Por Danielle de Noronha
A memória tem conquistado cada vez mais espaço nas discussões que visam entender as sociedades contemporâneas. A importância social e política da memória apontam para a necessidade de sua preservação e difusão, em diferentes versões, para o desenvolvimento de construções sobre o passado e criação de identidades. Entre os diferentes meios em que é possível produzir e reproduzir memórias – individuais e/ou coletivas – o cinema se apresenta como um importante campo. Além disso, o próprio cinema se torna objeto da memória. A preservação da memória do cinema brasileiro é importante para conhecermos também a sua história, entendermos o seu desenvolvimento enquanto arte, a sua linguagem e a sua relação com os contextos históricos.
O pesquisador e responsável pela área de conservação da Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-RJ), Hernani Heffner, acredita que a preservação de todo material relacionado ao audiovisual produzido no país é fundamental, já que é uma porta de acesso ao conhecimento do que somos e do que queremos ser, tanto na perspectiva histórica, quanto na cinematográfica: “Se perder esse material a gente estará perdendo não só grande parte da nossa história recente, mas vai perder a possibilidade de acesso da compreensão do que nós verdadeiramente somos. O volume, o alcance e a importância que o audiovisual assumiu na atualidade dão a medida desse trabalho de preservação, dão a medida da absoluta necessidade que ele seja feito, dão a medida do quanto ele contribui de fato para o conhecimento das mais variadas dimensões do que é esse país chamado Brasil, além disso, se você quer dar conta da arte do cinema tal qual ela foi praticada no país, você tem que se preocupar igualmente com a preservação, numa dimensão de criação estética e artística, que assumiu no Brasil uma grande importância”, diz o pesquisador.
Mauro Domingues, coordenador-geral de processamento e preservação do Acervo Nacional lembra que, de todas as formas de expressão cultural do país, o cinema brasileiro talvez seja a mais frágil e a que mais possui lacunas. “Ao verificar que mais de 80% do cinema silencioso produzido no Brasil já se perderam e uma boa parte do que sobrou apresenta mutilações, isso fica evidente. Ciclos regionais importantes, acervos produzidos pelo Estado Brasileiro, como os filmes didáticos do Instituto do Cinema Educativo – INCE (Edgard Roquete Pinto e Humberto Mauro), também possuem perdas significativas. Até mesmo filmes produzidos nos anos de 1990 já apresentam sérios problemas de conservação”, pontua Domingues.
Cinema de arquivo e arquivo de cinema
Atualmente, o Brasil possui três grandes arquivos públicos relacionados ao audiovisual: a Cinemateca Brasileira, a Cinemateca do MAM-RJ e o Arquivo Nacional, todos filiados à Fédération Internationale des Archives du Film (FIAF). “Tem poucos países do mundo que tem três acervos filiados à FIAF”, pontua Hernani. São eles que são os principais responsáveis pela preservação da memória do cinema brasileiro. Eles não possuem apenas os filmes propriamente ditos, mas também programas de televisão, vídeos institucionais e públicos, cartazes, roteiros, fotos, livros e todos os demais objetos e materiais que possam auxiliar na manutenção da memória das produções audiovisuais brasileiras.
Para manter a conservação dos filmes, as três instituições estão equipadas com arquivos climatizados, com controle da temperatura, que varia entre 10ºC e 20ºC, e da umidade relativa do ar, que garante a longevidade dos filmes de no mínimo cem anos. Além disso, todos os filmes são analisados e, dependendo do estado de conservação, são armazenados ou enviados para serem restaurados em laboratórios comerciais ou no laboratório da Cinemateca Brasileira.
Outra ação muito importante relacionada à preservação da memória do audiovisual é a difusão e o contato do acervo com o público. Todos os arquivos públicos são gratuitos, auxiliam no desenvolvimento de pesquisas, além de possuírem uma ampla base de dados para atendimento do público e uma programação para difusão de seus acervos.
