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Sessão ABC 2003

Amélia

Data: 01 de janeiro de 2003

FICHA TÉCNICA: 

Direção: Ana Carolina
Direção de fotografia: Rodolfo Sanchez
Direção de arte: Beto Manieri
Montagem: Ademir Francisco
Som: Chen Harpaz

A primeira projeção paulistana de 2003 da ABC teve espaço mais uma vez na acolhedora Sala Cinemateca, com um belo quorum, apesar de não ser um filme recente, nem um lançamento. Votada como uma das três melhores cinematografias no

1º Prêmio ABC em 2001, o trabalho do diretor de fotografia, Rodolfo Sánchez [do espantoso “Pixote”; além de “O Beijo da Mulher Aranha” e “Boleiros”, entre outros], no Amélia de Ana Carolina, reconstrói criativamente a época para esta bem-humorada história sobre o autismo do homem moderno [simbolizado pela língua], e a estúpida idolatria ao estrangeiro explorador.

O ponto de partida para o entendimento da narrativa é a convivência da atriz francesa Sarah Bernhardt – uma afetada e “pálida” personagem dramática, assumida por Béatrice Agenin – com as irmãs de Amélia [Marília Pêra], dama de companhia da atriz.

As irmãs Francisca e Osvalda, junto com a agregada Maria Luiza , saem do interior de Minas Gerais para o Rio de Janeiro, chamadas por Amélia para costurar os vestidos que Sarah Bernhardt usará na temporada brasileira do espetáculo Tosca. Quando chega no Rio de Janeiro, o trio fica sabendo que Amélia morreu, mas que o trabalho continua combinado e precisa ser feito com presteza. A partir daí, os encontros e desencontros se desdobram no humor crítico e às vezes ácido de Ana Carolina, incorporado pelas “mineiras” de forma excepcional.

A veterana Myrian Muniz dá um verdadeiro show no papel de Francisca, a irmã autoritária e guerreira. Ao lado da também veterana Camila Amado, a frágil e quase infantil irmã, e de Alice Borges, interpretando Maria Luiza, Myrian se torna uma espécie de arauto da justiça , muitas vezes atrapalhada, porém persistente.

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A cena em que Francisca e Sarah Bernhardt “duelam”, tendo a primeira como vencedora ao declamar com fervor teatral o poema I-Juca Pirama, de Gonçalves Dias, funciona como uma batalha final. Esta cena nos alça para fora do filme num momento reflexivo e mais sério da trama – êh! palavrinha. Mas Ana Carolina não perde o humor e nos surpreende com as três participando de uma montagem de O Guarani na França de Sarah Bernhardt.

Direção de Arte

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A riqueza da direção de arte surpreende pela “reconstituição” de época, assim como em Desmundo, fotografado por Pedro Farkas e cenografado por Adrian Cooper e Chico de Andrade. Junto com Rodolfo Sanchez, o diretor de arte Beto Mainieri realizou uma densa pesquisa com inúmeras fotos em diversos bancos de dados para reconstruir a identidade visual da época: “Quando eu entrei, ele [Beto Mainieri] já estava há 15 dias no filme e ele tinha uma boa base, tinha uma boa documentação e toda a parte da pesquisa de Paris resolvida [o diretor de arte havia feito pesquisas na Ópera de Paris antes de vir para o Brasil].

Nós trabalhamos muito bem juntos. Fizemos também uma pesquisa na Pinacoteca do Rio de Janeiro e no Banco do Brasil. Ele tinha um arquivo de fotos da época que era maravilhoso, eram preto e branco, mas era isso que vocês viram. O que tinha na janela era por aí e os pretos eram isso. Nós tentamos dar uma cor o mínimo possível. Está bem dessaturado para os processos que tínhamos naquela época.”

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O figurino de Kalma Murtinho e a maquiagem de Silvia Botelho, dirigidos por Beto Mainieri também são elementos que devem ser lembrados. A fotografia ressalta a brancura do rosto de Sarah – “A maquiagem era pó de arroz ” – e a faz estar ainda mais distante, mais européia e fora da realidade.

Torna-se quase um fantasma de si mesmo vagando pelos corredores do teatro e declamando seus textos num ensaio sem futuro.”Tínhamos uma espécie de ‘câmera light’ (soft light colocado sobre a câmera) só pra dar um brilho nos olhos dela e deixá-la mais branca”, contou o fotógrafo Rodolfo Sanchez.

Um momento interessante de se observar é a conversa entre Maria Luiza e Sarah Bernhardt . Nessa cena, a personagem Maria Luiza usa um vestido “de princesa”, explicitando no figurino sua relação mais íntima com a atriz francesa.

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Como se através de suas roupas, a menina do interior de Minas Gerais pudesse “elevar-se” ao nível Sarah Bernhardt e assim desfrutar de sua intimidade.

