Por Lauro Escorel, ABC
O Projeto de restauro digital da obra de Leon Hirszman me proporcionou a oportunidade de participar da restauração do filme “S.Bernardo “, o primeiro longa metragem que fotografei .
Como produtor e supervisor técnico do projeto, pude constatar na prática como não temos sido capazes de cuidar adequadamente das matrizes do nosso acervo cinematográfico . Em muitos filmes vêem-se as marcas do manuseio inadequado pelos laboratórios, agravadas muitas vezes pela precariedade das condições de preservação .’
A constatação desta realidade em suas múltiplas manifestações , obrigou-nos a compreender as necessidades e possibilidades de restauro para cada uma das obras do projeto . o caso de “S.Bernardo “, tivemos a sorte de poder contar com os negativos originais de imagem e som como matrizes para o restauro. Por outro lado, a analise do estado do negativo de imagem revelou marcas da maior gravidade.
Constatamos que o laboratório de imagem se valeu na ocasião, de uma técnica de correção chamada “despolimento da base do negativo”, visando eliminar riscos provocados pela manipulação incorreta do material .Este recurso deixou manchas, já visíveis nas copias de preservação, e que ficaram mais evidentes quando iniciamos os trabalhos de digitalização .
Esta circunstancia obrigou-nos a realizar uma série de testes no Brasil e no exterior em busca do melhor procedimento para a digitalização dos negativos . A partir das provas, optamos pela digitalização em 2K no scanner ” Spirit ” da Teleimage , que por trabalhar com uma fonte de luz bem mais difusa do que a dos outros equipamentos ( C-Reality e Arriscan ), permitiu que obtivéssemos uma matriz digital praticamente sem as marcas deixadas pelo despolimento .
O processo de restauro teve inicio há dois anos com a projeção da cópia de preservação existente na Cinemateca Brasileira . Acompanhado por Patrícia di Filipi , especialista em restauro e diretora daquela instituição , iniciamos a analise e planejamento do processo.
Esta cópia ,além de bem riscada , se apresentava descorada, com forte dominante magenta . Além destas características havia o incomodo provocado pela existência de uma trama de manchas em movimento (provocada pelo despolimento), impressa sobre a imagem, que prejudicava enormemente a visão do filme.
Negativo despolido , copias descoradas, riscos e sujeiras faziam com que o filme fosse uma pálida lembrança daquele que eu me lembrava .
O filme é até hoje objeto de estudo em vários cursos de cinema, e esta era mais uma razão para tentar devolver-lhe as qualidades originais .
Espero que daqui para frente, ” S.Bernardo ” seja visto e apreciado em toda sua beleza, que foi o que Leon e sua equipe buscaram desde o início . Para que isto fosse possível, foi fundamental a parceria com Patrícia de Filipi e sua equipe, e também com toda a equipe da Teleimage .A dedicação do Jeff, da Renata , do Theo , Sica , Karina e Mariana , Stefano e Rodrigo foi muito importante para o resultado obtido .
O som foi restaurado a partir do negativo de som . Esta matriz oferece poucas possibilidades para alterações e exigiu minucioso trabalho de José Luiz Sasso para sua melhoria . Este trabalho foi realizado pelo Estúdio JLS com supervisão de Eduardo Escorel montador do filme .
Sem o empenho de minhas companheiras de equipe Lu , Malu e Sônia também não teríamos conseguido realizar o trabalho da forma desejada . ?
Os meses passados junto a estas imagens ao longo do processo de restauro, me permitiram recuperar algumas lembranças deste trabalho realizado há 37 anos . São estas memórias que relato a seguir, alternando lembranças do trabalho , episódios pitorescos e informações técnicas deste filme, que mal sabia eu então, iria se tornar um clássico do cinema brasileiro .
O Cameblimp era o equipamento que silenciava a câmera e que pesava aproximadamente 35 kg . Pesada como era determinou em grande parte o estilo do filme .
O NEGATIVO
Foi Filmado com negativo Kodak 5254 e 5251 ( de 100 e 50 ASA respectivamente ).O Negativo provinha de sobras de outras produções que Marcos Farias ia conseguindo durante a filmagem .Varias emulsões foram misturadas e era freqüente ficarmos com a filmagem ameaçada de interrupção por falta de negativo .
A LOCAÇÃO
O filme foi todo filmado em Viçosa , Alagoas no inicio de 1971.
LABORATORIO / COPIÕES
Revelado e Copiado na Líder Cine Laboratórios em São Paulo , recebíamos com 15 dias de atraso o copião ( cópia de trabalho), do material filmado. Era uma copia feita em preto e branco e junto viam 2 fotogramas coloridos como referencia de cada plano chamados pilotos . Era o que tínhamos para ter alguma idéia do resultado do trabalho. Projetávamos o copião no cinema de Viçosa depois da ultima sessão da noite .A qualidade desta projeção era lamentável.
