Por André Moncaio
“Se você quer um enquadramento ruim,
Automavision é a maneira de consegui-lo”.
Lars von Trier em uma entrevista para o jornal Telegraph, em 2008.
Para estabelecer as bases deste artigo é necessário apresentar os elementos que compõe a chamada “gramática do cinema”, isto é, o que faz o cinema ser cinema. Um filme é realizado partindo de quatro elementos principais: a narrativa, a câmera, o som e a montagem. Tecnicamente, um filme nada mais é do que uma sequência de fotografias estáticas exibidas em um determinada velocidade que por uma falha de percepção do nosso cérebro sugerem o movimento. Se hoje o padrão de captação/exibição do cinema são 24 fotogramas por segundo, o alemão Max Wertheimer descreveu no início século passado que imagens exibidas numa velocidade superior a 12 fotogramas por segundo já são suficientes para criar a ilusão de movimento. Assim, tecnicamente um filme é um teatro fotografado e exibido em movimento. Em termos de linguagem o que faz um filme ser um filme é a montagem, ou seja, a organização da narrativa no tempo. Antes de chegar na etapa de pós-produção o filme é apenas ideia, que começa a ser materializada na filmagem, mas que só se completa efetivamente na sala de montagem.
Neste artigo irei me concentrar nos elementos visuais da narrativa ligados à câmera e ao enquadramento: a posição da câmera; a decupagem; a composição de quadro; a altura da câmera; o ângulo de visão e a perspectiva. Ao longo da história do cinema estas ferramentas de filmagem se estabeleceram de forma que o espectador se concentrasse na narrativa, se envolvendo emocionalmente e ignorando a existência dos aparatos técnicos envolvidos na sua realização. O autor Joseph V. Mascelli, diz: “O posicionamento e o movimento dos atores no Set devem ser planejados para produzir reações favoráveis do público. Visto que ver um filme é uma experiência emocional, a maneira como as cenas são compostas, encenadas, iluminadas, fotografadas e montadas devem motivar a reação do público de acordo com a intenção do roteiro. A atenção do espectador deve estar concentrada no ator, no objeto ou na ação mais significativa naquele momento.” (Mascelli, Joseph V. 1995, p. 194).
Na virada para o século XX, quando a linguagem cinematográfica estava sendo descoberta, cada ação era filmada do início ao fim antes de passar para a próxima cena. O diretor Edwin S. Porter no filme O Grande Roubo do Trem (1903), pela primeira vez cortou a ação antes de ser concluída. Assim o plano substituiu a cena como unidade narrativa. A partir daí, nos anos subsequentes novas técnicas passam a ser utilizadas: diferentes posições de câmera e planos de enquadramento, libertando os cineastas do tableaux; a encenação torna-se mais elaborada aproveitando a perspectiva para desenhar a movimentação dos atores e construção de cada cena passa cada vez mais a ser feita através da montagem. Em 1915, Louis Feuillade, na França e D.W. Griffith, nos Estados Unidos, estavam utilizando em seus filmes uma série de técnicas que seguem até hoje sendo padrões da linguagem cinematográfica. Les Vampires de Feuillade e Intolerância de Griffith já são obras com uma elaboração narrativa e técnica bastante complexa. Peter Ward nomeia este conjunto de ferramentas como “técnicas invisíveis”. O autor coloca que:
“Os conceitos norteadores que conectaram todas estas técnicas de movimentação de câmera e mudança de planos foram a necessidade de convencer o público de que eles estavam assistindo uma ação contínua em tempo real. (…) Muitas práticas do cinema evoluíram da necessidade de costurar vários planos filmados fora de ordem. Uma linha imagética contínua era criada para esconder os métodos da produção cinematográfica e convencer o espectador de que aquela criação feita em várias semanas de filmagem tinha uma realidade crível. Técnicas de câmera e montagem foram criadas para impedir que o espectador tivesse consciência de que estava assistindo uma réplica elaborada da realidade” (Ward, Peter, 2003, p. 20).