Cinemateca Brasileira
A Cinemateca Brasileira iniciou o seu percurso em 1940, a partir da criação do Clube de Cinema de São Paulo, que contava com nomes como Paulo Emilio Salles Gomes e Decio de Almeida Prado, mas apenas em 1984 foi incorporada ao governo federal como um órgão do então Ministério de Educação e Cultura (MEC) e hoje está ligada à Secretaria do Audiovisual (SAV) do Ministério da Cultura (MinC). A instituição possui o único laboratório de restauração público do Brasil, que é uma referência das cinematecas latino-americanas, além do arquivo climatizado. Lisandro Nogueira, diretor da instituição, conta que as matrizes depositadas na Cinemateca Brasileira seguem padrões internacionais rigorosos: “Diariamente uma equipe extremamente qualificada monitora e acompanha o estado físico do acervo. Além disso, contamos com um dos mais equipados e modernos laboratórios de restauração da América Latina, capacitado a promover a restauração digital e duplicação de nossas matrizes”.
No inicio a Cinemateca funcionava no Parque do Ibirapuera. Em 1992, mudou para a sede atual, um edifício histórico inaugurado no século XIX, onde funcionava o antigo matadouro municipal, na Vila Leopoldina, em São Paulo. Patricia de Filippi, especialista em preservação audiovisual e que foi responsável pelo laboratório de restauração da Cinemateca por cerca de 14 anos, conta que foi chamada para remontar o laboratório alguns anos depois da mudança: “Quando a Cinemateca mudou de lugar, o laboratório foi desmontado, encaixotado e ficou anos assim. Era um período de vacas magérrimas para a Cinemateca. Anos depois, o laboratório foi aos poucos sendo remontado e nós percebemos que com aquelas máquinas velhas não era possível fazer muita coisa, então durante vários anos a gente fez projetos para conseguir reunir o parque tecnológico que hoje está lá”.
Entre as atividades desenvolvidas pelo laboratório da instituição estão: a restauração de filmes do acervo em estado avançado de deterioração, a transferência de materiais em suporte de nitrato de celulose para suporte de segurança (poliéster) e a confecção de cópias (matrizes ou reproduções para empréstimo). “O que foi feito na Cinemateca nos últimos dez anos foi construir um laboratório que pudesse dialogar e operar com vários tipos de mídias e formatos. Então, independente do material, o laboratório está preparado para processar com máquinas voltadas para o tipo de deterioração do material”, diz Patricia. A Cinemateca é responsável por cerca de 44 mil títulos relacionados ao audiovisual no país. Há o acervo institucional, mas a maior parte está sob custódia de filmes de terceiros, que são os depositantes, como instituições particulares e públicas.
Além disso, numa relação entre a preservação e a difusão, a Cinemateca promove mostras e possui o centro de documentação e pesquisa, que é formado por quatro setores: biblioteca Paulo Emilio Salles Gomes, os arquivos pessoais e institucionais, o laboratório fotográfico e a área de pesquisa.
Cinemateca do MAM-RJ
A Cinemateca do MAM-RJ tem quase setenta anos, sendo um dos primeiros arquivos de filmes da América Latina. Em 1948, foi uma das primeiras instituições a se filiar à FIAF. Atualmente possui cerca de dois milhões de itens, como cartazes, filmes, recortes, fotografias e equipamentos.
