Cinema para sempre?

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Por Carlos Ebert

“A verdadeira arte da memória é a arte da atenção.”
Samuel Johnson

Uma tapeçaria de Miró, uma escultura de Calder, mais de trezentas esculturas e desenhos de Rodin e uma série de entablaturas de Lichenstein: Essas são apenas algumas dentre centenas de obras de arte inteiramente destruídas e que desapareceram durante o colapso das torres gêmeas do World Trade Center em 11 de setembro de 2001. Será essa uma informação relevante?

Sem tanta espetacularização a sua volta, e fora do foco da mídia, milhões de metros de matrizes originais de filmes de cinema, programas de tv, vídeos etc desaparecem a cada ano sem deixar vestígio. Nem os Estados Unidos da América, a nação mais poderosa do planeta, responsável junto com o Canadá por 36% dos 26,75 bilhões de dólares arrecadados pela indústria cinematográfica durante o ano passado, escapará ao triste destino de ver centenas de suas obras audiovisuais irremediavelmente perdidas.

Em 1990, por iniciativa de um grupo de eminentes cineastas capitaneados por Martin Scorcese e que reunia Woody Allen, Robert Altman, Francis Ford Coppola, Clint Eastwood, Stanley Kubrick, George Lucas, Sydney Pollack, Robert Redford e Steven Spielberg, foi fundada a Film Foundation – Filmmakers For Film Preservation, uma entidade inteiramente dedicada à preservação do acervo audiovisual norte americano.

Num primeiro levantamento a instituição estimou que metade de todos os filmes americanos feitos antes de 1950 haviam literalmente se desintegrado, estando perdidos para sempre, e que apenas dez por cento dos produzidos antes de 1929 ainda existiam.Image Para os filmes que ainda resistem, a situação tampouco é animadora. Na atualidade, os maiores arquivos existentes nos EUA guardam mais de 100 milhões de pés de filme com necessidades urgentes de restauro para serem preservados. Tarefa que se afigura gigantesca e quase impossível de ser levada a cabo, no país mais rico do planeta.

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Aconteceu Naquela Noite (1932, d. Frank Capra), Como Era Verde o Meu Vale (1941, d. John Ford), A Sombra de uma Dúvida (1943, d. Alfred Hitchcock), O Rio (1951, d. Jean Renoir ), O Bigamo (1953, d. Ida Lupino), Sindicato de Ladrões (1954, d. Elia Kazan), O Mensageiro do Diabo (1955, d. Charles Laughton), Gloria Feita de Sangue (1957, d. Stanley Kubrick), Shadows (1960, d. John Cassavetes), Lost, Lost, Lost (1976, d. Jonas Mekas), Eraserhead (1977, d. David Lynch), alem de uma coleção de filmes italianos do período silencioso e da obra completa do diretor indiano Satyajit Ray, estão entre as obras em processo de restauro através dos diversos programas que a Film Fondation promove junto a entidades como a Academy Film Archive, George Eastman House, Livraria do Congresso, MoMA, UCLA Film and Television Archive o National Center for Film and Video Preservation do American Film Institute e a National Film Preservation Foundation. Pode até parecer muito, mas não é.

A preocupação com a preservação e o restauro das obras cinematográficas não é nova. Desde o advento do filme sonoro em 1927, Hollywood cuidou para que as matrizes de seus blockbusters fossem preservadas para que as novas gerações pudessem assisti-los como publico pagante. A cada nova mídia introduzida no mercado, E o Vento Levou, A Noviça Rebelde, My Fair Lady e tantos outros tantos “eternos sucessos” são relançados de capa nova e com muitos extras. Agora mesmo, com a definição do formato Blu-Ray disc como mídia para os DVDs de alta definição, iremos certamente ser soterrados por outra avalanche de “mais do mesmo”.
Em todo o mundo, apenas uma pequena parcela das obras audiovisuais – independentemente do seu valor artístico, comercial, ou da sua importância cultural, irá sobreviver ao tempo, ao acaso e a incúria de seus produtores para ganhar novas roupagens tecnológicas.

A FIAF, Federacão Internacional de Arquivos Fílmicos, entidade internacional que reúne as mais importantes instituições dedicadas à guarda, restauro e difusão das imagens em movimento, e também a defesa do patrimônio fílmico como forma de expressão artística, vem se empenhando nas tarefas de recuperar, colecionar, preservar e também projetar as imagens em movimento consideradas como obras de arte,Image de notável expressão cultural e/ou com valor documental e histórico. Na prática porém, os critérios que regem a seleção das obras vão além do artístico, do documental e do histórico defendido pela Federação. Interesses comerciais da indústria de entretenimento, a segunda em faturamento nos EUA, é que determinam preponderantemente os títulos que passarão à posteridade.

