Por Danielle de Noronha
“Joaquim”, coprodução luso-brasileira, apresenta a história de Joaquim José da Silva Xavier, um dentista de Minas Gerais que se transformou em um dos principais heróis nacionais: Tiradentes. O filme busca preencher a lacuna existente na história e construir uma narrativa para explicar o que levou Joaquim a se transformar no líder do levante popular, conhecido como a Inconfidência Mineira, contra a coroa portuguesa.
Com direção de Marcelo Gomes, o longa foi filmado na Serra da Espinheira, em Minas, e contou com a fotografia de Pierre de Kerchove, que fala sobre o trabalho no filme.
Por favor, descreva os aspectos técnicos.
“Joaquim” foi filmado no formato 2:39, com a Alexa XT. Pro Res 444 XQ, sensor 4:3 e 2.8K de definição com as lentes Kowa Anamorficas, 40, 50, 75 e 100mm.
Quais motivos o levaram a optar pela Alexa XT e por essas lentes?
“Joaquim” é um filme de baixo orçamento. Marcelo Gomes e eu temos um grande apreço pelo “look” da película, principalmente do super 16. Hoje em dia, as câmeras digitais pecam por um excesso de definição, a imagem digital perdeu a textura que separava o realismo do onírico. Na minha opinião, o excesso de definição te tira da “mentira” que é um filme, você começa a enxergar o que está por trás da câmera, a maquiagem, o figurino, o movimento ensaiado dos figurantes, etc. Por outro lado, o digital traz uma liberdade criativa imprescindível para um filme de baixo orçamento, não há restrição orçamentária por querer filmar mais. E isso num filme como “Joaquim”, que nasceu muito do improviso e de decisões tomadas no imediato, foi uma ferramenta essencial. De todas as câmeras de cinema digital que eu conheço a Alexa é, de longe, a mais próxima do “film look” que amamos. A Arri manufaturou por tanto tempo câmeras de película incríveis e na transição para o digital conseguiu manter esse olhar fílmico.
Sobre as lentes, optamos pelas Kowas anamórficas. São lentes japonesas consideradas como ”vintages”, pois são bem antigas, acho que datam dos anos 1970. Optamos pelo formato anamórfico pois queríamos fazer um “western tropical” e o formato 2:35 é uma característica nos filmes clássicos sobre a conquista do oeste norte-americano. Neste caso, é sobre a conquista do ouro e do território Brasileiro. O anamórfico permite enxergar mais nas laterais do quadro, é um formato propício para filmar paisagens. Nossa intenção era transformar o cenário natural e imponente da região de Diamantina-MG numa presença constante no filme, ameaçadora e desafiadora.
As Kowas são lentes leves e claras, elas abrem até f2.2, ótimas para câmera na mão. Mas também, por conta disso, elas pecam em definição nas bordas do quadro, além de também deformar bem nas laterais das mais angulares. Mas esses defeitos nos agradam, eles ajudam a “quebrar a dureza” do sensor da Alexa. Eles também conversam com esse Brasil precário em formação. Nossa intenção era trazer isso para o filme, que ele fosse sujo. Normalmente, os filmes de época costumam priorizar movimentos suaves de grua ou steady cam ou até uma câmera fixa, como por respeito à época relatada, mantendo uma certa distancia dos fatos. Nossa ideia foi subverter isso com a câmera na mão que interage com os personagens, como num documentário.
Quem fez parte da equipe de câmera, elétrica e maquinaria?
Eu tive uma equipe técnica muito enxuta, usamos pouca luz, somente em algumas cenas. Nossa lista de luz era um refletor pan aura 5’ hmi de 400w e um mini soft 150w, ambos da dedolight. Na maior parte das noturnas usamos velas, lamparinas a óleo e cruzetas de ferro que colocávamos nas fogueiras soltando gás de cozinha, permitindo assim regular o tamanho das chamas. O gaffer/maquinista foi meu parceiro de longa data, Anisinho Pacheco, e seus assistentes Vinicius “vini” Fasciolo e o Junior Silva. Na equipe de câmera, outro grande amigo, Marco “chile” Contreras como 1ª assistente de câmera, seguido do André Keller como 2º, Leonardo Silva como vídeo assist e Everton “pica-pau” Oliveira como Logger, que também foi o responsável pela foto do pôster oficial do filme.
