Corpo e representação feminina em “Tarachime”, de Naomi Kawase

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Por Luana Mendonça Cabral
*Estudante do curso de graduação em Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Espírito Santo.

INTRODUÇÃO

Lançado no ano de 2006, o documentário Tarachime é o décimo segundo filme dirigido pela cineasta japonesa Naomi Kawase, cuja vasta obra apresenta títulos largamente conhecidos e premiados, tais como Shara (2003) e Mogari no Mori (2007). O filme é, também, a terceira e última obra de uma série de curtas-metragens autobiográficos realizados por Kawase entre 1994 e 2006, constituída por filmes cujos argumentos centram-se na figura da avó e mãe de criação da própria cineasta, Uno Kawase. O resgate da memória da avó e das questões que permeiam o relacionamento entre Naomi e Uno tem início em Katatsumori (1994) e permanece em Ten, Mitake (1995) e Hi wa katabuki (1996). Quase dez anos depois, em Tarachime, a discussão ganha novas dimensões ao passar a abranger também o vínculo afetivo entre a avó e o primeiro filho de Naomi, o pequeno Mitsuki.

No filme de 2006, Kawase levanta uma discussão sobre o papel de sua avó como mãe de criação, questionando as atitudes tomadas por ela durante a infância e a adolescência da cineasta. Após um longo interrogatório, que termina com as súplicas de perdão e o choro da senhora de 90 anos, deixando o espectador com a sensação de ter visto mais do que o necessário (FOSTER, 2013. Acesso em 25 de Jul. de 2014), uma atmosfera sensorial passa a motivar as cenas, construída por meio do discurso reflexivo trazido em voice-off por Kawase e pelas imagens intimistas presentes na película, que evocam a delicadeza e o ar de reconciliação que permeiam os momentos que se seguem. A partir de então, duas cenas se destacam: a morte da avó de Kawase, provocada pela existência de um tumor em seu seio, e o nascimento de seu filho, cujo parto foi filmado pela própria cineasta, munida de uma câmera portátil. O diálogo entre morte, nascimento e maternidade traz à tona o grande tema do filme, que gira em torno das questões ligadas ao ciclo da vida, aos recomeços e à continuidade da existência, quer seja em razão de laços sentimentais, quando a presença do outro se dá através da memória, ou pela ligação biológica, inerente à própria natureza, representada, principalmente, pelo parto, pelos seiosi da vó-mãe e da neta-filha e pelo cordão umbilical.

O olhar da diretora, ao mesmo tempo câmera e personagem, é a grande força motriz do filme. Além da presença de imagens e sons carregados de pessoalidade e subjetividade, que aproximam o espectador dos corpos e dos indivíduos representados, a presença da câmera, ainda que contida no extra-quadro em razão do enquadramento escolhido, é notada pelo espectador desde a primeira cena do documentário. Observa-se, nos momentos nos quais Kawase se dirige à sua avó, seu posicionamento atrás da câmera: O que vemos é também o que a diretora in loco vê. No momento do parto e quando o filho de Naomi, já um pouco maior, brinca com a câmera portátil em cima de sua cama, fica evidente o papel da máquina não apenas como dispositivo, mas também como personagem.

É possível então falar, no caso de Tarachime, da presença de um dispositivo cujos mecanismos ficam expostos ao espectador, rompendo com os preceitos de invisibilidade e transparência delimitados pelo Cinema Clássico. Mais do que isso, a experiência cinematográfica proposta pelo curta-metragem desloca o espectador de seu lugar tradicionalmente estabelecido, primeiro pela autorreflexão presente em sua forma que o permite deixar meios de realização à mostra e, segundo, pelo posicionamento do espectador em relação ao filme, determinado pelo olhar condutor da diretora. Tal olhar, ao voltar-se para a personagem da avó e para a própria Kawase, nos momentos mais autobiográficos do documentário, oferece uma nova perspectiva sobre os assuntos que se ligam às histórias das duas, sendo esses diretamente ligados ao universo feminino. Nesse contexto, a questão da maternidade e a forma como o corpo da mulher é representando na tela cinematográfica são temáticas que se sobressaem, sendo abordadas de uma maneira singular, que rompe com alguns estereótipos da representação feminina presentes na cinematografia tradicional, tais como a idealização do corpo feminino e da figura da mãe como um ser perfeito, acima de qualquer julgamento.