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Assim mesmo, todos os filmes da Fox anteriores a 1935 foram destruídos num incêndio nos depósitos da companhia. 37 dos 40 filmes estrelados por Theda Bara desapareceram sem deixar vestígios. De Clara Bow – uma das mais populares estrelas de Hollywood na década de 20, um terço da obra simplesmente sumiu. Felizmente nem todas as notícias são ruins. Filmes considerados desaparecidos por um longo tempo são descobertos como que por milagre. Em 1970, Page of Madness (1926, d. Teinosuke Kinugasa), foi desenterrado por acaso por seu diretor, no jardim de sua casa. Ele mesmo o tinha enterrado durante a Segunda Guerra Mundial para impedir que o negativo fosse “capturado” pelos aliados. Passado algum tempo simplesmente esqueceu o que tinha feito…
O próprio autor ou produtor de um filme pode ser responsável ao mesmo tempo por seu desaparecimento e por sua posterior “redescoberta”. Assim, o hipocondríaco Howard Hughes teve seus filmes The Racket e Two Arabian Knights, ambos de 1928, encontrados após sua morte em seu próprio arquivo! Jack L. Warner teve seu filme Doctor X (1932) achado nos desvãos de sua filmoteca particular.

No Brasil a situação da conservação e do restauro da produção audiovisual, ainda que quantitativamente bem menor, apresenta os mesmos problemas técnicos e principalmente financeiros, dos demais países. A Cinemateca Brasileira com sede em São Paulo, é desde a década de 50 a principal instituição dedicada à preservação da produção audiovisual nacional. Com um dos maiores acervos da América Latina, a Cinemateca Brasileira atua também na difusão e na restauração de seu acervo, que hoje compreende mais de 200 mil rolos de filme de longa e curta metragem, além de cinejornais e videotapes. No setor de documentação, possui um significativo acervo de documentos formado por livros, revistas, roteiros originais, fotografias e cartazes (1).

Num esforço para criar mecanismos que estancassem a deterioração da memória audiovisual brasileira, foi promulgada em 1993 a Lei No 8.685, que instituiu o depósito obrigatório na Cinemateca Brasileira, de cópia das obras audiovisuais que resultarem da utilização de recursos incentivados ou que merecerem prêmios em dinheiro concedidos pelo Governo Federal. Esperava-se que pelo menos dali para frente nosso patrimônio estaria minimamente preservado. Na realidade o cumprimento da lei não vem sendo tão assíduo como seria de se esperar. Além disso, as condições de produção da média dos filmes nacionais levam seus produtores a usar o negativo original editado na tiragem das cópias de exibição. Assim inexistem interpositivos ou internegativos completos de grande parte da produção recente. Tudo leva a crer que num futuro não muito distante, os principais curadores das mostras retrospectivas do nosso cinema serão o acaso e a sorte…

O que acontece aos filmes quando eles envelhecem?
Tão importante quanto a conservação do acervo audiovisual, é o restauro das obras que já se encontram em processo de decomposição. Sem entrar a fundo nos aspectos técnicos dessas questões, mas apenas proporcionando um mínimo de informação necessária à compreensão do problema, podemos esquematizar os principais tópicos assim:

Tipos de suporte das películas cinematográficas:
– Antes de 1950: Nitrato de celulose. Altamente inflamável
– Depois de 1950: Acetato de celulose (diacetato,depois triacetato). Conhecido como “safety film”. Pouco inflamável.
– Para interpositivos, internegativos e cópias: Poliester (inventado em1941 e presente no Brasil a partir de 1990). Não inflamável e mecanicamente muito resistente.

Os filmes de triacetato, maioria nos acervos de todo o mundo, apresentam como principal problema de conservação o decaimento chamado de “síndrome do vinagre”, onde pela exposição dos rolos à umidade, calor ou agentes químicos, ocorre uma proliferação de fungos que desencadeam reações químicas que resultam no rompimento as cadeias dos acetatos, liberam acido acético. ImageA partir daí o filme literalmente, “vai para o vinagre”. Nesse processo são observados 4 estágios sucessivos: 1º- apenas o odor, 2º- desplastificação, 3º- cristalização e 4º- liquefação ou empedramento.

