Desafio Da Luz Tropical

Eutueles

Por Carlos Ebert

Venho pensando há tempos nesta questão, sem contudo me animar a colocar em letra de forma as reflexões a que fui levado e algumas das conclusões a que cheguei. A existência da seção “Artigos” no site da ABC me animou a ordenar estas idéias. Espero que possam ter alguma serventia para nós, diretores de fotografia, que temos tanta carência de textos reflexivos sobre a nossa atividade.

Em entrevista concedida recentemente a Lauro Escorel e Tuca Moraes para o site da ABC, nosso decano Mário Carneiro fez alguns comentários que me serviram de ponto de partida para encaminhar a questão da luz nos trópicos (1). Dizia o Mário naquela ocasião: “Aqui, por exemplo, você sai no sol brasileiro. Você está com 8 diafragmas entre a luz e a sombra! É um inferno. E isso não vai mudar. Nosso clima é esse. Se quiser amansar isso, fazer fotografia tipo Almendros (2), só final de tarde. Duas horas de tarde, duas horas de manhã… No meio do dia faz uns planinhos de interior. Acaba ficando uma coisa cansativa, porque parece que só há duas iluminações aqui na terra: Quando o sol nasce e quando o sol se põe. Eu gosto de também ousar. De luzes bem violentas. ”

A lembrança deste trecho da entrevista me ocorreu ao assistir “Eu, Tu, Eles” 2000, dirigido por Andrucha Waddington e fotografado por Breno Silveira, onde a opção de filmar apenas nas horas de sol baixo foi levada às últimas conseqüências. Apesar de reconhecer os méritos do filme e de apreciar seu tratamento fotográfico, fiquei com a impressão o tempo todo de que o filme não se passava no agreste nordestino, onde uma das características da luz é a sua posição zenital durante as horas do meio do dia. Disso resultam sombras acentuadas e um “esfriamento” das cores resultante da alta temperatura de cor da luz do céu. Ao optar pelo tom dourado e pelas horas próximas ao amanhecer/ entardecer, perdeu-se a imagem árida e impactante que caracteriza o sertão nordestino.

Eu Tu Eles

Voltando a entrevista do Mário: “Porque a luz e a cor brasileira têm uma especificidade brasileira. Ela tem um alto-contraste de cor. Geralmente a paisagem brasileira tem cor de barro avermelhado e as árvores verdes. Então, é um contraste de cor de duas primárias, vermelha e verde. Isso somado a esse contraste de valor que vai até oito diafragmas. Cria assim momentos em que fica muito difícil você domar essa imagem. Então você tem que assumir um pouco essa imagem.”
Se acrescentarmos a este raciocínio a terceira cor primária, o azul do céu, que também é saturadíssimo nos trópicos, chegaremos ao paroxismo de contraste cromático que é a paisagem brasileira.

Os pintores que retrataram o Brasil tinham se dado conta deste problema desde o século XVIII. E foram poucos os que assumiram o desafio de reproduzir os contrastes de valor e cromático presentes nas horas do meio do dia.

Pelo meu limitado conhecimento da pintura paisagística brasileira, me ocorre apenas o exemplo de João Batista da Costa (1865-1926), que pintou algumas paisagens cariocas com o sol quase a pino, conseguindo efeitos interessantes.

Batcos1

Nesta tela; “Vista da Igrejinha de Copacabana” , Batista da Costa aproveita a luz do meio do dia para ressaltar o contraste cromático entre os verdes da vegetação próxima e distante e os azuis do mar e do céu, atribuindo a eles valores de luminancia quase iguais e obtendo assim um contraste cromático acentuado.
O mesmo local havia sido retratado cinco anos antes por Giambattista Castagneto (1851-1900), outro artista do “Grupo Grimm” (3), e que embora considerado um pintor artística e tecnicamente superior à Batista da Costa, refugiou-se na suavidade da “hora mágica”, evitando o contraste cromático entre as cores vivas do local o que resultou numa luz suave, “europeizada”, tão ao gosto do público da época.

Antônio Parreiras (1860-1937), também ousou retratar a luz tropical, registrando magistralmente em algumas paisagens o azulado intenso que ocorre nos trópicos quando observamos sujeitos na sombra do sol a pino. Infelizmente não me foi possível encontrar nenhum trabalho do pintor fluminense para ilustrar esta característica.

Castag4

É ainda Mario Carneiro quem observa que o pintor francês Edouard Manet (1832-1883), de passagem pelo Brasil como grumete, teria feito o comentário: “Esse é um país muito difícil de ser pintado, eu não consigo pegar essa luz daqui.”

Muito antes da cor ser introduzida em nossa cinematografia, o problema da reprodução da luz tropical já existia com relação ao contraste de luminância. No tempo dos filmes ortocromáticos, o azul do céu resultava num branco lavado e o tom de pele moreno aparecia um pouco mais escuro do que era na realidade. Com o advento das emulsões pancromáticas , a adoção dos filtros amarelo, laranja e vermelho para rebaixar o azul do céu (influência dos westerns americanos e do cinema mexicano, principalmente dos filmes fotografados por Gabriel Figueroa), e o uso de rebatedores , refletores de arco voltáico e telas difusoras, o contraste de valor foi sendo aos poucos domesticado. Nos filmes produzidos pela Vera Cruz, quase todos fotografados por europeus, este controle sobre a luz tropical atingiu a extremos, resultando numa crescente descaracterização da luz brasileira.

