A cinematografia e o espírito da floresta

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Dona Odete

Por Rogério Luiz Oliveira

Após os créditos iniciais, ao som da fauna da floresta amazônica paraense, a câmera sobrevoa um braço de rio do vasto sistema fluvial da região. A maneira respeitosa como o drone desvia dos galhos ao sobrevoar o rio margeado pelo verde profundo e florestal é mais do que necessário e bonito, é tocante. Aos poucos, vozes humanas, numa procissão navegante, ecoam e os barcos que as transportam surgem em quadro. As pessoas e os símbolos da fé são reenquadrados de uma maneira hábil numa operação precisa. Antes do primeiro corte de uma montagem destacável, o veículo aéreo não tripulado sairá do labiríntico igarapé para mostrar, do alto, a densidade da floresta amazônica. Preenchido de vegetação verde, o quadro impacta pela grandiosidade da natureza. O afastamento da câmera sugere a pequenez da individualidade humana diante da suntuosidade da flora, mas, ao mesmo tempo, aponta para a beleza da integração entre os diferentes reinos.

O primeiro plano do documentário Amazônia Groove (2019), dirigido por Bruno Murtinho, foi registrado por Júlio César Almeida, operador de drone componente da equipe de cinematografia dirigida por Jacques Cheuiche, ABC. Logo que o filme começou a circular, muitas pessoas interessadas em cinematografia no Brasil repercutiam a engenhosidade desse e de alguns outros planos filmados com drone e utilizados na narrativa. Quando se vê o filme, entende-se.

Do ponto de vista da cinematografia, o tom imagético do primeiro plano do filme é replicado ao longo da montagem. Outros planos registrados em drone voltarão a aparecer sem, contudo, se render ao vazio da utilização excessiva deste recurso, como tem sido possível perceber num processo de que tem sido chamado de “dronificação”. Popularizando-se, cada vez mais, no cinema, na televisão, em medidas de vigilância, no combate à violência ou no mapeamento do agronegócio, parece que o mundo contemporâneo integra esse recurso ao seu repertório visual. Em Amazônia Groove, o convite é feito de uma maneira diferente.

O documentário, a partir do recurso de drone, não observa a destruição ou fiscaliza. Pelo contrário e mais potente que isso, é integrado à paisagem, fazendo disso um apelo natural ao cuidado ambiental. Esse primeiro instrumento destacável da cinematografia do filme coloca a câmera num conjunto visual harmônico que se move no ritmo da fluidez dos rios.

A jornalista Úrsula Vidal, que dá um dos depoimentos ao diretor Bruno Murtinho, chega a dizer que o movimento permanente da água dos rios da região faz com as pessoas do lugar estejam em movimento permanente na vida. E parece ser uma busca da equipe demonstrar essa integração vital e o quanto as paisagens humana e natural estão integradas. A mesma jornalista sublinha como a vivência à beira do rio atravessa o modo de vida das pessoas que ali vivem, de tal modo que a fluidez natural da água que corre é transposto para uma postura rítmica e que transborda em forma de musicalidade no povo paraense. É a respeito disso que trata Amazônia Groove: sobre a maneira como o espírito da floresta invade as formas de expressão humanas por meio da música. Daí porque conhecermos tantos artistas que, dentro de um vasto leque, estão distribuídos em diferentes estilos e perfis: tecnobrega, eletromelody, guitarrada, música popular ou erudita. São várias as entradas de acesso para um conjunto que traduz a riqueza musical da faixa amazônica paraense.

Ao longo da narrativa, a câmera no drone ainda enquadra ou situa as pessoas em meio à variável paisagem que vai da floresta aos rochedos, demonstrando o quão múltiplo é o impacto visual provocado pelo horizonte que se desnuda diante das diferentes câmeras utilizadas nas filmagens do documentário. O impacto causado pela dimensão paisagística nos remete a certa preocupação do cineasta Andrei Tarkovski. Ao refletir sobre o processo criativo em A infância de Ivan (1962), ele avaliara o impacto das escolhas quanto à espacialidade no seu processo fílmico dizendo que “(…) se um autor se deixar comover pela paisagem escolhida, se esta lhe evocar recordações e sugerir associações, ainda que subjetivas, isso, por sua vez, provocará no público uma emoção específica” (TARKOVSKI, 1998, p. 28).