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As matrizes anteriores de nitrato, apresentam problemas semelhantes, ocasionados por reações de hidrólise. Ai também a classificação compreende 4 estágios: 1º- melado nas bordas, 2º- avanço das partes meladas para as espiras subjacentes do rolo, 3º- espiras coladas e 4º- empedramento do rolo. Paralelamente aos problemas de deterioração química ocorrem deformações mecânicas como ressecamento, abaulamento e encolhimento, danos às perfurações que podem estar rompidas, forçadas ou mastigadas, além de riscos no suporte, fotogramas queimados, rompidos e com marcas e picotes de sinalização. No verso da película,na emulsão fotográfica, podem ocorrer desprendimentos, estriamentos e reticulações por fungo e cristalização. Nas películas coloridas ocorre descoramento e nas preto e branco, esmaecimento. Em ambas são comuns também as sulfurações, e outros depósitos decorrentes de fixação e lavagem inadequadas como metalizações, manchas esmaltadas além de óleo e todo o tipo de sujeira aderida. Como vemos, são muitos os problemas que afetam os acervos cinematográficos. Para fazer frente a todos eles simultaneamente, seriam necessários recursos bem maiores do que os disponibilizados hoje pelos governos, fundações e demais entidades envolvidas nas atividades de conservação, restauro e divulgação dos acervos audiovisuais.

Entre nós, mesmo com a exiguidade das verbas, a Cinemateca Brasileira vem conseguindo resultados expressivos nas três áreas.
Na preservação o volume de material examinado e revisado vem aumentando ano a ano.

Comparativo dos últimos 4 anos – Filmes examinados / revisados

ano       fichas  rolos     metros
2004    448      1.790    664.771
2005    997      2.231    733.726
2006    3.165   5.620    1.610.823
2007    1.526   5.706    2.238.336

Para as atividades de restauro, o Laboratório de Restauração da Cinemateca Brasileira conta na atualidade com um copiador óptico, capaz de processar filmes 35 mm com até 4% de encolhimento, mesa de comparação com 4 pistas e uma moviola-telecine para filmes 35 e 16 mm com capacidade para projetar de filmes em estado de alta deterioração.O controle sensitométrico das cópias em 35 e 16 mm garante a qualidade dos materiais processados pelo setor.

FOTOQUÍMICO OU DIGITAL?

Com a crescente informatização da tecnologia audiovisual, novas técnicas para a conservação e o restauro de filmes e videotapes vêm ganhando espaço rapidamente.

No campo do restauro, as novas técnicas digitais são sem sombra de dúvida superiores às fotoquímicas tradicionais. Quase todos os problemas de decaimento químico e mecânico que afetam as mídias audiovisuais foto-químicas relacionados anteriormente, são passíveis de correção através dos novos softwares. Com o barateamento do hardware e o aumento da capacidade de processamento e armazenamento de dados, essas técnicas vem se tornando majoritárias na área do restauro. O fato das obras resultarem digitalizadas, permite igualmente a sua divulgação nas novas mídias digitais, principalmente na internet de banda larga, onde irão atingir um público centenas ou milhares de vezes maior do que o que frequenta as salas especializadas.

O núcleo do restauro digital repousa em avançadas técnicas de análise e processamento de imagem que operam a nível do pixel e até do sub pixel, e que incluem estimativa de movimento, processamento estatístico e aplicação dos princípios que regem o registro da imagem fotográfica. Além da sua precisão e apuro, o restauro digital permite uma maior produção com menor emprego de mão de obra especializada. A pesquisa na área vem apresentando constantes avanços.Image Recentemente a Universidade de Surrey no Reino Unido, desenvolveu um software que permite eliminar a cintilação e a instabilidade da imagem típicas da projeção fotoquímica, e que afetam principalmente os filmes do período silencioso, rodados em cadências abaixo de 24 quadros por segundo em câmeras sem dispositivos de estabilidade no transporte como contra-grifa e pino de registro.

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Se no restauro dos acervos audiovisuais as soluções digitais vêm superando as foto-químicas, o mesmo ainda não pode ser dito quando o assunto é conservação. Em termos de durabilidade, universalidade e custo o celulóide e o poliéster ainda são os suportes mais indicados para conservação das obras audiovisuais. Em recente estudo, a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood (AMPAS), afirma que o atual padrão digital de 2K por linha é inferior em qualidade à película 35mm, e que o custo anual para arquivar um máster em 4K de um filme de longa metragem é de 104 dólares contra pouco menos de 10 dólares para a película.