Parcerias

Rodolfo Sanchez contou que trabalha bem próximo à duas pessoas de sua equipe: o assistente de câmera, Paulo Teles nesse caso, e o gaffer, neste filme Ulysses Malta. As mesmas informações que o fotógrafo tem, eles têm. “Eu levo o roteiro pra uma reunião que fazemos antes de sair de casa meses antes, pra discutir e explicar.

Eu explico como vou trabalhar, dramaticamente como é meu pensamento. Primeiro por que eu gosto de compartilhar. Segundo porque aqui no Brasil eu não tenho seguro de vida e se me acontecer algo o filme pára. No último filme que eu fiz, fiquei doente e tive que voltar pra São Paulo. O Paulão tocou por 15 dias.

Ele sabia de tudo. Eles sabem tudo que eu penso e eu sei muito bem as limitações técnicas deles”.

Negativos

Foram utilizados os negativos Kodak 5248 100T para as externas e 5277 320T para as internas, sempre com um filtro de correção Tiffen 81EF. Sanchez também utilizou um filtro de difusão Tiffen Fog 1/4.

A revelação do negativo foi normal, mas Rodolfo pulou o banho de bleach na cópia [processo conhecido como bleach bypass, no qual ao pular o branqueador, a prata metálica não é retirada da película]. “Dramaticamente me interessava a dessaturação, me interessava ter contraste” e completou “Eu me divirto muito no laboratório, acho o laboratório a coisa mais importante que nós temos. Eu sempre gritei isso, apesar das casas de pós-produção eletrônica. Acho que se não dominamos o laboratório, não adianta entrar no telecine”.

Copião

Esta vai acabar sendo uma seção fixa dos textos. A preocupação com o questionamento de “ver no escuro”, situação obviamente já incorporada pelos diretores de fotografia, é sempre assunto nos debates. A esse respeito Rodolfo disse: “Eu sempre exijo copião. A equipe tem que estar como aqui, assistindo aos trabalhos do dia-a-dia, para ver o que está fazendo. É que nem terapia de grupo. Depois pode passar pra vídeo, pode fazer o que quiser. Acho que [com o copião projetado] o filme cresce, inclusive. Você começa num nível e na 8º semana o filme está lá em cima. É mais caro, mas o cinema é uma coisa cara e não é no copião que vai se economizar.”

T 2.8: uma decisão de linguagem

Rodolfo Sanchez manteve o diafragma T2.8 em todo o filme. No debate lembrou daquilo que está por trás das escolhas técnicas na fotografia: a linguagem. A definição de equipamento: câmera, lentes e luz, foi baseada na análise do roteiro pela equipe de câmera: “A cena em que Sarah Bernhardt discute com o agente na sacada está mais fora de foco que o resto do filme, ele pula violentamente, mas a gente queria fazer isso, a gente queria ter uma imagem de uma selva indefinida em cima dela, foi proposital, não é que a gente abriu mais o diafragma para ter menos campo focal. Isso já vinha pré-estabelecido desde o roteiro”.

Janela 1:1.85

Rodolfo também revelou sua já antiga preferência [ao filmar em 35mm] pela janela 1:1.85, pois considera um ótimo formato para compor os enquadramentos e contar a história: “Quanto mais retangular melhor. [a janela] Por ser PANAVISION já era full, senão, quando eram BLs [modelo de câmera da ARRI] eu fazia uma janela de 1.85 no visor se fosse preciso. Quanto mais largo ele é, menos mexe a câmera e o ator trabalha melhor”.

Rodolfo completou “Hoje você transforma 1.85 em 3 por 4 [enquadramento de TV, na proporção de cinema 1:1.33] nos laboratórios e casas de finalização, mas eu acho que o formato pra nós assistirmos na sala de projeção é no mínimo 1.85.”

Creio que o fato de a janela ser mais retangular – do 1:1.85 ou do 1:2.35, formato conhecido como scope – além de facilitar a movimentação dos atores e ajudar na composição do quadro [por causa do espaço nas laterais] provoca um impacto maior no espectador, a sensação “cinematográfica” é mais intensa. É bem diferente ver um filme que ocupa só o centro da tela, com janela 1:1.66 ou menor.

Panavision

Trabalhar com uma câmera PANAVISION no set foi um elemento de muita segurança para o fotógrafo, devido a sua resistência e a confiança que ela gera em toda a equipe:

“É a única câmera que não cria absolutamente nenhum problema. A calma que tem em volta dela, comparada com outras experiências que tive, é impressionante. Na hora que você se encontra com uma câmera que é resistente, que foi resistente um monte de filmes antes do seu e vai ser resistente um monte de filmes depois de você: Eu quero uma dessa! Eu durmo tranqüilo desde que comecei a usar PANAVISION e nós sabemos o que significa uma insegurança no departamento de câmera”.

Controle da luz : Minas Gerais e Recife

O filme foi rodado na ordem cronológica do roteiro. Assim as filmagens começaram em Minas Gerais e depois se deslocaram para o Recife para rodar as seqüências do teatro, pois na época em questão o Teatro Municipal de Rio de Janeiro não existia .