A forma como a representação da mulher é realizada em Tarachime possui algumas interseções com a teoria feminista do cinema, ainda que o filme não possua, em sua essência, o feminismo teórico como tema principal. Trata-se de uma libertação da mulher baseada no rompimento com os estereótipos de representação que dominam a linguagem do cinema, voltado, portanto, para as questões estéticas e discursivas, mas que não possui um debate feminista no centro de sua discussão. Trataremos, nesse trabalho, da forma como se dá essa representação, fazendo aproximações com a teoria feminista do cinema a partir, principalmente, dos postulados feministas de Laura Mulvey e dos estudos sobre o dispositivo cinematográfico de Christian Metz e Jean-Louis Baldry, sendo esses importantes para o estudo da autorreflexão presente na forma do filme estudado. Assim, mapearemos as diferenças entre a representação tradicional da mulher no cinema e a que é feita em Tarachime, sobretudo a partir de uma análise de sua estética, de sua forma e do discurso proferido ou representado pelos seus principais personagens ativos, que são as duas mulheres da família Kawase.

1 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O DISPOSITIVO EM TARACHIME

No documentário Tarachime, o espectador é colocado numa posição diferente daquela estabelecida pelo dispositivo cinematográfico tradicional, principalmente em razão da sua estrutura, ou seja, da forma como é realizado o filme, e de suas características estéticas. Embora tal deslocamento da audiência se dê majoritariamente em razão da maneira como é feita a representação da mulher e do universo feminino, as características próprias do dispositivo do filme também influenciam na experiência do espectador. Em relação ao dispositivo de Tarachime, o elemento que mais se sobressai é a exposição livre do aparato cinematográfico. Nele, os meios e mecanismos utilizados para realizar e construir um filme são explicitados ao espectador, deslocando esse da posição que assume, normalmente, diante de um filme identificado como pertencente à tradição clássica do cinema.

A estrutura do documentário de Kawase é baseada em entrevistas feitas por ela à avó e por imagens gravadas com o uso da câmera na mão (ou ao menos usando recursos que busquem se aproximar das qualidades estéticas provenientes do uso da câmera na mão), que remetem a uma manipulação caseira das imagens, ligada à própria atmosfera pessoal e intimista construída pelo filme. Nas entrevistas, a manipulação da câmera, feita pela própria diretora, fica evidente. O olhar da avó se dirige para um personagem que está atrás da câmera, evidenciando a presença de um dispositivo de captura de imagens naquela cena e de um sujeito que filma os acontecimentos e também dirige a ordem e a maneira como eles se dão, através, principalmente, de uma condução oral, discursiva, presente na voz off de Kawase, que determina o modo como se dá a conversa e os rumos por ela tomados. Assim, Kawase e sua câmera, que conduzem o olhar da audiência por meio da produção das imagens, tornam-se também personagens, uma vez que suas presenças no quadro são percebidas pelo espectador. Ambos fazem parte da mise-en-scène do documentário, promovendo uma reflexão sobre o papel do próprio dispositivo no significado do filme e, portanto, atribuindo ao próprio um certo caráter metalinguístico e autorreflexivo. Outro elemento que enfatiza a metalinguagem dentro do filme são as imagens registradas de objetos ligados ao fazer cinematográfico, como câmeras e filmes fotográficos. O momento que explora mais a presença desses elementos é a cena na qual o filho de Naomi, Mitsuki Kawase, está sentado brincando com uma câmera filmadora portátil, provavelmente de sua mãe.

