordenado por Roberval Duarte e Mariza Formaggini, irmã de Beth Formaggini. Mariza foi quem apresentou Carlos para Beth, que é diretora de documentários como os premiados Angeli 24 Horas e Memória para uso diário. “O Malta apresentou o projeto, me apaixonei pela idéia e comecei a formatar, roteirizar, e a tentar captar recurso. A cada ano ia pesquisando mais e melhorando formatação, encorpando o projeto e mandando para os editais até que fosse escolhido”, rememora a cineasta.

Para saber mais, acesse:
http://www.eufonia.com.br
http://www.carlosmalta.com.br
https://www.facebook.com/XINGUCARIRICARUARUCARIOCA

* artigo publicado originalmente na Revista Backstage

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