Dentre todas estas técnicas e ferramentas as que me interessam aqui são as ligadas ao plano e à composição. Estes são os dois elementos principais do enquadramento com o qual se tem um cuidado enorme na filmagem na busca de criar uma ilusão perfeita para o espectador, de forma que este siga em uma fruição contínua e alienada da realidade até o fim do filme. O plano é a unidade narrativa do cinema. Isto é, um conjunto de planos forma uma cena, que reunidas em sequências constroem a narrativa do filme. Para que o plano sirva à história, como defendia o teórico húngaro Béla Balazs, e contribua para a criação desta ilusão perfeita que deve ser o cinema, ele deve ser enquadrado seguindo algumas regras de composição. Definida como a organização dos elementos (atores, objetos, cenário, etc) dentro do enquadramento, a composição tem seu uso regido por padrões que ditam que “Uma boa composição é a organização dos elementos pictóricos para formar um todo harmonioso e unificado.” (Mascelli, Joseph V., 1995, p. 194).
Para Peter Ward, a composição desempenha um papel central na técnica invisível. Ele diz que a intenção é disfarçar a mecânica da produção e para conseguir isso, cada plano deve considerar algumas regras, tais como: o que motiva o movimento da câmera?; como o tamanho do plano e o ângulo de câmera estão relacionados aos planos anteriores e posteriores?; se o elemento mais importante do quadro é o mais dominante que outros elementos visuais distraem ou competem com ele?; o enquadramento mantém a atenção do público dentro do quadro ou existem indicadores de atividade além do quadro? “O uso de lentes, movimentos de câmera, tamanhos de planos e pontos de corte não podem dispersar-se das práticas estabelecidas antes que as imagens se tornem tão desconexas que não haja comunicação. Este objetivo é às vezes ambicionado e é similar à tentativa do movimento punk de destruir as convenções existentes na música pop. Não-comunicação levada ao extremo pode eventualmente perder a atenção de todos a não ser de uma pequena minoria do seu público.” (Ward, Peter, 2003, p. 25).
Os fundamentos teóricos da análise apresentada neste artigo são a Semiótica do norte-americano Charles S. Peirce, que no século XIX propôs uma lógica expandida, influenciada pela teoria evolutiva de Charles Darwin, questionando a lógica clássica e estudando as leis formais dos signos, e o conceito de Verfremdungseffekt (estranhamento) introduzido pelo dramaturgo e encenador teatral alemão Bertold Brecht, que tinha o objetivo de gerar uma reação crítica à tudo aquilo que fosse familiar e conhecido tanto para o ator quanto para o público.
A Lógica proposta por Peirce está atrelada à fenomenologia, e portanto parte da observação da experiência do homem no mundo para criar uma ciência em constante transformação, consciente da sua incompletude e falibilidade, que se questiona como forma de garantir sua constante evolução em busca do interpretante final [1]. Brecht acreditava na necessidade de provocar um estranhamento no público para mostrar que através de uma ação social consciente é possível transformar o mundo. Se valendo do materialismo dialético, Brecht trouxe o experimentalismo formal como ferramenta alinhada à uma visão política crítica e questionadora das relações sociais baseadas no capital.“O radicalismo formal de Brecht tinha o objetivo de apresentar o mundo de maneira dialética e para isso era necessário questionar a linguagem das mídias para produzir contradições ao invés de oferecer mensagens diretas.” (Koutsourakis, Angelos, 2013, p. 18).
O interessante é que Brecht tem uma visão filosófica bastante semelhante à de Peirce. Enquanto Peirce defende que o lógico deve abordar a mente de forma diferente dos psicólogos, visto que a semiótica é uma ciência do pensamento – a modificação da consciência – e o interesse da lógica peirciana, é o estudo da psiquê humana, isto é, como os processos da mente se desenvolvem através de relações lógicas, em oposição ao estudo da consciência do indivíduo feito pela psicologia, para Brecht, o Gestus social [2] pode oferecer uma simplificação através da exposição de atitudes que minimizam os traços psicológicos. “O Gestus ajuda na representação do indivíduo como produto de forças e leis que não podem ser discernidas na fenomenologia das relações humanas. De acordo com Brecht, uma atuação que utiliza o Gestus está preocupada em mostrar uma ação (“Gestus des Zeigens”), citando-a em vez de imitando-a. Essa atuação ativa as faculdades críticas do público e permite a eles que reflitam sobre as atitudes dos personagens.” (Koutsourakis, Angelos, 2013, p. 160) O gestus para Brecht não busca o estereótipo, mas o reconhecimento de uma condição social e de valores do personagem, as suas “atitudes-padrão, que irão se consagrar como representação de um povo e de uma época.” (Apud PONTY Vanda, GASPAR NETO, 2009, p.7). Da mesma maneira, Peirce pretendia com a Semiótica romper os padrões da ciência alicerçada no Organon de Aristóteles em busca de uma lógica universal com uma metafísica que não fosse mística, mas científica e que desse conta de todas as questões da mente humana.