Só a equipe técnica podia ver . Nesta época predominava a idéia que não era bom para os atores se verem no filme durante a filmagem. Temia-se que avaliassem incorretamente o resultado das cenas e com isto prejudicassem seu próprio rendimento .
Só fomos ver o filme inteiro, com as cores definitivas, mais de um ano depois quando fizemos a cópia final .
Para conseguir uma copia boa do filme passei pela minha primeira experiência com a marcação de luz . Lembro que levei uma coleção de slides produzidos por mim durante a filmagem para servirem de referência. Não entendia inteiramente a diferença entre as características de cor e contraste dos diapositivos ,do negativo e do positivo Orwo que era utilizado para fazer as copias .Felizmente consegui a cumplicidade da marcadora de luz Nadia Valesciko para chegar o mais perto possível do meu objetivo .
DO RESTAURO
Matriz utilizada : negativo original de imagem .
Digitalização em 2K no Tele Cine 2k Spirit .
Processo de restauro manual e automático utilizando os softwares ” Diamant ” , Combustion entre outros .
Correção de cores realizada no corretor ” Lustre “.
Neste trabalho buscamos preservar ao máximo aparência das imagens originais evitando a utilização de ferramentas que corrigissem defeitos ali existentes .As características fotográficas resultantes da minha pouco experiência e das limitações técnicas daquela época foram na medida do possível preservadas .
Transfer da matriz 2K para película através do Arrilaser .
DA FILMAGEM
INÍCIO: Reencontro com Leon
…Eu já havia fotografado um filme experimental do Leon chamado ” Sexta-feira da paixão ,sábado de aleluia ” na semana santa de 1968 . Passara o ano de 1970 entre Califórnia e Nova York estudando fotografia e em Wetslar na Alemanha trabalhando como assistente de fotografia de Dib Lutf no longa alemão DAS UNHEIL (Os Sinos da Silesia) de Peter Fleishman .
Em janeiro de 1971 , de volta ao Brasil encontrei com Leon na praia . Neste encontro falou-me de “S.Bernardo ” e me convidou para fazer a câmera do filme. Leon tinha previsto inicialmente fazer o filme com o Luiz Carlos Barreto , fotógrafo de Vidas Secas e Terra em Transe . Primeiramente fui incumbido pelos dois de organizar a equipe e o equipamento necessários à produção .
Quando este trabalho já estava bem adiantado, próximo ao inicio da filmagem, o Barreto me comunicou que não ia mais fazer o filme .Disse : “Eu não vou fazer o filme.Estou com outros projetos aqui na L.C. Barreto. E acho que você pode perfeitamente fazer o filme para o Leon.”
Leon já estava em Viçosa quando recebeu a notícia, e no primeiro instante, pelo que sei, ficou em duvida .Eu nunca tinha fotografado um longa-metragem…
Ele consultou algumas pessoas. Procurou outros fotógrafos que não estavam disponíveis e ouviu de alguns que eu podia assumir o trabalho . Coisa dos anos 70 . Era um grupo de pessoas amigas querendo fazer cinema. E as pessoas apostavam uma nas outras.As oportunidades surgiam, as vezes até antes da hora, mas surgiam.
E o Leon topou. Disse: “Está bem. Vamos lá•.” ‘
VIÇOSA
Era meu primeiro filme como diretor de fotografia, e eu não tinha de fato experiência . Não tinha muita noção de como se fazia, e de tudo que era necessário para preparar uma filmagem de longa-metragem . Por isso me lembro bem do Leon , numa primeira visita a locação , me explicando onde iríamos fazer o quê, e como isto iria ficar para fazermos tal e tal cena.
Não esqueço dele explicando a transformação pretendida numa enorme área de terra diante da casa da fazenda . Falava de um gramado e eu via um campo de terra batida, aquele sol,aquela aridez. Ele disse: “Eu vou trazer uma bomba d’água para molhar essa terra durante quarenta dias.Quando estivermos no final da filmagem , isso vai ser• um gramado verde.” Lembro dele me contando isso e eu pensando: “Será•?”
E aconteceu!
A própria cenografia do Ripper que é minimalista, foi sendo indicada pelo Leon: “Aqui nós pintamos a grade da varanda.Aqui só consertamos isso.” Não tínhamos dinheiro pra refazer a fazenda e então ele indicava as intervenções em cada departamento.
Então, já nessa primeira visita, o domínio do Leon sobre a produção começou a ficar claro para mim.
O SET
As cenas eram muito ensaiadas .
Isto acontecia em função do método empregado por Leon para dirigir os atores, e também pela falta de filme virgem para fazer varias tomadas .
O aproveitamento do filme virgem era de 1 para 1.. .
