Leonardo Feliciano: “Marte Um”

Diretor de fotografia fala sobre o trabalho no filme
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Por Danielle de Noronha

“Marte Um”, dirigido por Gabriel Martins e realizado pela produtora mineira Filmes de Plástico, conta a história da família Martins, que vive tranquilamente nas margens de uma grande cidade brasileira, em Contagem, após a decepcionante posse de um presidente de extrema-direita.

Sendo uma família negra de classe média baixa, eles sentem a tensão de sua nova realidade. Tércia, a mãe, reinterpreta seu mundo depois que um encontro inesperado a deixa se perguntando se ela é amaldiçoada. Seu marido, Wellington, coloca todas as suas esperanças na carreira de seu filho, Deivinho, que por pressão e querendo agradar o pai, segue as ambições dele, apesar de secretamente aspirar estudar astrofísica e colonizar Marte. Enquanto isso, a filha mais velha, Eunice, se apaixona por uma jovem de espírito livre e questiona se é hora de sair de casa.

O filme levou o Prêmio ABC 2023 nas categorias de Melhor Som para longa-metragem ficção, entregue a Tiago Bello e Marcos Lopes, e de Melhor Direção de Fotografia para longa-metragem ficção, recebido por Leonardo Feliciano, com quem conversamos nesta entrevista sobre o trabalho no filme.

1 Eu Bernard Machado Assistente De Camera E Gabriel Ao Fundo
Gabriel Martins, Bernard Machado e Leonardo Feliciano.

Leonardo, conte-nos um pouco sobre a sua entrada no projeto “Marte Um”, percepções sobre o roteiro e as primeiras reuniões com o Gabriel.

Gabriel me convidou para integrar a equipe do “Marte Um” no primeiro semestre de 2018. O filme tinha ali uma proposta de cronograma com filmagens nos meses de novembro e dezembro, o que nos deu um tempo bem generoso de desenvolvimento e preparação. A Filmes de Plástico, pensando na experiência dos seus dois últimos projetos (um deles fotografado por mim, “No Coração do Mundo”), teve a impressão que esses tempos não estavam largos o suficiente, ficando as preparações aquém do que gostaríamos. Então, no “Marte Um” tivemos um cronograma mais dilatado e de trocas mais numerosas.

Nesse tempo, nossas primeiras reuniões eram menos focadas, sempre passando pelas dimensões estéticas e éticas desse retrato de uma família negra da periferia de Contagem, mas não necessariamente tomando decisões práticas sobre o que filmaríamos dali há seis meses. Conversamos eu, Gabriel e a diretora de arte Rimenna Procópio sobre as questões que o roteiro pretendia abordar, como a racial, as questões de gênero, trazidas muito pela construção da personagem da filha Eunice, além dos aspectos mais autobiográficos do roteiro. Trazíamos referências estéticas que naquele momento ainda possuíam uma natureza ampla, vinham do próprio cinema, das artes plásticas, performances, etc.

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Os filmes da Filmes de Plástico costumam transitar pelos gêneros cinematográficos – ação, thriller, etc. –, além de manter um certo lastro no realismo que também é muito evidente. A qualidade do roteiro não me surpreendeu, obviamente, sendo Gabriel um dos maiores roteiristas do país, mas confesso que fiquei um pouco surpreso dessa incursão tão forte no melodrama. Surpreso da melhor forma possível, pois foi um dos gêneros cinematográficos que mais me formaram como cinéfilo. Diretores como Douglas Sirk, Fassbinder, Lars Von Trier e Todd Haynes me marcaram bastante.

Quais estudos, referências e inspirações levaram você a construir a fotografia deste filme?

Quando começamos as pesquisas e conversas para o filme, fortuitamente encontrei com Gabriel em São Paulo em um momento em que o MASP apresentava a mostra Histórias Afro-Atlânticas, reunindo trabalhos que abordavam, de forma direta ou tangencial, a diáspora transatlântica do tráfico de escravizados(as). Ali já nos surgiram referências, mesmo que difusas e excessivamente teóricas, para o trabalho estético do filme. Os trabalhos de Osmond Watson e John Biggers nos forneceram um substrato fundamental sobre alguns pontos que queríamos trabalhar no filme. Sempre entendi o trabalho fotográfico como narrativas mais emocionais do que simbólicas, apoiando o filme em um diálogo que se trava com o(a) espectador(a) em um nível mais subconsciente do que a esfera da linguagem.

Nesse sentido, minhas referências vêm de muitos lugares diferentes, e com amarrações iniciais que não necessariamente são muito firmes. Desde Watson, e o trabalho da especularidade em seus portraits, ao trabalho de Ed Lachman e Robert Richardson, diretores de fotografia que admiro e que me ajudaram a pensar a fotografia do filme, um no seu trabalho de decupagem e enquadramento no melodrama, o outro na dimensão mais impressionista da luz.

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Quanto tempo teve de pré e quais testes foram realizados?

