Por Rogério Luiz Silva de Oliveira e Auterives Maciel Júnior
Críticos, espectadores, profissionais ou estudiosos do Cinema Brasileiro têm lançado olhar sobre a fotografia de Walter Carvalho. Diretor de fotografia brasileiro que tem assinado filmes de destaque em mostras e festivais nacionais, despertando a curiosidade por meio da utilização de um dos elementos essenciais do processo fotográfico: a luz. Autodenominando-se “ora um criador de sombra, ora um tirador de sombra” (CARVALHO, 2009), este fotógrafo notabiliza-se pela habilidade com que tem utilizado a iluminação na criação de suas imagens para o audiovisual. Notoriedade esta que rende prêmios de melhor fotografia de trabalhos que passam pela televisão e pelo cinema. Dentre os mais de 30 filmes em que trabalhou, poderíamos enumerar alguns dos que tem a luz como um traço distinto: Terra Estrangeira (1995), Central do Brasil (1998), Madame Satã (2001), Abril Despedaçado (2001), Amarelo Manga (2003), O Céu de Suely (2003) ou Baixio das Bestas (2007). De modo algum, poderíamos limitar o trabalho deste fotógrafo ao uso da luz, incorrendo no erro do reducionismo. Algo que fazemos por justificativa metodológica, pois analisar o desempenho fotográfico como um todo implicaria num esforço fora do alcance desta proposta. Apropriando-se de uma luz quente em muitos destes trabalhos, sem necessariamente serem iguais – pois cada filme traz um desenho diferente de iluminação – pinta os quadros com a câmera, revelando um trajeto de formação que passa pela formação na Escola Superior de Desenho Industrial.
Se partirmos dos filmes acima listados, poderemos encontrar um traço comum já explicitado. A luz é explorada de modo clarividente, revelando a prática de esquemas de iluminação, esta uma das etapas do trabalho fotográfico. Tomando os citados filmes como referência, não será demais aproximar muitas destas imagens do chiaroscuro que permeou muitas das imagens da Renascença. Na elaboração de seu projeto fotográfico – a sua concepção imagética para um trabalho audiovisual – entra em cena um repertório pessoal que compõe o gosto do fotógrafo. É do procedimento do diretor de fotografia a elaboração de um pequeno projeto imagético que é apresentado ao diretor e aos outros setores. Em procedimentos mais sistemáticos, um fotógrafo chega a apresentar um projeto (uma espécie de catálogo) com as referências imagéticas que serão utilizadas na construção fotográfica. E neste caso entram imagens de outros filmes (frames), pinturas de um determinado período, fotografias de uma época. Tudo isto para revelar, ilustrar e exemplificar o tipo de luz e de fotografia, de modo geral, se quer alcançar num determinado projeto.
As opções de Walter Carvalho, em muitos dos projetos para os quais chamamos a atenção é por uma luz contrastada, compostas por luzes e sombras que iluminam rostos, corpos, ambientes. Em muitos planos, percebe-se o uso de luz natural apenas; em outros casos, uma associação entre luzes natural e artificial; ainda é possível identificar planos completamente iluminados com luz artificial que muito chamam a atenção. A própria escolha que fazemos por tratar da expressão da luz neste fotógrafo revela certo encanto propiciado pela iluminação na fotografia cinematográfica.
Compreender a participação da memória na construção estética deste fotógrafo passa, necessariamente, pelo diálogo com a história da arte. E aqui chegamos a uma memória expressa por meio de luzes e sombras, e de modo tão característico, que chega-se a pensar num dado estilo deste fotógrafo. Uma questão que configura-se polêmica, já que os diretores de fotografia acreditam, de modo geral, que cada trabalho exige uma determinada estratégia criativa diferente. Caso consideremos Carvalho dono de um estilo, ou pelo menos dotado de marcas características, aproximaremos estes dados empíricos da proposta filosófica a que nos dispomos. Embutido nesta prática fotográfica está um fenômeno de memória, pois nota-se facilmente a convivência, na fotografia cinematográfica em questão, entre referências passadas e expressão presente. É como se o trabalho de Carvalho fosse um ponto de concentração estética de práticas pretéritas localizadas numa historiografia artística, somadas a uma atualização estético-tecnológica que repercute em criação artística fotográfica na atualidade. A convivência entre passado e presente, por si, configura uma conceituação de memória que, ora, contemplamos em consonância com as indagações propostas por Gilles Deleuze. É deste modo que trazemos ao debate a interlocução que acompanhará esta discussão:
O estilo nunca é do homem, é sempre da essência (não-estilo). Ele nunca é próprio de um ponto de vista, é feito da coexistência, numa mesma frase, de uma série infinita de pontos de vista pelos quais o objeto se desloca, repercute ou se amplifica. (DELEUZE, 2006, p. 159).
Iniciamos a elaboração conceitual de memória por este caminho inicial que perpassa a própria condição artística (poética) do fotógrafo. Ou seja, em sua criação tem tanto inovação como reprodução ou repetição. Aquilo que constitui o que podemos chamar de estilo ou não, é feito de reminiscências.