No fotoquímico, a técnica usada para o arquivamento de longo prazo dos filmes continua a ser a separação das cores primárias (RGB, vermelho, verde e azul) em internegativos preto e branco. No digital, um longa metragem em 2K resulta num arquivo de 2,5 terabytes, gravado numa mídia muito menos estável e que certamente estará obsoleta em alguns anos. O problema da rápida obsolescência dos formatos e das mídias digitais, associado aos problemas de decaimento dos suportes magnéticos e ópticos ainda estão longe de serem superados, e a não ser que novas descobertas e invenções surpreendentes nos domínios da informática quântica e das memórias orgânicas surjam, a prevalência da conservação em suporte foto-químico deverá permanecer ainda por alguns anos. (3) e (4) . Rick Utley, vice-presidente do serviço de preservação da Pro-Tek Media Preservation Services, resume a posição da comunidade dos conservadores de obras audiovisuais ao afirmar que ” A tecnologia digital é maravilhosa e tem um tremendo potencial, mas no momento devemos assegurar o futuro e ter a certeza de que ele seja impresso em película cinematográfica”.

Como os interesses mercadológicos e econômicos em jogo são muitos, todas as opiniões a respeito merecem uma verificação isenta e descolada de exercícios futurológicos. Mesmo com todas as limitações observadas até o momento, tem-se como certo que mais esforços e recursos serão destinados pelos governos e instituições responsáveis para a ampliação das atividades de conservação, restauro e divulgação dos arquivos audiovisuais, hoje reconhecidos universalmente como um dos mais importantes e significativos aspectos da arte e da cultura dos séculos XX e XXI.

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APÊNDICES:

Parâmetros para temperatura e umidade relativa na guarda de filmes cinematográficos
– arquivo de matrizes acetato cor: -5ºC temperatura e 25% umidade relativa – arquivo de matrizes acetato p&b: 12ºC temperatura e 25% umidade relativa – arquivo de matrizes poliester cor: -5ºC temperatura e 25% umidade relativa – arquivo de matrizes poliester p&b: 12ºC temperatura e 25% umidade relativa – arquivo de matrizes formatos não convencionais: 12ºC temperatura e 25% umidade relativa – arquivo de matrizes suportes magnéticos e digitais: 12ºC temperatura e 25% umidade relativa – arquivo de matrizes acetato cor (com síndrome do vinagre ativa): -10ºC temperatura e 35% umidade relativa – arquivo de matrizes acetato p&b (com síndrome do vinagre ativa): -5ºC temperatura e 35% umidade relativa – arquivo de matrizes nitrato: 0ºC temperatura e 30% umidade relativa – arquivo de cópias acetato: 15ºC temperatura e 35% umidade relativa – arquivo de cópias nitrato: 12ºC temperatura e 35% umidade relativa – arquivo de cópias formatos não convencionais: 15ºC temperatura e 35% umidade relativa
Fonte: http://www.contracampo.com.br/34/anteprojeto.htm

NOTAS:

Para uma histórico da Cinemateca Brasileira, visite http://www.cinemateca.gov.br/page.php?id=1
Film, Computer, Action! in Newsline, revista do Engineering and Physical Sciences Research Council do Reino Unido. http://www.epsrc.ac.uk/CMSWeb/Downloads/Publications/Newsline/NewslineIssue27.pdf

No final da década passada, a companhia norueguesa Opticon anunciou que por alguns centavos de dólar 170.000 gigabytes de informação podem ser armazenados numa memória orgânica, baseada em polímeros processados em estado líquido, do tamanho de um cartão de crédito. http://otc.nfmf.no/public/news/4321.pdf

O computador quântico executa cálculos fazendo uso direto de propriedades da mecânica quântica como sobreposição e interferência. O principal diferencial que apresentam é a possibilidade de resolver em tempo recorde problemas que na computação clássica levariam um tempo considerável como fatoração e busca de informação em bancos não ordenados. No ano passado (2007), a empresa canadense D-Wave demonstrou o primeiro computador quântico do mundo.
O Orion, um computador de 16 qubits (bits quânticos), é a primeira máquina desse tipo capaz de realizar tarefas práticas. http://www.dwavesys.com/ para saber mais sobre computadores quânticos, veja http://informatica.hsw.uol.com.br/computadores-quanticos1.htm

RESTAURO DIGITAL

http://www.geocities.com/seapavaa/bulletin/av05/av520 http://www.mtifilm.com/press.html.htm
http://www.um.u-tokyo.ac.jp/publish_db/2000dm2k/english/01/01-15.html
http://query.nytimes.com/gst/fullpage.html?res=9B06E3DE1539F935A25750C0A96E958260&sec=&spon=&pagewanted=all

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