A pré de fotografia durou quatro semanas. Realizamos testes de latitude, codec, óticos (com ênfase em vignetting, pois as lentes utilizadas não cobriam 100% o sensor S35 da câmera em suas distâncias focais mais curtas) e LUT de monitoração. Foi a primeira vez que utilizamos a Alexa Mini e acabamos por recorrer à biblioteca de LUTs da Arri, já que não tivemos a oportunidade de construir um LUT de monitoração específico pro filme.

Ainda em relação aos equipamentos, além da Alexa Mini, trabalharam com alguma outra câmera? Quais lentes tinham disponíveis e o que tinham em relação à luz?

Trabalhamos em quase a totalidade do filme com a Arri Alexa Mini, filmando em 3.2K nativo com lentes Zeiss Standard 2.1 Na cena em que Deivinho cai da bicicleta tínhamos dois planos com grips no guidão que demandavam um equipamento substancialmente menor, e neles utilizamos a Sony A7s II. Quanto à luz, trabalhamos majoritariamente com HMIs PAR e refletores de lâmpada fluorescente como Kino Flo e PLs.

2 Eu E Gabriel Ambos Em Pe
Leonardo Feliciano e Gabriel Martins no set de “Marte Um”

O filme tem uma luminosidade que trouxe um brilho azulado, em especial, às peles dos atores e das atrizes. Poderia nos falar um pouco sobre essa escolha e como chegaram nesse resultado? Além de estética, tem também uma intenção narrativa?

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Tem uma intenção narrativa na medida do que eu imagino que a fotografia de cinema consegue criar narrativas emocionais no subconsciente do(a) espectador(a). O brilho azulado busca comunicar em termos estéticos um pouco mais do sonho de Deivinho, e, como um todo, os sonhos de toda a família. É uma proposta de buscar a luz da lua não como um mero índice de uma cena noturna, mas também como um signo do desejo da personagem de exploração do universo. Nesse sentido, não tive preocupação em ser pouco realista nas transições de interiores para exteriores noturnos. Nos primeiros, especialmente nas cenas dentro da casa, o lugar de reunião por excelência daquela família, eu trabalhava mais os azulados, enquanto nos exteriores eu explorava mais as filtragens de sódio (gelatina Urban Sodium) e tons mais quentes.

Meu desejo era de que esse azulado dos interiores não fosse tão acadêmico, então trabalhamos modulações da matiz com gelatinas de correção nos HMIs em alguns momentos, em outros misturamos com gelatinas de efeito como Cold Blue, e, por fim, modulamos um pouco mais na pós, sempre explorando o aspecto especular da pele dos atores e das atrizes, que traz uma metalização do azul, ajudando nesse desejo de desviar um pouco de um tonalidade mais acadêmica e tradicional.

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Como foi a relação da equipe de fotografia com a direção, a direção de arte e o som?

É uma pergunta bem ampla. A dinâmica do set e as relações entre as equipes no geral não diferiram de outros filmes que já fiz. Pelo menos no que tange às trocas puramente profissionais. O que eu acho mais relevante de falar é que, não apenas “Marte Um”, mas todos os filmes da produtora, são feitos por um núcleo de pessoas que se conhece há anos, e que se repete com muita frequência. São laços que se iniciam com afinidades estéticas, mas que têm consequências diretas nas relações entre as equipes de set. Sinto que a comunicação é mais fluida – o que é fundamental em um trabalho estético e essencialmente subjetivo – e os entendimentos das questões e obstáculos dos outros departamentos mais amplos e solidários.

A produtora Filmes de Plástico tem também a característica de trazer em seus filmes personagens complexos, diversos, com agência, que vai de encontro com a construção de um cinema brasileiro mais representativo e plural. Na sua opinião, como a fotografia atua nesse sentido e como você vê o desenvolvimento da produtora ao longo dos anos?

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Set do filme “O Último Episódio”, com direção de Maurílio Martins e produção da Filmes de Plástico.

Eu acredito que a fotografia atua nos filmes da produtora à medida que ela consegue ser bastante camaleônica, abrindo mão em parte de estilos e escritas pessoais e entrando no universo dos diretores, no universo de Contagem. São filmes que carregam um tanto da cidade, um tanto das vidas e biografias dos diretores, um tanto de suas histórias e memórias, ao mesmo tempo em que dialogam com gêneros e referências cinematográficas muito precisas. Acho que a direção de fotografia desses filmes poderia ficar tentada a focar exclusivamente nessa dimensão da recriação de estilos e realizar filmes que não dialogassem com a materialidade da cidade, mas eu acho que os fotógrafos e fotógrafas que têm trabalhado nos filmes da produtora têm tido a felicidade de entender esse espaço das encenações não como um papel em branco – livre de qualquer memória e pronto para criações que partam do zero –, mas como um espaço que tem uma visualidade a ser incorporada, mesmo que ele traga locações que não reproduzam cores e contrastes de uma maneira clássica.