Uma questão fundamental que não é levada em conta na maioria dos livros sobre linguagem cinematográfica aqui é a ideia do cinema como ferramenta política, que tem o poder de estimular o espectador a olhar e refletir sobre as questões do mundo de forma crítica, e desta maneira construir suas crenças mais livremente, desprendido de hábitos mentais automatizados, podendo assim pensar de maneira independente dos dogmas que lhe são impostos socialmente. O cinema tradicional, produzido seguindo as normas da linguagem cinematográfica cristalizadas ao longo do século XX e que evoluíram do drama aristotélico, sempre apoiado da empatia e da mimesis, é utilizado como uma potente e útil ferramenta para o controle social.
Mas como um filme, que tem a função inocente de contar histórias para entreter o trabalhador nas suas horas de lazer, pode ser uma ferramenta dogmática? Charles S. Peirce defende no artigo A Fixação da Crença que o objeto do raciocínio é descobrir, a partir da consideração daquilo que já sabemos, alguma outra coisa que desconhecemos. Isto é, que o pensamento vive uma contínua busca de novos conhecimentos. Porém também ressalta que “Ser lógico quanto à assuntos práticos é a qualidade mais útil que um animal pode possuir. Mas fora disso é provavelmente mais vantajoso para o animal ter a sua mente cheia com visões agradáveis e encorajadoras, independente da sua verdade. “ (PEIRCE, Charles S, 1877, p. 3). Se nossas crenças guiam os nossos desejos e moldam as nossas ações, a certeza da crença é um estado calmo e satisfatório que desejamos manter e que serve muito bem ao Estado que manipula os desejos da população de acordo com seus interesses comerciais fixando a crença através do método da autoridade, ou seja, impondo doutrinas teológicas e políticas consideradas corretas; evitando que doutrinas contrárias sejam ensinadas, defendidas ou expressas e excluindo ou castigando de maneira exemplar quem tiver crenças proibidas.
Ao produzir filmes que servindo-se das técnicas invisíveis não permitem que o público se dê conta da forma do filme, mergulhando assim o espectador num rio de fruição, absorto da realidade, vivendo os dramas dos personagens e compartilhando emocionalmente suas dificuldades e vitórias, o cinema pode ajudar na manutenção de uma massa de escravos intelectuais ausente de questões iminentes da sua própria realidade como a exploração do seu trabalho pelos detentores dos meios de produção e a necessidade sem sentido de consumir indefinidamente tudo que lhe oferecem.
A questão é que ainda que haja uma série de filmes que tragam e desenvolvam no seu conteúdo temas que visam um olhar mais crítico e consciente do mundo, quando estas obras mantêm a mesma linguagem dos filmes da indústria o seu efeito é muito menor. Os cineastas que conseguem efetivamente impactar o público e provocar uma mudança de perspectiva são aqueles que também quebram as regras da forma, como francês Jean-Luc Godard, o brasileiro Glauber Rocha e o dinamarquês Lars von Trier. Ao fazê-lo, os filmes destes cineastas colocam-nos em um estado de desconforto e insatisfação do qual lutamos para nos libertar e passar novamente ao estado de crença. Deste modo estimulam-nos a agir, a movimentar-nos, saindo da apatia.