A história se passa no começo do século XX, quando a luz elétrica ainda não era uma realidade nem Paris, nem em Minas Gerais. Assim, a “luz natural” era a grande fonte do fotógrafo. A não ser pelas “velinhas que se mexem dramaticamente a medida que a ação sobe” como comentou Rodolfo.

Mas nem sempre essa “luz natural” colaborou: “Quando fomos pra Minas esperar aquele sol maravilhoso, nós descobrimos que chovia. A gente ficou atolado com o equipamento no set. Não tínhamos luz, não tínhamos sol, não tínhamos nada. Se vê muito bem naquele plano geral que elas vão embora com o carro de boi. Aí se vê o clima que nós tínhamos”. Rodolfo Sanchez contou que houve apenas um dia aberto, usado para fazer a única sequência com sol: aquela em que as irmãs lêem a carta de Amélia, logo no início do filme.

Sobre as cenas internas em Minas Gerais, o fotógrafo comentou: “Precisávamos ter informação lá fora e capturar a coisa mais frágil que tinha lá que era o fogo dos lampiões. Então, os interiores foram reforçados com Kino Flo. Nos Interiores/noite a gente usava um equipamento que o Ulysses trouxe da Quanta o ‘flicker master’ [para simular a luz das velas]. Então tínhamos que usar fresnel para pulsar, já que a Kino Flo, nessa época, não tinha processador de MX pra poder mexer.”

Já em Recife houve sol, mas por estarem filmando em época de chuva não havia muita possibilidade dele aparecer. Rodolfo contou que nos primeiros planos usou muita Kino Flo, misturando com tungstênio nos planos gerais [um fresnel de 20Kw] e nos fundos. “Estas são as limitações técnicas que a gente tenta administrar. A chuva em Minas e o pouco sol que teve lá [em Recife]”.

Enquanto nas externas o tempo nublado complicou o trabalho, nas cenas internas acabou favorecendo, pois mantinha a continuidade de luz vinda do exterior. “Nós fomos até Recife, tínhamos que achar uma coisa pra nós. O sol estava do nosso lado. Nublado ou não nublado ficava sempre igual porque sempre estava na luz baixa. A oscilação era mínima porque estávamos na contra-luz. Com nuvem dava [diafragma] 5.6, sem nuvem também dava 5.6. Só era mais tempo de trabalho com menos movimento de nuvem”.

O gaffer Ulysses Malta também estava na mesa de debate e ajudou a esclarecer as dúvidas dos presentes. Ulysses explicou que quase todas as entradas de luz eram feitas com HMIs [refletores que emitem luz com temperatura de cor de 5600K, semelhante à luz do dia: o daylight] em rebatedores prata para chegar uma luz mais suave no interior: “No hotel tinha uma varanda, e em cima daquela varanda foram 12 rebatedores. Tudo que tínhamos de HMI, pequeno, grande, médio dependendo da situação da cena, a gente jogava pra esses rebatedores. Essa incidência, na maior parte das vezes com o dia nublado, era feita de cima ou lateral, conforme a cena. Mas invariavelmente tinha HMI em todas as entradas [de luz]”.

Ulysses revelou que na cena final – que acontece em Paris, mas foi rodada no Rio de Janeiro – usou 04 Fresnéis incandescentes [tungstênio] de 10Kw filtrados e rebatidos no teto e um fresnel HMI de 18Kw . “Estas eram as fontes grandes do parque de luz, e foi o que pudemos levar para Recife”. Foi comentado pelos presentes que a luz parecia vir de uma fonte única.

Rodolfo completou contando que no palco havia uma lateral com janelas e os panos laterais do próprio teatro [“pernas”] foram usados para controlar a luz vinda destas janelas: “A coxia funcionou como um tremendo gobo [tipo de bandeira usada em pé, para cortar [a luz]”.

Janelas estouradas

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Em Recife, Rodolfo Sanchez se deparou com a necessidade de ter que esconder os fios elétricos das ruas, afinal “Amélia” é um filme sobre uma época em que não havia eletricidade. Assim, as janelas estouradas foram também uma boa saída para esta situação, “apagando os fios com sua brancura”.

“Começamos o filme em Minas e nós já vínhamos com o exterior medido. Em Recife, tive só que manter o mesmo rateio, a mesma luz alta. Dramaticamente era importante por que mantinha a continuidade fotográfica e praticamente funcionava para apagar o exterior” contou o diretor de fotografia.

Um bom exemplo de uma situação como essa – e fotografada com extrema beleza – é a cena do banho de Sarah Bernhardt e suas

costureiras. A luz invade o banheiro através das janelas elevando e sublinhando o clima de descontração e amizade entre elas. Até que Vincentine (ou “Vicentinha” segundo a personagem de Camila Amado), a secretária de “Madamme Bernhardt” quebra o clima com seu afetado mau-humor, trazendo-a de volta para sua fútil realidade.