A história do Tiradentes já foi contada de diversas formas, em livros, filmes, etc. Alguma obra em especial serviu de inspiração para a fotografia de “Joaquim”? E tinha alguma estética que gostariam de evitar?
Eu não tive uma inspiração especifica, para mim o filme começa a se desenhar na leitura do roteiro e nas conversas com o diretor, depois com o diretor de arte e num estágio mais avançado de produção com figurino e maquiagem também.
Em 2008, eu fotografei um documentário na mesma região que filmamos “Joaquim”, ele se chama “Terra Deu, Terra Come”, de Rodrigo Siqueira.
Essa experiência foi intensa, ficamos imersos por um mês numa comunidade Quilombola em São João da Chapada – MG (bem próxima de onde filmamos “Joaquim”) e essa vivencia me ajudou muito a encontrar minha maneira de filmar câmera na mão. Foi por conta desse documentário que o Marcelo decidiu me chamar para o filme dele. A maneira que ele queria filmar “Joaquim” era similar à que filmamos “Terra Deu”…
Para o filme todo usamos apenas a 40 e 50mm anamórficas, que são mais angulares, queríamos uma imersão nas paisagens e no rosto dos personagens. Usei também muito os filtros close-up para conseguir deixar as lentes com um foco mínimo curtíssimo e assim adentrar à cara dos atores. Caçando seus olhares, bocas e a sujeira deles.
A restrição orçamentária me obrigou a esquecer a luz de cinema, mas como eu já tinha vivido essa experiência no documentário, estava confiante de que era a melhor escolha. Para as noturnas abraçamos a escuridão da noite, o fogo serviria apenas para mostrar o rosto dos atores e o entorno deveria ser totalmente negro. Quando você anda pela mata na noite sem lua é realmente escuro, você não sabe dizer se está de olhos fechados ou abertos. Eu queria passar essa sensação para as noturnas. O bom do longa-metragem autoral é a total liberdade criativa que te dão, na publicidade, a qual eu também trabalho, todo filme é construindo a partir de referências, fotos, filmes, etc. Por isso, quando eu faço um longa eu prefiro ler o roteiro e a partir dele inventar junto com o diretor, regras de filmagem (que depois podem ser quebradas) para ajudar a encontrar a gramática visual do filme. Assim, na hora de filmar temos sempre um ponto de partida para abordar a decupagem de uma cena e, dependendo da troca com os atores e com o espaço físico da locação, adaptamos essas regras e encontramos as soluções para aquela cena. Dessas soluções encontradas nasce o estilo visual do filme, sua cinematografia propriamente dita. As referências são inerentes à nossa vivência, eu naturalmente consumo muita informação e cultura e deixo isso fluir nos meus pensamentos sem tentar definir uma referência muito específica para a elaboração do filme.
A luz natural é sempre a maior referência, ela está o tempo ao nosso redor, nos inspirando e marcando nosso inconsciente. Ao longo do tempo certas situações de luz vão marcar eventos impactantes da tua vida, essas impressões vão ficar no seu inconsciente e cada vez que você se deparar com uma situação de luz similar a daquele evento, isso te transpõe a uma sensação. Pode ser medo, alegria, conforto, tristeza, enfim… o diretor de fotografia tenta recriar esses momentos de luz e sombra a partir da vivencia dele, traduzindo e tentando conectar esta sensação com o espectador.
Quais foram as dificuldades e soluções encontradas e quais as particularidades de filmar em locações de difícil acesso como as desse filme?
Foi muito físico para mim, eu perdi bastante peso depois da filmagem. Eu costumava dizer que não era “cross-fit”, mas “câmera-fit”. A particularidade de filmar em locações de difícil acesso é que você perde muito tempo para chegar no lugar escolhido para filmar e isso pesa no tempo que você tem para filmar as cenas previstas. O tempo útil para filmar as cenas prevista fica bem reduzido e isso deixo o set mais tenso. Ao mesmo tempo essa dificuldade, de certa forma, imprime no filme, ela ajuda a transformar a locação num personagem.