Para Lars von Trier, se você faz um filme que é reacionário na sua forma, então o conteúdo é insignificante. “Você não pode ter um conteúdo reformista ou rebelde sem adaptar a forma ao mesmo tempo. Não se pode separar um do outro.” (SCWANDER apud Koutsourakis, Angelos 2013, p. 16). O cineasta sempre se preocupou em trazer e traduzir para a forma (a linguagem e técnica cinematográficas) as questões discutidas no conteúdo de seus filmes (temas, roteiro, personagens). Na introdução do livro “Politcs as Form in Lars von Trier”, Angelos Koutsourakis diz:
“Algo importante que escapa à atenção dos críticos é que as ousadas técnicas de filmagem de von Trier clamam por um retorno à forma, uma vez que reagem contra um gênero muito popular do cinema dinamarquês dos anos 70 e 80, chamado realismo humanista ou social. Cineastas deste período, como Erik Clausen e Kaspar Rostrup, adotaram argumentos narrativos convencionais e sentimentalistas que privilegiavam o conteúdo em detrimento da forma (…) Ao contrário, a prática de von Trier está preocupada em politizar a percepção e atribuir uma participação mais produtiva do público, ao invés de propagar teses bem definidas através de argumentos narrativos canônicos, emotivos e moralistas.”
O cinema de Lars von Trier se alinha com a natureza do Verfremdungseffekt de Brecht, por ter a intenção de confrontar o público estimulando o conflito com os dogmas socialmente impostos. Em uma entrevista após o fim das filmagens de Dogville (2003) Lars von Trier disse “Eu conheci os dramas de Brecht muito jovem e nunca mais voltei à ele ou ao seu trabalho. Eles existem na minha memória principalmente como sentimentos e atmosferas” (apud Björkman Koutsourakis, Angelos 2013, p. 19) Porém, o diretor expande o conceito de Verfremdungseffekt, ao não limitá-lo à atuação, mas aplicando-o à toda a linguagem cinematográfica.
Em O Grande Chefe (2006), o diretor leva ao extremo a sua preocupação com a forma como ferramenta para essa maior participação do público com a obra, expondo aqui o aparato cinematográfico para o espectador. Já no início do filme enquanto aparece seu reflexo atrás da câmera no vidro da fachada da empresa, ele diz em off:
“Este é um filme, e ainda que lhes pareça estranho, tenham paciência, pois todos podem assistí-lo. Mesmo que vocês possam ver o meu reflexo não valerá a pena refletir muito sobre este filme. É uma comédia e portanto é inofensiva. Não há ladainha, nem proselitismo Apenas uma maneira divertida de passar o tempo. Porque não fazer graça com a pretensiosa cultura de afetação da arte? Este filme trata de um ator egocêntrico que, milagrosamente consegue um trabalho. Um trabalho muito especial”.
Neste filme Ravn, é o inseguro diretor de uma empresa dinamarquesa que para evitar conflitos com seus funcionários inventa um superior a quem se reporta e culpa por todas as suas decisões impopulares. No entanto, surge uma oportunidade de negócio com um empresa sueca e os empresários querem conhecer o Grande Chefe. Assim, Ravn, o verdadeiro chefe contrata um ator, para se passar por ele. Tudo começa bem, mas ao longo do filme todo esse teatro vai desmoronando aos poucos, sendo fragmentado cada vez mais a cada cena. Para potencializar a desconstrução da mentira do “Grande Chefe”, o diretor fragmenta a narrativa e para tal desenvolve uma técnica chamada Automavision “com a intenção de limitar a influência humana trazendo o acaso de volta do exílio” (Koutsourakis, Angelos, 2013, p. 160). Não há diretor de fotografia, nem ninguém operando a câmera. Desta maneira, os atores aparecem no enquadramento com uma parte de seus rostos ou de sua cabeça cortados. Em uma entrevista para o jornal The Guardian, von Trier explicou: “Basicamente, eu faço o enquadramento como eu gostaria que ficasse e aperto um botão no computador, então tenho seis ou oito set-ups aleatórios – um pouco mais para cima, ou um movimento, ou se eu devo fazer um zoom. É para criar uma imagem imprecisa”. Com isso, o diretor transgride todas as regras de decupagem e composição do plano cinematográfico que primam pela harmonia, o equilíbrio e a perfeição para sustentar a sensação de continuidade na sua função de condicionar do espectador a se ater apenas à narrativa do filme.