“Ela participou de muitos momentos, não só da história da preservação do audiovisual no Brasil, mas da própria história do cinema brasileiro. Ela foi uma espécie de sede, sobretudo nos anos 1960 e 1970, de um cinema mais engajado, mais empenhado, enfim, que procurava ter uma visão crítica da política brasileira”, conta Hernani, que trabalha na instituição desde 1996. Nesse período, a Cinemateca do Rio também foi uma das sedes das primeiras tentativas de criação da Associação Brasileira de Cinematografia (ABC). Walter Carvalho, atual presidente da ABC, conta que havia uma confluência de encontros no MAM ao longo do dia: “Tudo gravitava em torno do MAM, creio que por isso as primeiras tentativas de fazer uma associação passaram por lá”, pontua.Hernani continua: “Ela ficou muito grande e conhecida e acabou se tornando uma referência para esse trabalho de preservação e muitos trabalhos importantes da nossa história cinematográfica acabaram chegando aqui, por conta dessa repercussão. E, por exemplo, hoje nós não teríamos o nosso filme de ficção mais antigo, que é Os óculos do vovô, se ele num tivesse sido encaminhado para a cinemateca lá nos anos 1970 e ela num tivesse realizado a sua primeira restauração”.
A Cinemateca do MAM não possui laboratório próprio, mas realiza restaurações em conjunto com laboratórios comerciais, com particulares ou com a Cinemateca Brasileira. “A partir da sua primeira restauração, mesmo ela tendo uma série enorme de dificuldades, sobretudo financeira, não tendo laboratório próprio, ela pode desenvolver um trabalho tanto de coleta de materiais, de coleta de materiais não fílmicos, ela tem o maior acervo de documentação relativa ao cinema brasileiro e ao cinema mundial da América Latina, ela desenvolveu um trabalho de restauração que começou lá no Os óculos do vovô. Enfim, com todas as suas dificuldades ela consegue desenvolver um trabalho que se complementa com as outras instituições envolvidas nesse universo”, pontua o pesquisador. Além disso, a Cinemateca do MAM-RJ possui uma programação mensal, com uma série de mostras e eventos relacionados ao seu acervo.
Heffner expõe ainda que a cinemateca tem uma equipe muito pequena: “Entre funcionários, estagiários e voluntários somos sete pessoas. Ou seja, na verdade a equipe é muito pequena frente ao acervo e a complexidade desse tipo de trabalho, já que o trabalho de preservação é um trabalho de muita minúcia, que requer uma equipe grande para checar tudo. Algo que se você não tem, você continua fazendo, mas com muito mais vagar”.
Arquivo Nacional
O Arquivo Nacional tem uma longa história, que se inicia em 1838, quando foi criado o Arquivo Público do Império, na Rua da Guarda Velha, atual Treze de Maio. Depois de um longo percurso, em 1911, tem o seu nome alterado para Arquivo Nacional e, atualmente, integrado ao Ministério da Justiça, está situado no antigo prédio onde funcionou a Casa da Moeda (1868-1983), no centro de São Paulo, para onde se mudou em 2004, depois da restauração do prédio construído no século XIX.
Conforme explica Mauro Domingues, o arquivo é responsável pelos acervos do Estado Brasileiro, como os cinejornais da Agência Nacional; da TV Tupi RJ e da TV Educativa e dos documentários e cinejornais da César Nunes Produções. “Também sob sua guarda estão filmes doados e em regime de comodato, em que destacamos o acervo de Nelson Pereira dos Santos, Luiz Carlos Barreto, Ivan Cardoso, Joaquim Pedro de Andrade e Roberto Faria”, conta Domingues.
O Arquivo Nacional também não possui laboratório próprio para restauração de filmes, porém, quando necessário, os filmes são enviados para laboratórios comerciais. “Temos feito de maneira sistemática a duplicação com geração de internegativos e interpositivos dos filmes que não possuem matrizes, mas ainda, por conta do alto custo, aquém de nossa expectativa. O nosso foco, neste momento, são os cinejornais da Agência Nacional e outros materiais produzidos pelo Estado, que estão em situação mais crítica de conservação”, explica o coordenador. “Quando um acervo audiovisual chega à instituição, tanto através de recolhimento (de instituições públicas) ou doação (de origem privada), todo o material é diagnosticado, higienizado, acondicionado em embalagens específicas e dispostas em depósitos climatizados, com rígido controle de umidade e temperatura, proporcionando assim sua preservação. Além disso, é realizado o tratamento arquivístico da informação contida nesses documentos, proporcionando ao cidadão o conhecimento e o acesso ao material audiovisual custodiado pelo Arquivo Nacional”, complementa.