Em alguns momentos do filme, a câmera se volta para a janela e captura poeticamente a luz que entra pelos vidros e se espalha pelo quadro. À parte das qualidades sensoriais alcançadas por esses planos e da beleza poética neles presentes, a figura da janela como alusão ao aparato cinematográfico constitui uma metáfora já largamente feita no cinemaii, em obras que se propõem a discutir a sétima arte e as formas imagéticas de representação, sobretudo relacionando a imagem do real com a imagem cinematográfica. Em Tarachime, a insistência em se capturar a imagem dessa janela, que aparece até mesmo refletida na radiografia do tumor de Uno, não deve ser interpretada como gratuita. Num filme no qual o dispositivo é explicitado na sua forma e mise-en-scene, esse tipo de analogia representa quase a constatação de que a importância de sua autorreflexão vai além do que podemos, num primeiro momento, pensar. Destaquemos a cena na qual as mãos de Kawase aparecem manipulando um rolo de filme fotográfico, com a grande janela do cômodo ao fundo. A luz quente do segundo plano invade o primeiro e atravessa a superfície do filme, constituindo, além de uma bela imagem, uma explícita referência à sétima arte, unindo a vida que (que se passa do lado de fora da “janela do mundo”) às formas de registro audiovisual de forma cada vez mais intensa (FOSTER, 2007. Acesso em 28 de Jul. de 2014).

Esses fatores acabam expondo os artifícios utilizados na realização do filme, diferenciando Tarachime do cinema clássico, que busca “apagar as marcas de enunciação e se disfarçar em história” (METZ, 1983, p. 404). Apesar dessa característica ser mais evidente nos filmes de ficção, o documentário clássico também se articula para contar uma história onde o trabalho do realizador não pareça estar inscrito. O que a cinematografia tradicional quer, em suma, é que a história pareça estar surgindo para o espectador sem influência técnica ou ideológica de nenhum sujeito ou, segundo Christian Metz, “É a ‘história’ que se exibe, é a história que reina” (METZ, 1983, p. 410). O que Tarachime faz é evidenciar os elementos que constituem o fazer cinematográfico e deixar explícita a forma como foi realizado, o modo com as imagens foram constituídas e o sujeito que busca e direciona essas imagens e seus significados, representado pela diretora-personagem, que se inscreve dentro do próprio documentário que realiza.

Jean-Louis Baldry faz uma analogia entre o cinema que oculta seu próprio instrumento e o sistema repressivo. Ele afirma que o cinema pode “aparecer como uma espécie de aparelho psíquico substitutivo, respondendo ao modelo definido pela ideologia dominante” (1983, p. 398). Assim, se a função do sistema repressivo é justamente conter os desvios desse modelo e naturalizá-lo, tentando esconder a ideologia por trás do mesmo, a função do filme clássico é esconder o aparato cinematográfico para reprimir uma reflexão sobre o “inconsciente” dos filmes, ou seja, seu aparelho de base. Dessa forma, é possível pensar que romper com os preceitos de invisibilidade do dispositivo pode representar, em algum nível, a promoção de uma reflexão sobre o próprio cinema. Afinal, o espectador não pode mais ser iludido pela história representada (nem acreditar que ela se deu sem nenhuma influência técnica ou ideológica) uma vez que reconhece o aparato por trás de sua constituição.

2 A REPRESENTAÇÃO FEMININA

Laura Mulvey, uma das mais importantes teóricas e cineastas do movimento comumente conhecido como feminismo cinematográfico, em seu artigo “Prazer Visual e Cinema Narrativo” lança as bases para uma teoria feminista do cinema que utiliza a psicanálise para demonstrar “como o inconsciente da sociedade patriarcal estruturou a forma do cinema” (MULVEY, 1975, p. 437). Ela postula que parte do prazer sentido na experiência cinematográfica é proveniente da identificação do espectador com um modelo de representação falocentrista e machista, que coloca a mulher como imagem representada na tela a partir dos desejos masculinos. Para Mulvey, esse tipo de prazer inerente à própria estrutura do cinema deveria ser eliminado tendo ou substituído por um outro tipo de como objetivo Sobre a autora e o feminismo cinematográfico, Ismail Xavier sintetiza:

Daí que, para Mulvey e outros cineastas, a política no cinema passa pela crítica do ilusionismo e pela destruição das estratégias visuais e narrativas que constroem o prazer somente na base da repetição, “mimando” as neuroses masculinas e suas fantasias de dominação. (XAVIER, 1983, p. 369)