O documentário apresenta escolhas fotográficas que, ao enquadrar essa paisagem amazônica, dá demonstrações do quanto é possível nós, enquanto espectadores, efetivarmos conexões particulares. Não podemos deixar de pensar que a Floresta Amazônica, tão cobiçada pelas intenções individualistas vis e depredadoras, além de abrigar vidas múltiplas e exuberantes, também serve de palco para a manifestação humana no que ela tem de sensível. Por essa razão, não podemos nos ater exclusivamente aos sobrevoos de drone, pois isso reduziria a rica experiência de cinematografia que Amazônia Groove oferece ao posicionar a câmera diante de artistas paraenses que constituem uma rica paisagem humana.

Com a câmera sustentada no chão, a equipe faz um mergulho em sua busca pela fé e ancestralidade que estão envolvidas nessas formas de vida. E segue em sua investigação tentando entender, mais uma vez utilizando palavras de uma das pessoas depoentes, uma bela ideia: “Quantas músicas cabem nesse rio?” É dessa maneira que o recurso de fotografia integra personagens e paisagem. Faz isso quando enquadra o compositor e músico Manoel Cordeiro de cima de um barco em sutil movimento ou mesmo o Mestre Damasceno, um pescador ligado à música como se fosse um canto de trabalho.

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Manoel Cordeiro (compositor e músico paraense)
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Mestre Damasceno (Compositor e pescador paraense)

A forma como o Mestre Damasceno é enquadrado e iluminado sugere o entendimento de que a direção de fotografia do documentário acrescenta os seus elementos criativos a uma paisagem híbrida feita de gente e espaço. Iluminado pelas chamas da fogueira, de um lado, por outro o personagem é tocado por uma luz fria que, por certo, coloca a câmera diante de uma zona de latitude possível à captura impecável do ponto de vista técnico.

Os enquadramentos utilizados por Jacques Cheuiche para entrevistar essas pessoas nos fazem lembrar que foi ele o fotógrafo quem colaborou com Eduardo Coutinho em filmes como Edifício Master (2002), O Fim e o Princípio (2005), Jogo de Cena (2007) e Últimas Conversas (2015). Enquadrar para possibilitar a conversa sem interferir muito a ponto de fazer com que a imagem se sobreponha à voz. Esse é um traço marcante da trajetória de Cheuiche e que notamos na tela quando assistimos os filmes por ele fotografados. Nesse documentário, não é diferente. Um rigor de composição e uma forma sutil de iluminar, com o traço da discrição que projeta quem está diante da sua câmera. Tudo isso sem perder a atenção na espacialidade, em muitos momentos criados pelo toque de luz dado aos diferentes lugares do quadro no qual são colocadas as pessoas entrevistadas. Seja na casa do Mestre Damasceno, seja no Teatro da Paz.

Tal qualidade de cinematografia, no que diz respeito ao critério que rege o enquadramento, é perceptível em outros momentos em que seres humanos e natureza estão em interação. Aqui, a direção de fotografia encontra espaço fértil para criar imagens. É quando o(a)s artistas paraenses estão integrados com a paisagem que se vê um pleno exercício de cinematografia. O que dizer dos sobrevoos de drone que constituem a camada narrativa protagonizada por Albery e Thiago Albuquerque – pai e filho –, que caminham por entre as formações geológicas em busca do som de pássaros, do vento e das águas que eles utilizam como matéria-prima para as suas construções melódicas e harmônicas carregadas de erudição? A forma como a operação de câmera esgota uma decupagem, com planos variáveis, a apresentação da orquestra regida por Thiago Albuquerque, em meio às formações rochosas, simbolizam a maturidade visual de uma equipe sagaz. Essa mesma ocasião oferece a possibilidade de encontrar uma correspondência visual – por meio de imagens dos rochedos feitas do drone –, para a sonoridade criada por pai, filho e natureza.