A difusão também é compreendida pela instituição como uma das maneiras de preservar o seu arquivo. “O Festival de Cinema de Arquivo do Arquivo Nacional (REcine), que ocorre desde 2002, é uma das maneiras mais eficazes que temos de difundir o acervo, além de proporcionar discussões sobre o tema”, pontua Domingues. Segundo ele, o festival tem o objetivo de discutir a preservação audiovisual, além de exibir materiais desconhecidos, editar uma revista com artigos escritos por pessoas que pesquisam a área, realizar exposições e oficinas de vídeo com especialistas no uso de imagens de arquivo e oficinas técnicas para treinamento de profissionais que atuarão com preservação e o tratamento da informação audiovisual.
Domingues ainda conta que o REcine é pioneiro no país em tratar de forma exclusiva o tema cinema de arquivo. “A resposta do público para nossas atividades é bastante satisfatória, já que é possível atingir um público específico, que está nas universidades, na produção audiovisual, na pesquisa, além de um público que vem ao festival para ver filmes muitas vezes com pouco espaço para exibição, além de joias que na maioria das vezes são invisíveis, tais como filmes familiares que exibimos no ano de 2013”, diz.
As nossas matrizes
Os estados de conservação dos filmes que chegam nestas instituições são os mais variados. Essas matrizes podem ser originais, intermediárias ou cópias finais, que neste caso, significa que não há o original e uma cópia foi elevada a matriz. Para Heffner, de uma maneira geral, as matrizes das produções audiovisuais brasileiras não se encontram em boas condições de conservação: “De um lado, muitos desses filmes foram para os arquivos de forma tardia, ou seja, eles não foram recolhidos logo após o lançamento do filme, isso significa que já chegam de alguma maneira atacados pela temperatura, umidade do lugar onde estavam, com presença de fungos, já chegam com algumas marcas do tempo, da falta de cuidado e da própria deterioração fisioquímica, que esses materiais normalmente sofrem”.
Patricia conta que há muitos casos de filmes que não possuem mais o original – ou por acidente ou por algum tipo de ação –, como é o caso dos filmes da Cinédia. “Tem filmes que foram produzidos em nitrato e na época se acreditava que ele era muito perigoso, porque pegava fogo. Então, os filmes foram duplicados para acetato e a ordem era queimar os nitratos pra não ter risco no arquivo. Porém, a umidade relativa do ar alta aliada a altas temperaturas faz com que o acetato entre numa “síndrome do vinagre”, e ele se degrada. É muito mais nocivo e difícil de preservar do que o nitrato”, explica. “Depois veio uma terceira família de filmes que é o poliéster”, complementa Patricia.
Além disso, ela lembra que durante muitos anos não se fazia intermediários no Brasil, isto é, fazer o interpositivo e o internegativo para preservar o filme. Patricia diz: “Em países mais desenvolvidos é impossível pensar em fazer a cópia de um filme pra projeção sem fazer o intermediário porque qualquer problema na copiagem pode estragar o filme. Talvez porque não se confiava muito na bilheteria ou porque era muito caro fazer o intermediário, se fazia a cópia do negativo até que, se o filme fizesse sucesso, corria e fazia o intermediário. Então, os negativos aqui foram muito usados até serem riscados, deteriorados, por isso também é tão importante a restauração”.
A preservação é um trabalho a longo prazo. “Você só vai perceber que deteriorou, que chegou ao fim, que não tem mais registro de determinada obra, depois de anos que a obra foi maltratada. Por isso que é difícil, não é uma ação imediata”, pontua Patricia. Nesse sentido, a melhor forma de entender a importância do trabalho de preservação é ver os seus resultados.