Segundo Mulvey, o cinema dominante “codificou o erótico dentro da ordem patriarcal dominante” (1983, p. 440) estabelecendo, no centro desse erotismo, a figura da mulher como significante do desejo masculino. A mulher, assim, constitui o sujeito passivo enquanto o homem é o sujeito ativo ou, como a própria autora define, a mulher se apresenta como imagem e o homem como o dono do olhar (MULVEY, 1983, p. 444). O espectador, nesse contexto, é colocado na posição do sujeito controlador masculino através de estratégias de identificação que, segundo Mulvey, se aproxima do estágio do Espelho proposto por Lacan. Ela afirma:

O homem controla a fantasia do cinema e também surge como representante do poder num sentido maior: como o dono do olhar do espectador, ele substitui esse olhar na tela a fim de neutralizar as tendências extra-diegéticas representadas pela mulher enquanto espetáculo. Isto é possível através do processo colocado em movimento pela estruturação do filme em torno de uma figura principal controladora, com a qual o espectador possa se identificar. Na medida em que o espectador se identifica com o principal protagonista masculino, ele projeta seu olhar no do seu semelhante, o seu substituto na tela, de forma que o poder do protagonista masculino, ao controlar os eventos, coincida com o poder ativo do olhar erótico, os dois criando uma sensação satisfatória de onipotência. (MULVEY, 1983, p. 446).

É importante, nesse momento, novamente deixar claro que as reflexões teóricas feitas acerca do aparelho de base, sobretudo no que diz respeito à teoria feminista do cinema, são feitas a partir do cinema dominante narrativo e não necessariamente incluem o documentário em seu campo de estudos. Todavia, a supressão aparente da ideologia presente no dispositivo se tornou comum a todos os gêneros cinematográficos, inclusive ao documentário, que também não escapa de ser uma construção estética e discursiva baseada em certa ideologia. Desse modo, a representação da mulher num filme documental deve ser discutida tendo em vista a enorme esfera de influência do cinema narrativo dominante e admitindo que a representação da mulher, assim como o papel dela na indústria cinematográfica, na maioria das vezes é influenciado pelas expectativas e concepções da sociedade patriarcal na qual vivemos e, portanto, deve ser repensada.

Tendo isso estabelecido, partiremos para uma reflexão sobre o documentário Tarachime, no qual tais relações de produção de sentido e representação são em parte subvertidas, primeiro pela produção de significado e pela condução do olhar do espectador serem feitas por uma cineasta mulher, o que é raro na indústria cinematográfica mesmo nos dias atuais. Segundo, pela ausência de personagens ativos masculinosiii, que boicota a identificação do espectador com o personagem condutor masculino, identificado por ele próprio como seu “semelhante” e desvincula a imagem da mulher da figura do homem, libertando-a da passividade e do papel de mero significante dos desejos masculinos.

Por último, a representação do feminino no filme em questão se diferencia por tratar de questões referentes à mulher – mas que, no cinema clássico, geralmente são associadas às expectativas masculinas – tendo como enunciadoras as próprias mullheres e excluindo o homem das questões que dizem respeito somente a elas. A maternidade e a imagem do corpo da mulher, abordados no cinema dominante com base nas imposições que a sociedade patriarcal exerce sobre as mulheres, são tratados em Tarachime com a naturalidade de quem se reconhece plena enquanto mulher, enquanto sujeito feminino, sem precisar se submeter à figura masculina para existir.

2.1 O corpo na tela

A forma como Tarachime lida com a imagem do corpo prioriza a definição dos personagens como presenças, como recortes corporais, antes mesmo de se constituírem como sujeitos “pensantes”. Filipe Bragança, ao escrever sobre o papel do corpo numa certa vertente do cinema contemporâneo, define como “capacidade cinética” as potencialidades que um corpo exerce em seus próprios limites e no contato com o espaço no qual se insere, estabelecendo um personagem como um “conjunto de partículas de elementos expressivos que o compõe em variações de movimento e repouso” (BRAGANÇA. Acesso em 28 de Jul. de 2014). Assim, a imagem do corpo na tela e sua interação com a câmera ganham novos significados, que se constituem na plasticidade dos fotogramas em movimento e na interação do corpo com a câmera antes mesmo do que na motivação emocional dos personagens.