Situado na fronteira entre a chanchada e o cinema novo, o episódio “Pedreira de São Diogo” de “Cinco Vezes Favela” 1961, dirigido por Leon Hirzman e fotografado pelo turco Ozen Sermet, valia-se de uma fotografia ainda bastante acadêmica, com os contrastes de luminancia compensados pelo uso às vezes ostensivo de rebatedores. Como Leon assumia abertamente a influência dos filmes de Eisenstein, os enquadramentos estetizantes e a luz modelada acabaram servindo na medida à narrativa. Neste mesmo filme o episódio “Couro de Gato “, dirigido por Joaquim Pedro de Andrade e fotografado pelo jovem Mário Carneiro, vai na direção oposta investindo numa estética documental e numa fotografia de luz existente, onde a expressividade do momento captado e não a continuidade passa a ser o mais importante.

Um outro filme seminal na questão da reprodução da luz tropical ainda na fase do branco e preto, foi “Os Fuzis” 1963, de Rui Guerra, fotografado por Ricardo Aronovich, argentino de nascimento, e na época recém chegado ao Brasil.

Em entrevista a ABC, ele comenta:

” Essa luz nordestina me fascinou e quebrou todos os meus esquemas conhecidos da Argentina, onde a luz é mais inclinada, (não tanto quanto a européia, que se assemelha a da Patagônia), e mais controlável…. Tenho uma necessidade quase fisiológica de ver, de olhar, de viver pelo menos uma vez ao ano, essa luz que vocês tem a sorte de ter aí. É um pouco como se ela tivesse se fixado na minha retina… E vejo filmes as vezes, fotografados por grandes diretores de fotografia europeus, em lugares que poderiam se parecer com a luz do nordeste, da Bahia, ou do sertão (embora esta seja única), muito bem fotografados, certinhos até, mas que fora a qualidade técnica e mesmo pictórica, não refletem na fotografía, a realidade da luz, da temperatura ou a realidade social da locação em questão”.

Aqui Aronovich sintetiza o ponto central da questão que estou tentanto enfocar: fazer a cinematografia refletir a realidade da luz local.

Outros dois filmes do início do Cinema Novo contribuiram de forma notável para encontrar uma reprodução expressiva da luz tropical em preto e branco. São eles; “Vidas Secas” 1963, de Nelson Pereira dos Santos e “Deus e o Diabo da Terra do Sol” 1963, de Glauber Rocha.
No primeiro, a dupla de fotógrafos Luís Carlos Barreto e José Rosa conduziu uma experiência de eliminar qualquer filtragem corretiva (a “lente nua” no dizer de José Medeiros), e expor para a sombra, deixando as altas luzes “estourarem”. O resultado, que lembra muito as xilogravuras que ilustram a literatura de cordel, se mostrou altamente eficaz e integrado à narrativa.

Antonio Das Mortes

Em “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, Waldemar Lima foi pelo mesmo caminho da super-exposição, mas sua intenção de ter as cópias de exibição com alto contraste se frustrou pelo empenho do laboratório (Lider – Rio), em tirar cópias “corretas”, compensando as altas densidades do negativo.

Revendo recentemente o filme telecinado, fiquei impressionado com a latitude do antigo Plus-X, pois mesmo expondo para a sombra, se vêem detalhes nas nuvens e no chão de areião. Falando à ABC, Waldemar observou:

“Ele (Glauber) queria uma fotografia dura, branca, que retratasse a caatinga e que não fosse um mero acessório pictórico dentro do filme. Não queria uma fotografia bonita. Ele partiu do princípio de que a fotografia não devia ser bonita. E como poderia fazer fotografia não bonita na caatinga, onde qualquer mandacaru bem enquadrado ou contra luz da uma fotografia bonita?

Minha proposta foi super-expor o filme, ter um negativo denso e ter uma fotografia branca. Esse foi o princípio do nosso papo… Fiz um teste para o Glauber ver. Filmei durante o dia, sol a pino, uma pessoa com um chapéu largo fazendo sombra escura no rosto e a sombra ficou clara. Vegetação cinza claro. E era isso que a gente queria. O Plus-X tinha 64 ASA, e filmei com 16 ASA. Dois stops de super-exposição.” Certamente são poucos os locais no planeta onde se pode fotografar um filme inteiro com este índice de exposição …

Mais adiante Lima esclarece mais sobre outros motivos, bem mais pragmáticos, que o levaram a aquela escolha: ” A fotografia estourada além de ter sido uma definição de estilo fotográfico, evitava o uso de rebatedores. Nós não podíamos subir as escadarias do Monte Santo cheios de rebatedores. A solução era aquela mesma; super-exposição.”