Nesse sentido, eu acho que as fotografias dos filmes vêm somar aos entendimentos de direção, e aos entendimentos dos quatro como produtora mesmo. Eu acredito que a história brilhante da produtora até o momento passa muito por essa costura do que há de singular e íntimo nas histórias deles com essa força cinéfila que molda os filmes.

O filme foi rodado em 2018 e finalizado durante a pandemia. Quais soluções encontraram e como foram os seus diálogos com a pós, em especial, com o colorista?

No recebimento do Prêmio ABC eu lamentavelmente esqueci de citar no meu agradecimento o colorista do filme, João Gabriel Riveres, sendo que eu acredito que foi um dos que teve um trabalho mais árduo nessa construção visual do filme. Finalizar “Marte Um” durante a pandemia não foi simples. João nos proporcionou algumas soluções fundamentais para que pudéssemos levar o trabalho à distância, como as ferramentas do Frame.io e Parsec, mas eu acredito que a maior dificuldade estava no processo que se tornava obviamente mais ralentado e episódico. Parte do trabalho especular que queríamos imprimir na pele dos atores e das atrizes passou pela marcação de luz e o trabalho do João, com máscaras de contraste, etc. Fazer um trabalho assim, explorando alguns limites de densidade da pele preta, mas tendo o cuidado de não extrapolar em algumas subexposições, requer uma minúcia que poderia se valer de um tempo mais estendido para o trabalho, mas eu honestamente acredito que assim como o trabalho no set –  e ao contrário do trabalho de desenvolvimento e preparação – o trabalho de finalização não pode ficar tão aberto ao tempo, e isso me pareceu um desafio. De quando em quando fazíamos um encontro presencial na empresa do João, e eu sentia que a cada vez eu e Gabriel pensávamos em novas modulações possíveis….

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Eu acho que as soluções mais técnicas foram bem resolvidas dentro do possível. O que eu vi como grande desafio desse processo foi o tempo dilatado, e, especialmente nesse sentido, João foi um grande parceiro.

Sobre o Prêmio ABC que recebeu este ano pelo trabalho no filme. O que esse reconhecimento significa para você?

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Leonardo Feliciano ao lado de Elisa Iannacone e Fabio Zuccarato no Prêmio ABC 2023.

Como falei ao receber o prêmio, receber um prêmio desse porte com esse filme é algo muito significativo, pois acredito que algumas “voltas” no nosso cinema foram necessárias para que isso acontecesse. Eu tive o privilégio de estudar numa escola reconhecida mundialmente, a PWFSTviT de Lodz, na Polônia, onde exercitávamos uma iluminação clássica hollywoodiana, trabalhando com grandes difusões e desenhos de produção voltados a texturas e a geografias que não são muito nossas, não conversam tanto com a materialidade da periferia brasileira em todas suas nuances. Quando eu volto para o Brasil e começo a fazer meus primeiros longas, nas Ceilândia, com o Diretor Adirley Queirós, percebo que por inúmeros motivos essa luz e esse cinema que estudei não são exatamente possíveis de serem executados. Não que as referências construídas ou as técnicas aprendidas nesses anos não tivessem mais valia, mas estava claro que precisava que passassem por algumas voltas conceituais e criativas para que fizessem sentido nesse cinema que buscava outros caminhos, desde sua origem fora dos grandes centros produtores do país, ao seu destino nos circuitos de festivais mais autorais.

Então, para mim, ganhar o Prêmio ABC com um filme de baixo orçamento sobre uma família preta, rodado por um Contagense na periferia da cidade, trabalhando a materialidade dos bairros queridos pelo diretor, mas trabalhando também referências que são tão importantes para nós como cinéfilos, é uma honra.

Algo mais que gostaria de acrescentar?

Gostaria apenas de agradecer à minha equipe, aos parceiros e parceiras de trabalho e aos quatro da Filmes de Plástico pelos encontros do cinema e da vida. Serei sempre muito grato a todos e a todas!

Ficha Técnica:

Direção: Gabriel Martins
Produção: Filmes de Plástico
Roteiro: Gabriel Martins
Produção Executiva: Thiago Macêdo Correia
Elenco: Rejane Faria, Carlos Francisco, Camilla Damião e Cícero Lucas
Direção de Fotografia: Leonardo Feliciano
Direção de Arte: Rimenna Procópio
Trilha Sonora Original: Daniel Simitan
Montagem: Gabriel Martins e Thiago Ricarte
Direção de Som: Tiago Bello e Marcos Lopes
Elenco: Rejane Faria, Carlos Francisco, Camilla Damião, Cícero Lucas, Ana Hilário, Russo APR, Dircinha Macedo, Tokinho e Juan Pablo Sorrin

Equipe de Fotografia:
1º AC: Bernard Machado
2ª AC: Ceres Canedo
Logger: Ralph Antunes
Gaffer: Luciano Negro Drama
Maquinista: Flamingo
Assistente de Elétrica: Luan Lopes
Ajudante de Elétrica: Lucas Lopes
Colorista: João Gabriel Riveres
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