No documentário aqui analisado, o corpo da avó Uno Kawase é o que ganha mais atenção e tempo de tela, embora o de sua neta Naomi, que filma a si própria, também esteja pontualmente inscrito na tela de forma importante. Uno é uma senhora de idade avançada, cujas marcas do tempo estão inscritas na forma do corpo, nas rugas e manchas em seu rosto, no olhar cansado e caído que olha para a neta pedindo seu perdão. Logo no início do filme, ela toma banho no que aparenta ser uma piscina, completamente nua. Seu corpo é “dividido” pela câmera, que opta por capturar imagens de cada parte separadamente em vez de filmar a sua totalidade. Com resultado, algumas imagens geram estranhamento, parecem não remeter a um corpo humano ou são difíceis de serem identificadas como partes específicas do mesmo. Os planos são longos e contemplativos. Apesar disso, existe ali uma forte ação dramática calcada nos pequenos gestos do corpo, que denunciam o cansaço e o desgaste físico de Uno.

É notável o caráter voyerístico da câmera, que observa os personagens de forma intensa e bastante incisiva, ora parecendo querer invadir suas vidas e mistérios, ora parecendo querer “arranhar” seus corpos, se aproximando tanto deles que torna as imagens indistinguíveis. Conforme indica Laura Mulvey, o voyerismo é uma das bases da geração de prazer que se engendra na estrutura do cinema dominante. Associado à erotização da figura feminina, ele se constitui como desejo escopofílico fetichista, ou seja, como uma vontade de “tomar outras pessoas como objetos, sujeitando-as a um olhar fixo, curioso e controlador” (MULVEY, 1983, p. 441). No caso de Tarachime, o voyerismo se caracteriza pela exploração, pelo avanço sobre os personagens e o desejo nutrido pela câmera de ver absolutamente tudo, mas não por uma relação fetichista, relacionada ao desejo sexual.

As imagens representativas do corpo feminino em Tarachime buscam a relação entre o corpo e os sentimentos de memória, de afetividade – em especial no que se refere à maternidade e à ligação biológica entre os seres –. Daí o corpo envelhecido da avó ser largamente explorado, pela força de sua expressão enquanto vida, mostrada pelo desgaste do tempo, ainda que não seja a imagem do corpo jovem e belo, idealizada pelo sujeito masculino. No cinema dominante, a exploração de um corpo da forma como é feita em Tarachime seria mais facilmente justificada através do uso de um sujeito feminino hiper-sexualizado e fetichizado, representado através de seus atributos físicos desejados no universo masculino, como boca, seios, pernas e outros, sempre de acordo com o estereótipo jovem e sedutor esperado do corpo feminino.

2.2 A mulher e a maternidade

A questão da maternidade é assunto da teoria feminista há tempos e, dentro dela, é analisada de diferentes formas. A professora Lucila Scavone, em seu artigo “A maternidade e o feminismo: diálogos com as ciências sociais” lista as principais interpretações sobre a maternidade dentro dos estudos feministas, desenvolvidas ao longo dos anos. Ela define três momentos principais que apresentam proposições sobre essa questão. O primeiro situa o fenômeno da maternidade como um handcap ou defeito natural e deveria ser recusada. No segundo momento, a maternidade passa a ser vista como empoderamento da mulher por representar uma capacidade de dar vida a outro ser que se aplica somente ao sujeito feminino. Já no terceiro momento, as novas tecnologias de reprodução desvinculam a maternidade da questão biológica e lhe atribuem um significado social (SCAVONE, 2001, p. 141). Ela sintetiza:

Em suma, a definição teórica desses três momentos é reveladora de uma prática social – a maternidade – com todas suas contradições, mudanças e permanências. A recusa ou aceitação da maternidade pode acontecer, ao mesmo tempo, em espaços e posições sociais diferenciadas e não estão, necessariamente, ancoradas na ideia de handcap. Apesar da crítica feminista ter partido da constatação da diferença biológica entre os sexos, considerando-a um defeito, ela acaba mostrando que a dominação de um sexo sobre o outro só pode ser explicada social e não biologicamente. (SCAVONE, 2001, p. 141)