Vidas Secas: Expondo para sombra e deixando os contrastes explodirem

L.C. Barreto comentando a fotografia de “Vidas Secas”, diz mais ou menos a mesma coisa:

” Achávamos que a fotografia devia ser sem luz artificial, sem filtros. Na verdade, uma coisa bem primitiva…. A fotografia de “Vidas Secas” buscava a textura da gravura. Uma fotografia bem contrastada, onde a luz era medida pelo rosto , o tom mais baixo, e o resto ficava com luminosidade estourada, transmitindo a verdadeira luz do Nordeste. Diferente do que se costumava fazer no cinema, com filtros, de maneira que o Nordeste parecia sempre meio nublado, que ia chover, ou como um jardim, sem aquela luminosidade agressiva… ”

Com o advento da cor, o problema se complicou mais ainda. Ao contraste de luminância sol/sombra, somou-se o contraste cromático entre as cores primárias (azul/céu, verde/mata e vermelho/terra). A solução salvadora encontrada para o preto e branco de expor para a sombra, não funcionava no colorido. A latitude do negativo color era muito menor (tolerava uma relação de contraste máxima de 4:1), e o resultado era desastroso, pois poucas coisas são mais desagradáveis ao olhar do que uma fotografia colorida super-exposta.

Acontece então um recuo em direção aos rebatedores e arcos voltaicos, nem sempre usados com a parcimônia e a discrição necessárias para evitar o artificialismo que de alguma maneira, ficou como a marca registrada dos primeiros filmes coloridos rodados no Brasil.

A assimilação da cor pelo Cinema Novo se deu de forma bastante assimétrica. De um lado alguns diretores de fotografia com uma boa formação estética e um olhar educado em outras atividades artísticas, notadamente na pintura e na fotografia fixa, mas que ainda não tinham total domínio da teoria e da tecnologia da cor no cinema. De outro, profissionais estrangeiros com mais conhecimento e prática da cor, mas um tanto “engessados” pelo respeito excessivo aos limites que o suporte apresentava naquele momento.

Um ponto de equilíbrio entre estas duas correntes é o trabalho do italiano Guido Cosulich no filme “Macunaima” 1969, de Joaquim Pedro de Andrade. Ali o emprego da cor se destaca como elemento expressivo da narrativa cinematográfica. Um toque “tropicalista” e uma ligeira super-exposição, temperam a efusividade das cores propostas pela direção de arte e pelo figurino. Mas, como uma herança da fase anterior preto e branca do movimento, persiste nos interiores o uso de muita luz rebatida e difusa, um fill light dominante que “achata” o sujeito contra o fundo, e que será uma característica da fotografia de muitos dos filmes coloridos produzidos nos anos 70 e 80.

Vidaseca

Uma solução interessante para a questão dos contrastes da luz tropical foi proposta por Affonso Beato no filme ” O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro” 1969, de Glauber Rocha. Sua proposta consistiu em filmar majoritáriamente a favor da luz, contornando desta forma o problema do contraste entre sol e sombra. Na cor, a direção de arte e o figurino introduziram nas cenas cores complementares como o amarelo e o magenta, que somadas às primarias, harmonizaram o contraste cromático, estendendo a paleta e tornando-a mais rica e variada.

Com a recente introdução pelos dois maiores fabricantes de filmes cinematográficos de novas emulsões que incorporam a tecnologia do “grão chato”, o índice e a latitude de exposição, a granularidade, e a resposta cromática foram bastante melhoradas. Como conseqüência, a reprodução dos contrastes de valor e cromáticos resultantes da luz tropical ficou menos problemática. Diretores, diretores de arte e principalmente os diretores de fotografia, passaram a aceitar melhor o claro-escuro próprio da luz sertaneja e a tolerar mais zonas de sub e super-exposição na imagem.

Por outro lado, alguns profissionais formados no cinema publicitário vem tentando transpor uma estética e um “look clean” para filmes de ficção rodados em regiões agrestes, obtendo um resultado que peca pelo artificialismo, reincidindo no erro apontado lá atrás por Aronovich ( “…os filmes não refletem na fotografía, a realidade da luz, da temperatura ou a realidade social da locação em questão”.)

Como vemos, a questão permanece em aberto. As novas propostas de abordagem que virão certamente vão aprofundar a discussão. Esperamos com a publicação deste texto ter proporcionado um balizamento para ela.

Notas

(1) Todas as entrevistas feitas para o site da ABC estão na página “textos”, acessível à partir de https://www.abcine.org.br/

(2) Nestor Almendros (1930-1992). Diretor de Fotografia Catalão, viveu em Cuba entre 1948 e 1961. Trabalhou depois na Europa e USA. Colaborou com Truffaut, Rohmer,Schroeder, Duras, Malik, Benton e Scorsese entre outros.

(3) Grupo de pintores, entre eles Thomas Georg Driendl, Antônio Parreiras, Giovanni , Battista Castagneto, Hipólito Boaventura Caron, Domingo García y Vazquez, Francisco Ribeiro, Joaquim José da França Júnior e Antônio Rafael Pinto Bandeira, que estudaram na Academia de Belas Artes do Rio de Janeiro na Segunda metade do sec XIX, sob a orientação do pintor Bávaro Johann Georg Grimm.

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