Como foi a interação entre a fotografia e o departamento de arte?
Marcos Pedroso, o diretor de arte, é um gênio, foi uma aula trabalhar com ele. Trabalhamos o tempo todo lado a lado, ele me ajudou na luz fazendo uma pesquisa profunda sobre lamparinas a óleo do século 18, ele confeccionou velas com pavio duplo entrelaçado para que elas gerassem mais luminosidade. Foi realmente um presente tê-lo ao meu lado. A paleta de cor foi muito trabalhada; por um momento, no começo da pré, consideramos filmar em PB, mas depois de ver o trabalho da Rô (Rosangela Nascimento), nossa figurinista, e do Marquinhos, que concebeu todo um estudo sobre os tons de cores das vestimentas e das habitações daquela época, pensamos que seria um crime filmar tudo isso PB.
O que dizer do trabalho com Marcelo Gomes?
Este é o meu terceiro longa de ficção. Eu já tinha muita admiração pelos filmes do Marcelo, já havia trabalhado com ele e com o Mauro Pinheiro, ABC como estagiário na finalização do “Cinema, Aspirinas e Urubus”. Para mim foi a realização de um sonho.
O Marcelo é muito generoso, ele quer te escutar e está muito aberto à crítica, ele não tem nenhum ego, pelo contrário, ele quer promover o debate, ele se alimenta disso. Todo dia de manhã íamos nos três: diretor, diretor de foto e diretor de arte no mesmo carro que demorava cerca de uma hora ou mais para chegar nas locações. Nesse tempo nós conversávamos sobre as cenas do dia, qual a importância delas no filme, como abordá-las e, às vezes, mudávamos tudo, cortávamos cenas, pois durante essas conversas nos dávamos conta de que tal como estava escrito não funcionava.
Nesse trabalho aprendi a entender a relação de entrega dos atores ao diretor, o Marcelo não estava preocupado com o texto, ele queria que eles vivessem aquela natureza bruta e hostil. Os atores ficaram um mês antes das filmagens naquela região com o Marcelo e a preparadora de atores Silvia Lourenço, eles os fizeram entender a relação do personagem de cada um com aquele ambiente e com a época retratada no filme, sem se ater à trama do filme. Uma vez isso feito, cada um deles encontrou seu personagem e Marcelo soube como conduzi-los para a história que queria contar.
Como foi o workflow de pós e qual foi a sua participação nele?
Fizemos a finalização na Quanta Post, eu acompanhei bastante o processo. Tanto nos efeitos especiais como na correção de cor feita pela talentosa Luiza Cavanagh. A Luiza é uma colorista que ama o cinema autoral, as conversas para achar a cor do filme foram muito interessantes, pois transcendiam o patamar estético, ela pensa na cor como uma ferramenta narrativa.
Algo mais que gostaria de acrescentar?
Obrigado pela entrevista, sempre admirei a ABC, que foi muito importante durante minha formação acadêmica com as palestras da Semana ABC. Espero que gostem do filme. Espero que o retrato que “Joaquim” faz sobre a formação do Brasil ajude a levantar o debate político sobre os rumos da nossa nação. E que o filme contribua para a conscientização das origens dos males que afligem nosso país, principalmente nos dias de hoje, em que vivemos um retrocesso político social grave.
Ficha Técnica
Direção e Roteiro: Marcelo Gomes
Diretor de Fotografia: Pierre de Kerchove
Diretor de Arte: Marcos Pedroso
Figurinista: Rô Nascimento
Técnico de Som Direto: Pedrinho Moreira e Moabe Filho
Montagem/Edição: Eduardo Chatagnier
Colorista: Luiza Cavanagh
Direção Musical: O Grivo
Produção Executiva: João Vieira Jr. e Pandora da Cunha Telles
Edição de Som: Elsa Ferreira
Elenco: Antônio Edson, Chico Pelúcio, Diogo Dória, Eduardo Moreira, Isabél Zuaa, Júlio Machado, Karay Rya Pua, Miguel Pinheiro, Nuno Lopes, Paulo André, Rômulo Braga, Welket Bungué