Por Coti Donoso
A primeira coisa que eu gostaria de expressar é a minha enorme gratidão por este convite, porque ele não só me permitiu me conectar com pessoas que fazem o mesmo que eu em outro país, mas também porque me levou a reler alguns artigos e ensaios escritos em relação ao cinema que fazemos, à história do cinema e do nosso continente, e à evolução sociopolítica que nos marcou durante séculos.
Ao mergulhar nessas histórias, não posso deixar de pensar naquelas pessoas que estão aqui e sentir que, de alguma forma, fazer cinema também é uma forma de resistência pelo simples fato de fazê-lo. Editei filmes que não são do meu país, mas também da Bolívia, Argentina e Equador. E assessorei projetos peruanos. Isso me levou a ter um panorama do cinema que fazemos. Pensei sobre o cinema que estamos fazendo. E sinto um vazio, não sei o porquê. O que escrevi não é pessimista, mas perturbador. E são escritos que me levam a pensar que ainda há muito o que refletir.
A primeira coisa que pensei foi: o que é o latino-americano?
Apesar da grande distância e extensão geográfica da América Latina, as realidades de nossos países não são muito diferentes. A América Latina é um amálgama de identidades, um caldeirão de culturas que se enraizaram nesse território, enriquecendo ou sendo enriquecidas pelas culturas originais. Somos um continente heterogêneo, mestiço, plural e diverso. Sofremos o desenraizamento e o exílio, a conquista, a colonização, suportamos e sobrevivemos à Inquisição colonial e aos regimes ditatoriais de décadas de guerra fria. Conquistamos nossa dignidade como povos por meio de lutas sangrentas e severas.
Muitos e muitas de nós vivemos em ditaduras militares e até hoje as sociedades ainda são retratadas com cicatrizes, até mesmo feridas, buscando cura, buscando respostas e que isso não aconteça novamente. Da mesma forma, também estamos sob constante ataque na tentativa e, infelizmente, sucesso em roubar o pouco que foi conquistado, com nossas sociedades, nossos direitos fundamentais, a sobrevivência de nossos povos nativos, nossa natureza, nossas paisagens sob constante ameaça.
Talvez seja isso que nos une. Porque quando falamos de América Latina, é isso que surge quase espontaneamente.
Temos cinema há um século, tivemos momentos de grande vigor, produção reconhecida pelo mundo, mas o mais importante: por nós mesmos e mesmas. Conseguimos nos ver em um novo cinema. Tivemos o Novo Cinema Latino-americano, um cinema novo, um novo cinema chileno, o “cine liberation group” que surgiu na Argentina, o terceiro cinema, o cinema de Sanjinés na Bolívia, entre outros.
Entre as melhores obras dos anos do novo cinema latino-americano estão os filmes de Guzmán, Solanas ou Santiago Álvarez, Rocha, sem necessidade de adjetivos. Esse cinema está ligado ao testemunho, à documentação da miséria e do subdesenvolvimento, que os manifestos iniciais lançaram, e à agitação, análise e desmascaramento dos culpados por essa realidade. Mas também é verdade que esses filmes exibiram uma boa amostra da vanguarda estética e política que explorou novas narrativas, novas estruturas, novas visualidades e edição inteligente, em alguns casos com releituras de vanguardas como a soviética ou a nouvelle vague, e buscando seu caminho em relação dialética com realidades sociais e práticas cinematográficas próprias. Esses eram tempos de vanguarda.
Agora me concentro no que acredito ser nosso presente, que talvez já seja o futuro. E tomando nosso passado como parte do presente. Foi assim que Juan Carlos Avellar, crítico e historiador brasileiro, se referiu aos documentários do início do século XXI no Brasil com as palavras “o amanhã começou ontem”, mostrando que as conquistas na linguagem do cinema contemporâneo só poderiam ser compreendidas à luz de seus diálogos com o passado. É isso mesmo, fui convidada para falar sobre memória.
Se falarmos de memória e futuro, é aqui que estamos. E daqui eu observo.
O que observo é o seguinte:
Estou muito interessada na reescrita da história que se pensava já ter sido escrita, o colonialismo, pois é uma questão que não pode ser resolvida, ainda mais em um presente neocolonial em que ainda há tentativas de impor certas práticas absurdamente pela força. Como diz meu compatriota Felipe Gálvez, diretor do filme “Los Colonos”, “tenho tido a sensação de questionar a história oficial e o papel do cinema na narração da história oficial. “Los Colonos” é crítico, mas também se dá ao trabalho de criticar a si mesmo. Ele não se coloca em um lugar onde a responsabilidade é dos outros. Mas no papel que nós, cineastas, ocupamos até hoje”.
O mesmo vale para a história política “oficial” de nossos conflitos internos. Aqui temos o filme peruano “La piel más temida”, também uma versão da história que queria ser narrada de uma única maneira, de acordo com o oficialismo e as velhas estruturas dominantes e repressivas, mas hoje seu diretor, Joel Calero, nos leva a outro ponto de vista, que vale lembrar que tentou ser censurado em pleno 2024.