Em Tarachime, a maternidade é abordada na relação entre Naomi e sua avó e mãe de criação e entre Naomi e seu filho recém-nascido. Embora a importância dos laços afetivos esteja presente de maneira intensa, principalmente na relação com a avó, os aspectos biológicos da maternidade se sobressaem no discurso do filme. O seio, tanto de Naomi quanto de Uno, exaustivamente procurado e enquadrado pela câmera, tem importância enquanto fonte de alimento, que dá vida a outro ser humano. Analogamente, o cordão umbilical é evidenciado na hora do parto, quando a ligação entre a mãe e o filho através dele é interrompida num corte busco e definitivo. Em nenhum momento a figura do pai de Mitsuki Kawase é mencionada ou exibida no filme, desde parto até as imagens da convivência do garoto com sua mãe e avó. O avô de Naomi é o único homem mencionado durante o filme, enquanto a avó relembra o passado e lamenta a falta que o companheiro faz e como ele gostaria de ver Naomi naquele momento. Dessa forma, a maternidade se constitui em função apenas da mulher (das mulheres do filme), “fora da significação do falo” (MULVEY, 1983, p. 439).

Observamos, assim, que a concepção do fenômeno da maternidade presente no filme de Kawase se aproxima mais do segundo momento identificado nas reflexões da teoria feminista, que trata da maternidade como um privilégio feminino, e não um defeito. Sobre essa abordagem, conhecida como “feminismo diferencialista”, Scavone afirma:

Do ponto de vista foucaltiano todo saber tem sua gênese em relações de poder, isto significa que, ao resgatar o saber feminino associado à maternidade, esta segunda etapa da reflexão feminista dá visibilidade ao poder que as mulheres exercem na sociedade mediante este fenômeno bio-psíquico-social que é a maternidade. (SCAVONE, 2001, p. 141).

Assim, ser mãe representa, para a mulher, a possibilidade do empoderamento e da desvinculação da figura masculina. A mulher deixa de ser reflexo do homem e de seus desejos e passa a produzir significado, a atuar diretamente num contexto social.

CONCLUSÃO

O documentário autobiográfico Tarachime trata de questões afetivas e dos aspectos biológicos da vida numa esfera macro, buscando associar as questões dadas num microcosmo extremamente pessoal, constituído pela própria diretora Naomi Kawase, por sua avó-mãe Uno Kawase e por seu filho Mitsuki Kawase, a uma discussão mais geral sobre memória e sobre o ciclo da vida, sobre o nascimento e a maternidade e como essas questõa são representadas a partir do corpo humano, um outro microcosmo. Nesse contexto, o papel do registro audiovisual como parte integrada da vida surge no própria forma do documentário, uma vez que esse é formado de imagens caseiras, pessoas e extremamente subjetivas, além de ser centrado na vida da cineasta que o produz, levantando discussões acerca de uma história viva e real.

Tendo isso em mente, fica estabelecido que as temáticas do filme não se desenvolvem a partir de questões ligadas ao âmbito social, e sim a uma esfera pessoal e biológica, por assim dizer. Assim, não podemos colocar o feminismo como um debate presente no discurso do filme, visto que a diferenciação de gêneros e o reconhecimento das desigualdades entre os mesmos só pode se dar na esfera social. É evidente, porém, que Tarachime traz algo de inovador no que diz respeito ao papel da mulher no cinema e ao que ela representa e constrói ao ser projetada na tela. Se afastando das relações de fetichismo e escopofilia projetadas no público, o filme nos mostra uma mulher independente da figura e da presença masculina para significar, que tem consciência de seu próprio corpo e de seu poder na sociedade enquanto sujeito feminino. A maternidade é encarada como um momento belo, no qual a mulher dá vida a outro ser. Essa relação prossegue através da amamentação e da convivência com a criança, persistindo, para sempre, na memória e na ligação afetiva entre a mãe (biológica ou adotiva) e a criança.