Se não fosse a restauração não teríamos, por exemplo, O cabra marcado pra morrer (1984), de Eduardo Coutinho ou Limite (1931), de Mário Peixoto, ambos restaurados pela Cinemateca Brasileira. “O cabra marcado pra morrer foi um dos restauros mais interessantes e importantes. Um filme que foi feito em dois momentos da história, então tinha 16mm, 35mm, preto e branco, colorido e foi bem difícil. Tivemos a honra de trabalhar com o Coutinho. Juntamos a tecnologia fílmica, digital e eletrônica, e fizemos o back to film (voltar novamente para a película), então foi completo”, relembra Patricia. “Limite também foi uma filme importante. Nós fizemos uma pesquisa muito grande, tentamos usar todos os pedacinhos que achamos ali, escaneamos de diversas formas. Tivemos também a honra de trabalhar com o Saulo Pereira de Melo, que conheceu o Mario Peixoto e sabia das críticas dele para todos os pedaços do filme, como os mais contrastados, menos, etc. Também foi gerado um novo negativo”, conta.
A Cinemateca do MAM-RJ, que começou a restaurar com Os óculos do vovô (1913), em 1973, foi responsável pelo restauro de filmes como Cidade do Rio de Janeiro (1924), de Alberto Botelho, Os fragmentos da terra encantada (1922), de Silvino Santos, Tristezas não pagam dívidas (1944), de José Carlos Burle e Os fuzis (1973), de Rui Guerra, de 1973. “Não dá pra eu te dizer um número, são centenas de obras ao longo desses 40 anos, é muito pouco diante do que se tem com necessidade para a filmografia brasileira, que é uma filmografia muito grande e que se deteriora muito rápido, porque as condições do Brasil são condições de um país tropical, que são adversas nesse sentido”, postula Heffner.
Patricia ainda chama a atenção para outra questão importante da preservação: o descarte técnico, realizado após laudo técnico e com autorização: “É importante porque os filmes estão ocupando um lugar muito caro, que é uma estante numa área climatizada. Então se o filme está ali e ele pode ser processado e posteriormente descartado é positivo porque libera espaço. É lógico que ninguém quer descartar filmes, mas uma vez em condições de não aproveitamento pra outra coisa, ele precisa ser descartado”.
A preservação e o digital
Além da película, agora é necessário que os arquivos pensem na conservação dos filmes em formato digital. Heffner diz que a Cinemateca do MAM-RJ ainda não entrou nesse universo, por mais que já receba algumas obras no formato digital. “A gente ainda não se organizou para avaliar por quais padrões de fato pode se desenvolver uma preservação adequada desse suporte até porque esses padrões ainda são alvo de uma discussão mundial. O caminho ninguém ainda descobriu, não se formalizou, e existe ainda um componente muito difícil de ser contornado que é a própria natureza dessa tecnologia digital que muda o tempo todo. Cuidar da película era relativamente simples nesse sentido porque era uma tecnologia que mudava na sua base muito pouco. O que no digital não é a mesma coisa”, explica o pesquisador.
Para Heffner, nesse momento, a melhor forma para guardar os arquivos digitais é em um arquivo de dados. “Se você manda um DCP pra um arquivo e eventualmente você vai ter mexer nesse arquivo afim de restauração, você vai ter uma degradação natural, que só não se dá se você tem a matriz em puro número, crua. É um momento importante de conscientização da classe cinematográfica, de todos os envolvidos na criação audiovisual, do que significa de fato você se preparar não para durar um ou dois anos, mas dez, vinte, cem, quinhentos anos”.
Além dos filmes que já chegam em formato digital, Domingues fala da importância de pensar a preservação digitalmente. “Além do passivo gigantesco que necessita de cuidados imediatos, o Brasil ainda não dispõe de repositórios criados especialmente para a preservação digital de produtos audiovisuais. Maior que o desafio de manter seu acervo em rolos e mais rolos de filmes, será manter o acervo digital. A preservação digital implica adotar procedimentos durante e após a produção do audiovisual. Para os milhões de rolos já existentes, resta saber se teremos matéria prima para sua duplicação ou restauração e se o caminho para preservação será a tecnologia digital”, diz o coordenador.