O filme todo foi feito praticamente em planos seqüência, e passávamos boa parte do dia ensaiando as cenas para que elas tivessem o tom exato que o Leon buscava . Só quando isto era atingido é que se filmava . Então essa direção metódica se refletia na interpretação dos atores. O Walter Goulart, técnico de som, tinha tempo para encontrar a melhor colocação possível para seus microfones e eu para a minha luz.
Ele tinha o filme todo na cabeça.Eu diria que ele sabia o livro São Bernardo quase de cor. Andava o tempo todo com o livro debaixo do braço. Constantemente se referia ao livro, procurando indicações para transmitir a cada um de nós . Todos nós tínhamos um exemplar e andávamos pelo set com ele. Surgia alguma dúvida, ele dizia:”Vamos ver no livro como é “.
Aí olhava no livro . “Madalena responde dessa maneira.” Isso gerava uma conversa entre Isabel, Othon e Leon e a interpretação era ajustada.
Lembro também da cena do pedido de casamento e dos longos laboratórios preparatórios que a antecederam .Não esqueço do Leon pedindo ao Othon e a Izabel para fazerem a cena com os papeis trocados . Queria que entendessem um ao outro dentro da cena. Nunca mais vi isso acontecer …
A CENA DO JANTAR
Tem uma famosa seqüência que demonstra a precariedade da produção, e a forma como trabalhávamos: É a cena do jantar.Todo o elenco está• presente. … uma grande discussão sobre a realidade política da época. A cena devia ser feita com um único chassis. O rolo de 120 metros de filme tem quatro minutos úteis.A cena tinha que caber nesses quatro minutos. No primeiro ensaio acho que deu cinco minutos e meio.Então ensaiamos umas seis horas até ter certeza que o tempo da cena cabia no rolo de filme . Ito era fundamental pois aquele era o único rolo de filme que tínhamos naquela noite e também por que era a ultima noite do Mario Lago, que iria embora de madrugada.Imaginem a pressão sobre o elenco.Aí rodamos a cena e eles ainda economizaram dez segundos.É o plano que está• no filme.
A FOTOGRAFIA COM LUZ NATURAL
Havia uma identificação minha com o Leon quanto aos filmes de que gostávamos,que achávamos bonitos, bem fotografados. Isto passava pelo nosso apreço pela utilização da luz natural .
A precariedade da produção fazia com eu tivesse apenas quatro refletores e algumas lâmpadas .
Vale lembrar ainda que o filme era muito pouco sensível nessa época e por tudo isso passamos a estudar todos os ambientes buscando a melhor alternativa de horário para fotografá-los com a luz natural.
Lembro muito bem da cena do Paulo Honório andando na igreja de dia.Só era possível filmar entre 11 e meio-dia.Você abria as duas portas laterais. A reflexão de luz que penetrava na igreja ,era o que permitia imprimir.
Então o filme foi feito assim, muito em cima das limitações técnicas existentes. O desafio era como você trabalhava a limitação.
Ainda falando da utilização da luz natural. Lembro da seqüencia do pedido de casamento . Quando eu resolvi acender uns refletores em busca de uma exposição mínima . Ele olhou e comentou de forma muito delicada :”Lauro, isso está• diferente.Eu estou sentindo a luz artificial aqui.”
Eu falei: “Bom, Leon, então o jeito é destelhar a casa. Luz natural ali significava destelhar a casa.” Esse era um recurso que usávamos muito na época.Na falta de luz, destelhava-se,esticava-se um plástico de cortina de chuveiro (lisolene) sobre a abertura para difundir a luz e se filmava.
OUTRAS CENAS COM LEON
Posso lembrar ainda da cena da igreja , quando Madalena se despede de Paulo Honório . Foi difícil descobrir como realizar fotograficamente o efeito de luz de vela .
Fiquei as voltas com meus refletores tentando construir o efeito desejado. Como fazer só com dois? Fui experimentando, e ele ali ,com a maior paciência, esperou até que eu chegasse a um resultado que me satisfizesse .Aí ele olhou e disse : “Vamos filmar.”
Ainda no tema ‘velas’, vale recordar a ultima cena do filme .
Teríamos o fade-out da vela simultâneo ao da luz em cena . O tempo do apagar da vela tinha que coincidir com o tempo da fala em off que seria gravada posteriormente .O fade devia ser perfeitamente sincronizado com o apagar da vela .
O dimmer na época era uma enorme barrica de água com sal, de onde o cabo de energia era retirado lentamente para diminuir a passagem da corrente elétrica e assim provocar o escurecimento .
Foram horas de ensaios, e quando finalmente filmamos e conseguimos o efeito. a alegria de Leon era contagiante .
A lembrança que ficou é a de um trabalho muito prazeroso . Construímos o filme juntos, com a orientação firme e segura do Leon.