Levado a rigor este pensamento, e aplicado à altercação acerca da poética fotográfica de Carvalho, consideraremos suas imagens como centelhas que convidam a uma investigação ou pelo menos apontam para um aspecto subentendido de memória. Caso consideremos uma história da imagem, reconheceremos padrões imagéticos localizando-nos na definição deleuzeana permissiva da aproximação com o conceito de memória.
Aprender é relembrar, mas relembrar nada mais é do que aprender, ter um pressentimento. Se, impulsionados pelas etapas sucessivas do aprendizado, não chegássemos à revelação final da arte, permaneceríamos incapazes de compreender a essência, até mesmo de compreender que ela já estava na lembrança involuntária ou na alegria do signo sensível (estaríamos sempre reduzidos a ‘adiar’ o exame das causas). É necessário que todas as etapas conduzam à arte e que atinjamos sua revelação; então tornaremos a descer os níveis, os integraremos na própria obra de arte, identificaremos a essência em suas realizações sucessivas, daremos a cada nível de realização o lugar e o sentido que lhe cabem na obra. Descobriremos, assim, o papel da memória involuntária e as razões desse papel, importante, embora secundário, na encarnação das essências. Os paradoxos da memória involuntária se explicam por uma instância mais elevada, que ultrapassa a memória, inspira as reminiscências e lhes comunica apenas uma parte de seu segredo (DELEUZE, 2006, pp. 61 e 62).
Não que num primeiro olhar identifiquemos a origem da influência expressa pelo fotógrafo nas imagens criadas para um filme. Contudo, avançando sobre a fotografia como quem tenta decifrar um enigma, um dado caminho percorrido e registrado será evidenciado e identificado. Reforçado pela trajetória do fotógrafo, o percurso de formação imagética salta diante de nós, possibilitando o exercício de comprovação do peso de uma memória estética na poética fotográfica. Na cinematografia de Carvalho, reminiscências se expressam por dados traços. Neste primeiro momento, o modo de utilização das luzes e sombras nos traz algo de familiar, colocando em prática a memória involuntária a que faz referência Deleuze ao tratar de Proust. Diante dos signos fotográficos apresentados pelo fotógrafo devemos então considerar que ali estão intrínsecas algumas reminiscências. Pela natureza da própria memória involuntária, ela é até perceptível, mas se mistura com expressões outras que convivem com ela. A memória involuntária que age o processo poético de Carvalho junta um passado estético com elementos de uma formação que o instrumentalizou para compor imagens técnicas.
A expressão imagética é exercitada por Walter Carvalho a partir de vários elementos narrativos. Obtendo a formação de designer gráfico, a composição dos elementos imagéticos desde cedo foi-lhe cara. Certos conteúdos aprendidos na Escola Superior de Desenho Industrial, fez deleum estudioso e conhecedor da história da arte. Dos recursos dos quais faz uso, certamente as relações entre luz e sombra configuram o que há de mais representativo em sua fotografia. Por isso mesmo, chegamos à obra de Walter Carvalho deparando-nos com uma prática destacada, e por que não distinta?, no uso de luz e sombra. Todo um repertório de formação visual vem à tona numa expressão cinematográfica que o tornaria um dos mais conhecidos diretores de fotografia do audiovisual brasileiro. Desta trajetória artística e profissional importará sublinhar alguns dos aspectos da relação luz x sombra desempenhada por ele.
Para este fotógrafo, tanto composição quanto utilização estética da luz encontra interlocução direta e objetiva com a história da arte, dos quais destacam-se alguns períodos, a exemplo da Renascença, da Alta Renascença e do Barroco, aos quais nos deteremos mais adiante. Preliminarmente, interessará muito destes períodos o uso que seus pintores fizeram da luz. E, neste caso, ao tratar da fotografia de Walter Carvalho, devemos, indispensavelmente, falar de luz. Elemento este que é uma das características fundamentais da imagem fílmica. Não à toa, Marcel Martin considera a iluminação como um tipo de elemento material que participa da criação da imagem e do universo do filme. Para este teórico dedicado à linguagem do cinema, “a fotogenia da luz é uma fonte fecunda e legítima de prestígio artístico para um filme, e, para todos os efeitos, é preferível uma iluminação artificial, esteticamente falando, a uma iluminação verossímil mas deficiente” (MARTIN, 2011, p. 62).
A fim de exemplificar estas relações, não poderá ficar de fora, neste caso, a sua parceria com o cineasta Walter Salles, diretor de um dos filmes que abrem os caminhos para Walter Carvalho na busca por sua forma de fazer fotografia. O filme Central do Brasil, neste sentido, será um ponto de concentração de signos imagéticos representativos de uma trajetória visual expressa na cinematografia. Caso consideremos a passagem em que a personagem Dora procura Josué no meio de uma procissão, cena esta toda iluminada por luz de vela, encontraríamos um primeiro exemplo a ser explorado. Do mesmo modo, e considerando uma ordem cronológica, poderemos refletir sobre o filme Lavoura Arcaica (2001), que também tem a fotografia assinada por Carvalho. A fotografia do filme apresentou um conceito que nos permite apresentar a reflexão em torno da memória criativa, ou mesmo de uma memória estética, pois as suas imagens dialogam com a trajetória imagética que o informa.