Também vejo com satisfação que, como tem sido a tradição, o cinema latino-americano, diferentemente de outras cinematografias, possui uma poderosa força documental, mesmo que até recentemente não tenha conseguido se tornar visível e se reconhecer como tal. A historiografia dominante relegou o documentário à televisão e a certos temas, mas hoje estão surgindo novas vozes com linguagens inovadoras que se aprofundam em conflitos que são muito nossos e que nos permitem lembrar o que não podemos deixar ir com o vento do esquecimento. “La memoria Infinita”, um documentário chileno de Maite Alberdi, é um exemplo disso, falando-nos sobre o silêncio e o esquecimento em que estivemos por tantos anos, sobre como fomos silenciados e silenciadas, tudo com base em uma história particular e comovente.
E vejo o cinema feito durante os movimentos explosivos no final da última década e o efeito que o confinamento e o uso de tecnologias pandêmicas poderiam ter tido. A política mudou. A arte mudou. O cinema mudou. Os espaços se abriram. O surgimento da força neofascista com a qual estamos convivendo gerou respostas. Mas também surgem essas novas formas de narrativas. E assim como estamos revisitando o colonialismo, também estamos revisitando formas de narração, estou me referindo ao ressurgimento do autobiográfico, do familiar e do cotidiano. No Chile, desde a explosão, surgem registros que colocam o cotidiano da casa, do trajeto para o trabalho, da rua em sua vida diária, em um lugar objetual, o objeto do desejo da câmera e das narrativas. E os interiores assumem uma nova forma, resoluções, pensamentos, ficções e decorações. Os exteriores são objetos de desejo, extensões de subjetividades.
As buscas hoje são muito diversas, há filmes muito conectados ao seu entorno, em que são colocadas à prova algumas ideias que rondam nossos territórios, fatos concretos, acontecimentos ou reflexões formais, filmes que pensam os problemas do ar, da água, dos nossos povos originários e suas vidas solapadas pelo extrativismo, o uso da força, a ocupação de espaços sem donos, a situação precária da arte. É a própria arte, conectada às transformações sociais, buscando novas formas de refletir e encontrar conceitos contemporâneos como o que nos levou ao tecnoceno ou as particularidades da inteligência artificial, as narrativas expandidas, os limites do real e do factual, entre outros.
E continuo observando… como montadora-cineasta…
Novas formas, novas narrativas. Acho que hoje em dia há algo que sinto que é muito diferente, não consigo decifrar o que é diferente, mas o que sei é que há mais risco, ousadia para explorar mais do que nunca. Sempre fomos embalados e embaladas em invólucros tão rígidos, às vezes em formas tão estranhas, presos e presas a certos cânones, e a expansão hoje não tem a ver apenas com tecnologia, mas também com possibilidades puramente criativas. Ousar. Tivemos esse momento do novo cinema latino-americano em que nossos diretores(as), realizadores(as), fotógrafos(as), editores(as), produtores(as) ousaram muito e fizeram muito, cruzando fronteiras. A capacidade de alcançar os limites linguísticos, naquela época influenciados(as) pelas correntes europeias do cinema e da política.
Também é muito interessante e envolvente pensar que existe uma cronologia nas formas de produção de filmes. Temos a tendência de fazer isso. Falamos sobre filme analógico em celuloide, depois filme analógico em fita, depois digital, depois o que está surgindo agora, que tipo de cinema está surgindo agora? Mas, como eu estava dizendo há pouco, não acho que exista uma cronologia, não devemos cair nessa, cair nessa é pensar em algo excessivamente linear e catastrófico, que agora temos algo diferente e “mais avançado” porque cronologicamente estamos mais à frente. Acredito que essa forma de pensar deve ser abolida, pois tudo pode coexistir.
Percebo que há muitas referências em nosso cinema atual ao pré-cinemático, ao cinema das origens, antes do som. Há alusões à imagem primordial, ao som anterior, à literatura, ao resgate dos discos, mas ao mesmo tempo há filmes que trabalham com a tecnologia do momento, até mesmo com IA, que às vezes estão à frente de seu próprio tempo. Então é uma visão mais ampla se você substituir a linha do tempo por um conjunto harmonioso – mesmo que pareça paradoxal – de filmes.
É um grande risco, desafiador, há muitos e muitas jovens que estão fazendo novas propostas – felizmente – e que podem levar vantagem em vários aspectos, isso é um fato, mas o desafio está na coexistência. Voltar ao analógico e incorporar, essa é a chave. Voltar às versões anteriores da história e reescrevê-las com nossa linguagem cinematográfica, essa é a chave. Abraçar as novas linguagens provenientes das tecnologias, mas incorporá-las. Ampliar nosso olhar.
Vivemos em um momento que para alguns pode ser caótico e para outros um paraíso de possibilidades. É claro que os paradigmas foram jogados por terra, a locomotiva avança em ritmo acelerado, observando o futuro, mas também parando nas ruínas de um século, na implosão de uma ordem que parecia inquebrável, mas que no presente está desmoronando em silêncio, e onde algumas vidas resistem em criatividade, mas às vezes também em solidão.