O dispositivo do filme auxilia no estabelecimento de uma outra relação do espectador frente ao filme. Uma vez que o aparato cinematográfico está inscrito na forma do filme e explícito para o espectador, o “ilusionismo” criado pelo cinema dominante, que busca esconder o discurso e a técnica por trás do filme e privilegiar a narrativa não opera, dando lugar a uma consciência maior, por parte de quem vê, da construção que é feita antes da projeção do material na tela. Isso, além de levantar uma discussão sobre os elementos “escondidos” do audiovisual, serve para evidenciar que toda a projeção vista pelo espectador é uma construção carregada de ideologia. Dessa forma, o espectador consciente se tornaria mais propenso a refletir sobre a ideologia dominante comum à maior parte do cinema e questionar as formas estéticas e discursivas de representação como o próprio papel da mulher no cinema e a imagem socialmente construída do sujeito feminino que a sétima arte está ajudando a perpetuar ou ressignificando.

O que somos levados a acreditar é que é possível subverter a tradição falocentrista do cinema, reflexo de uma sociedade machista e patriarcal, através da forma como a mulher é representada nos filmes. Assim, não é preciso que uma obra tenha em seu conteúdo o debate feminista ou assuntos caros ao mesmo, nem que se encarregue de ilustrar a trajetória do movimento feminista ou algo do gênero. É importante, primeiramente, que o filme seja autoconsciente sobre a maneira como ele próprio trata e representa o sujeito feminino, dando voz e espaço à mulher independentemente da figura masculina e de suas expectativas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BALDRY, Jean-Louis. Os efeitos ideológicos do aparelho de base. In: XAVIER, Ismail. A Experiência do Cinema. 1° Edição. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983. cap. 3.2.1, p. 383-399.

BRAGANÇA, Felipe. Filmar, hoje, um corpo (em alguns atos). In: Revista Cinética. Disponível em: http://www.revistacinetica.com.br/filmarumcorpo.htm. Acesso em 28 de Jul. de 2014.

FOSTER, Lila. Nascimento\Mãe (Tarachime), de Naomi Kawase (Japão, França, 2006). In: Revista Cinética. 2013. Disponível em: http://www.revistacinetica.com.br/tarachime.htm. Acesso em 25 de Jul. de 2014.

KAWASE, Naomi. Tarachime. 2006. Disponível em: mediafire.com/?pvvr8hb57si7p3h. Acesso em 29 de Jul. de 2014.

METZ, Christian. História\Discurso (Nota sobre dois voyerismos). In: XAVIER, Ismail. A Experiência do Cinema. 1° Edição. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983. cap. 3.3.1, p. 403-410.

MULVEY, Laura. Prazer Visual e Cinema Narrativo. In: XAVIER, Ismail. A Experiência do Cinema. 1° Edição. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983. cap. 3.4.1, p. 437-453.

SCAVONE, Lucila. A maternidade e o feminismo: diálogos com as ciências sociais. 2001. Cadernos Pagu – Núcleo de estudos de gênero, São Paulo, n. 16, p. 137-150, 2001.

XAVIER, Ismail. A Experiência do Cinema. 1° Edição. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983.

I- O seio tem papel crucial na discussão sobre vida e morte proposta pelo filme. É através dele que Uno, vó de Naomi, amamenta sua neta quando passa a cuidar dela e assumir o papel de sua mãe. Uno, assim, proporciona vida à sua neta-filha sem ter lhe dado a luz, por meio de uma ligação afetiva mas também biológica. Posteriormente, é descoberto um tumor no seio de Uno, que ocasiona sua morte. Naomi, na ocasião de sua gravidez, também descobre um nódulo em seu seio, mas esse é diagnosticado como benigno e acaba por não afetar sua saúde.

II- O mais famoso e estudado caso no qual a janela é usada como metáfora para o cinema é Janela Indiscreta (1954, Alfred Hitchcock). Outros cineastas como Chantal Akerman e Michelângelo Antonioni também se utilizaram da analogia em suas obras.

III- O único homem cuja imagem é capturada pela câmera ou a voz é ouvida ao longo do filme é Mitsuki, filho bebê de Naomi Kawase. O avô de Naomi é mencionado algumas vezes por sua avó.

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