É o mesmo que se pode apreender do conjunto de planos em que o artista MG Calibre executa uma de suas composições do alto do píer projetado sobre as águas do rio. É também o que marca a sequência de tomadas de apresentação da relação entre Dona Odete – uma artista que tem representado a cultura do Pará com tanta força na música brasileira nos últimos anos –, e a floresta. Materializando imageticamente a ideia de que o povo paraense é “filho do ritmo da água, dessa mãe musical que é a natureza amazônica” – também ditas pela jornalista Úrsula Vidal –, a equipe de fotografia opera uma câmera subjetiva representando um ser que habita as águas e que, pelos versos da cantiga entoada por Dona Odete, poder ser, por exemplo, um boto. Com esse momento da narrativa a direção de fotografia tem o desafio de registrar a ação de uma menina que, materializando as lembranças de criança de Dona Odete, brinca por entre as grandes raízes das árvores. A dificuldade para a fotografia talvez tenha estado justamente nisso, pois o tamanho das raízes implica necessariamente na grande proporção das árvores que geram sombras densas. A relação entre altas e baixas luzes é não apenas contornada, como também cria uma instigante miscelânea de luzes e sombras.

Os elementos da natureza, ao longo do filme, servem como matéria-prima não apenas para a construção de planos, mas para o sentido principal da narrativa. O documentário demonstra, a partir de algumas histórias de artistas paraenses, o quanto a musicalidade, desse território no qual se passa o filme, está extremamente condicionada à espacialidade e tudo o que ela contém. A direção de fotografia, em alguns momentos em estreito diálogo com a direção de arte, tem a tarefa de criar a camada visual que demonstre a qualidade múltipla dessa paisagem. Por essa razão, há um investimento em tomadas como as dos pescadores em suas lidas com suas redes; as embarcações atracadas em áreas portuárias urbanas ou navegando; os planos-detalhe dos produtos do Mercado Ver-o-Peso.

Ainda que contemplemos Amazônia Groove sob a ótica da sua destacável direção de fotografia, não poderemos perder de vista de que se trata de um filme-convite que conclama ao cuidado com as coisas do mundo: seja gente, sejam lugares. Nesse caso, o filme propõe a salvaguarda desse bem precioso que é a cultura de um povo. Ao colocar a câmera diante de variados artistas, o documentário demonstra que o zelo pela Floresta Amazônica gera o esmero que resultará do respeito às manifestações culturais que brotam dos inúmeros recônditos que o planeta tem em sua organização natural. O cuidado, neste caso, implica na percepção das inúmeras vidas que pulsam nesse espaço secular que, a despeito de qualquer desentendimento religioso, é sagrado e inspirador. Tratando da musicalidade do povo paraense, somos levados a concluir que a aproximação de qualquer interesse estrangeiro rende resultados muito mais positivos do que a subtração gananciosa.

As pessoas entrevistadas, ao contemplarem a história colonial, se dão conta de que o mosaico da cultura musical do Pará é formado pelas contribuições dos diferentes povos que ali se somaram às manifestações originais, sejam elas da Europa, do Caribe ou de outras regiões do Brasil. Amazônia Groove dá provas de que qualquer ocupação é muito mais pertinente quando se soma ao que ali já existe e não ao contrário, quando se quer destruir o que há para se impor um novo arranjo cultural por inteiro. É reconfortante ver a direção de fotografia de um filme ir na contramão do uso que comumente se faz de seus recursos criativos, seja o drone ou a luz, e conseguir se integrar a uma dinâmica que precisa de cuidado.

Referências

TARKOVSKI, Andrei. Esculpir o tempo. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

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