Não há respostas, apenas imagens e sons que pairam, possibilidades, necessidades.
Eu observo… continuo observando… a vida na academia.
Acho que é necessário estar na academia. Conhecer a situação dos estudos de cinema nas universidades. Por um lado, há uma orientação muito focada nas profissões técnicas e, ao mesmo tempo, por outro lado, há uma forte orientação para a sociologia e a comunicação. Em outras palavras, o cinema é visto exclusivamente como um sintoma da sociedade. Como disse o próprio Raúl Ruiz, “o cinema como forma de arte perdeu presença nos estudos cinematográficos. O aspecto contemplativo do cinema é muito importante e está começando a desaparecer”. Quanto podemos fazer a partir daí! Antes de mais nada, vamos salvar o cinema como forma de arte. Infelizmente, na frente de nossos alunos e alunas, os preconceitos teóricos de Hollywood e, por extensão, da maioria das pessoas do setor, se fundem em uma falsa ideia da percepção do cinema, tomando-o como entretenimento ou como um panfleto desqualificado.
E ainda estou observando…. E isso é um desafio para mim.
Porque eu observo de uma trincheira geracional. Às vezes, de um canto, onde me sinto um pouco no canto de meus pensamentos, talvez encurralado. A solidão é algo que temos de superar, vivemos tão sozinhos e sozinhas, mas, ao fazer filmes, sinto que nos reunimos com algo maravilhoso que não tem palavras, somos muitos e muitas, sim. Porque lá fora a vida se agita, arde, as pessoas não param de se sentir oprimidas, mas a bravura, a coragem, que raramente se vê mais, está restrita a certos círculos de marginalidade ou simplesmente de desejo territorial. A sociedade dorme. Não sabemos por quanto tempo. O que estou fazendo lá?
Como entro no mistério dessa quietude? O que é esse algo? Em que momento estamos? Estou me movendo ou estou parada?
Estou em um vagão de metrô e observo… como os filmes são assistidos dentro de um dispositivo móvel. Mas tento não entrar no terror da situação, porque sim, podemos coexistir.
A pergunta se torna inevitável: quais filmes são adequados para assistir nas novas telas? São outros filmes? A sala escura desaparecerá? Tantas perguntas em poucos segundos.
Será necessário um novo corpo de pensamento para enfrentar os riscos.
Muitos filmes não serão mais exibidos nos cinemas e, diante disso, essas novas telas pequenas parecem ser uma solução. Mas é uma solução falsa. E aqui temos uma tecnologia que abre novas possibilidades, então teremos que pensar em novos filmes para essas novas expectativas. A relação experiência-forma-expectativa talvez tenha que ser revisada, no calor de novas reflexões. Talvez seja para isso que estamos aqui. É algo em que tenho pensado muito.
Como sabemos, os dispositivos são hoje uma parte essencial da construção de sentido, não vale a pena negá-lo. E se o desenvolvimento tecnológico não for acompanhado de reflexões sérias (entre as quais as formas de ligação dos formatos aos conteúdos devem ocupar um lugar central), correremos um risco ainda mais relevante: o de ficarmos apenas na superfície, na concha, no confete, nos espelhos luminosos que adornam o vazio. O desenvolvimento tecnológico está entre nós. Vivemos nele.
Assim como os novos desafios poéticos. Esse é o valor, esse é o risco, a pertinência.
E bem, cheguei até aqui para dizer todas essas coisas, obrigada por isso.
Que se adormecermos neste momento, será o fim do nosso cinema. É agora. E isso não é uma forma de apelar a uma grande revolução, mas simplesmente de fazer. Não deixar de propor, abordar temas e feridas escondidas. Regressar às nossas feridas. Porque não há outra forma de crescer senão abordando-as e aprofundando-as. Tal como os nossos próprios processos de crescimento pessoal. No cinema é a mesma coisa, não há diferença entre fazer filmes e viver. A analogia é óbvia. Se não o fizermos dessa forma, não haverá maneira de sobreviver.
Temos de nos incorporar, incorporarmo-nos na história passada e no tecnoceno, nesta era tecnológica extrema que está a determinar as nossas vidas, da qual ainda tenho medo, mas já não tanto, porque tudo depende do que pensamos e do que queremos. Porque isso é o essencial, o que nós queremos no fundo somos nós, nós somos subjetividade e o cinema nunca deixará de ser essa subjetividade porque é feito por nós, não por máquinas. No fundo, não são as máquinas que fazem os filmes, nós podemos determinar tudo. O que quisermos. O desejo. É a minha palavra preferida, sempre que confronto novos alunos e alunas com os seus projetos, falamos de desejo, acho que é o ponto mais importante.
Por fim, é esse desejo de fazer filmes que nos liga à memória, à nossa identidade, às nossas feridas, cicatrizadas ou ainda abertas, e para configurar identidades temos de regressar, revisitar-nos e projetar. E é por isso que é importante perseverar, não esquecer. É esse desejo que nos conduzirá aos filmes do futuro, e é aí que concentraremos as nossas aspirações. As concordâncias, as discordâncias, são as únicas coisas que nos podem dar certezas, o resto é desconhecido.