Sobre esse tema, a Cinemateca Brasileira realizou a tradução do livro Dilema Digital, uma publicação realizada pela Academia de Hollywood, uma ação para alertar sobre a importância e discutir a preservação digital.
A perspectiva da preservação do audiovisual no Brasil
Com a claridade da importância e da necessidade do trabalho desenvolvido pelos arquivos, no intuito de preservar as memórias da nossa história e da nossa cinematografia, é necessário que os arquivos recebam ainda mais atenção. Para Hernani Heffner, dentro de uma perspectiva história é possível afirmar que a preservação audiovisual no Brasil avançou, principalmente a partir do final dos anos 1990. Entretanto, o pesquisador esclarece que ainda estamos longe dos parâmetros ideais, principalmente porque necessitam de um investimento muito alto. “Por exemplo, materiais em película precisam ser guardados em torno de 0°, ou até abaixo de 0° em caso de material colorido. Nenhum arquivo brasileiro tem reservas técnicas para trabalhar com essa temperatura, que é vai dar efetivamente até 1000 anos de conservação, sem você precisar restaurar o tempo todo. Nesse sentido, a gente está meio caminho para uma condição mais adequada, que alguns países do mundo já possuem. Mas a gente melhorou bastante e o que tem pela frente é um trabalho para que a gente possa passar para outro estágio bem melhor que o atual, que garanta que os filmes não vão durar apenas 100 ou 150 anos, mas 500, 800, 1000 anos”, elucida Heffner.
Além disso, Heffner ainda pontua sobre a importância da formalização da profissão dos técnicos responsáveis pela manutenção dos arquivos. Segundo o pesquisador, por mais que os acervos audiovisuais já tenham certa tradição no país, o Brasil nunca formalizou a profissão de preservador audiovisual. Os concursos públicos abertos para qualquer arquivo público relacionado à imagem e ao som no país não são realizados com o intuito de contratar mão de obra qualificada para o trabalho. Heffner explica que como não existe uma profissão definida para a área, os concursos aceitam qualquer tipo de profissional, que não conhecem o trabalho e precisarão ser treinado: “Esse treinamento é demorado, caro e, eventualmente, você está atrasando a própria conservação desse acervo”, diz. “A conservação do filme se dá por uma estabilidade da temperatura e da umidade. A gente pode estender essa ideia da estabilidade física e técnica para uma estabilidade institucional, que tem tanta importância e influência quanto à técnica na conversação literal do acervo. Existe uma dependência direta”. Para ele, os investimentos na área da preservação precisam ser proporcionais aos demais investimentos relacionados ao audiovisual. “Já tivemos muitas perdas no passado e [se nada mudar] vamos continuar tendo no futuro. O momento de intervir e mudar a mentalidade é agora”, diz.
Para Domingues, apesar de todas as dificuldades financeiras para o custeio da preservação de seu patrimônio, o país tem fortalecido a atividade. “A preservação audiovisual nos últimos 20 anos se desenvolveu rapidamente, com a formação de novos profissionais, com programas que permitem a restauração de obras audiovisuais, embora aquém da real necessidade. No entanto, podemos destacar alguns projetos como o da Cinédia, Nelson Pereira dos Santos, Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade. Já possuímos um parque tecnológico público e privado que atende de maneira satisfatória”, diz. Porém, também acredita que são necessárias algumas mudanças. “Necessitamos de isenções fiscais para a importação de equipamentos específicos de preservação, bem como insumos para instituições detentoras de acervos audiovisuais. Também precisamos da criação de novos espaços adequados para a guarda de acervos convencionais e, de forma imediata, dos acervos já produzidos com tecnologia digital, avalia o coordenador do Arquivo Nacional.