Assim como Brecht, no teatro, e Peirce na ciência, Lars von Trier nega as formas tradicionais da cultura que servem a civilização de consumo estabelecidas de maneira a simplificar o pensamento, excluindo do cidadão comum a possibilidade de refletir sobre o mundo e sobre si mesmo, ficando preso em um círculo vicioso e viciado de ignorância, treinado pelo sistema político-social para ser cordial e intelectualmente anêmico.
Seguindo a tricotomia clássica de Peirce as categorias fenomenológicas dos signos se dividem em: primeiridade, que está na superfície da nossa consciência e tem a qualidade imediata de sentimento; secundidade; que entra no plano da atenção e da existência, nos tirando da primeiridade através do choque e da irritação, e terceiridade, que está no nível do entendimento, da inteligibilidade, e é a capacidade de refletir que a secundidade nos traz a partir do senso comum (ground), que baseado no repertório de experiências que tivemos estabelece as nossas crenças. A questão é que a nossa consciência, que está na terceiridade, ocupa uma pequena parte da nossa experiência no mundo e a crença dogmática nega a evidência da realidade bloqueando a experiência colateral do indivíduo (onde se fundamenta o ground), e subjugando-o a hábitos mentais que não são seus e que o impedem de agir.
Dentro da relação signo-objeto, o segundo correlato dentro da classificação dos signos genuínos de Peirce, o cinema seria um ícone puro, ou seja, atua apenas na primeiridade, sendo apenas superfície por onde deve caminhar o conteúdo, sem levar em consideração a sua forma de realização. Diferente de uma fotografia, que por ser um índice inevitavelmente traz nossa atenção para o fato de ser uma imagem criada por alguém, que tem uma forma concreta e que indica sua existência, seja em papel, seja digital. Um filme, se for produzido seguindo cuidadosamente as já citadas regras de linguagem não permite ao espectador ter consciência dos símbolos que carrega implícitos na narrativa. Porém, as técnicas utilizadas no filme “O Grande Chefe” do mesmo modo que degeneram a forma cinematográfica estabelecida desde o início do século passado, também geram degenerações dos signos. Utilizando um computador para aleatoriamente definir os enquadramentos, tirando do indivíduo-artista-criador o poder de impor suas crenças por meio do controle de decisões técnica e criativas, o filme – dentro da organização plano-montagem na narrativa clássica através da imagem – deixa de ser ícone puro e passa a ser eidosema, o índice icônico, um signo degenerado.
Deste modo, ao quebrar as regras da linguagem clássica traduzindo as questões do conteúdo do filme para a forma e portanto para a estética, Lars von Trier reposiciona os signos na comunicação, ao que parece ser uma ação fundamental para todo cinema que se diga político ou que tenha pretensões que vão além do mero entretenimento. Com isso, o interpretante, o efeito da ação do signo na mente interpretadora, é algo totalmente novo, gerando um choque no espectador. E ainda que esse interpretante possa inicialmente ter um resultado de confusão na mente do público, é quase inevitável que no decorrer do filme se vá conduzindo o espectador a refletir sobre a discussão que o filme levanta na forma de uma comédia de humor-negro: os limites da ética nas relações sociais, exatamente pela forma estar tão perfeitamente, e imperfeitamente, atrelada ao conteúdo.
Na cena em que Kristoffer, o ator que interpreta o “Grande Chefe”, é pressionado a se revelar por sua ex-mulher que trabalha na mesma empresa, o “erros” nos enquadramentos chegam ao extremo e ganham ainda mais relevância. Nesta cena, além dos efeitos gerados pelo Automavision, um composição de quadro que poderia ser considerada amadora, com cabeças cortadas e enquadramentos desequilibrados, somados à uma desarmonia total entre os planos na montagem, há também uma manifesta falta de preocupação com a continuidade de luz e cor de cada plano. A cada corte a imagem tem um ajuste de cor e brilho diferentes, o que nos empurra para a realidade, com um olhar distanciando e nos leva a ter consciência de que estamos vendo um filme. Ferindo assim, as regras básicas da produção de imagem que preservam a sensação de ilusão do filme, produzindo interpretantes já conhecidos confortáveis. A produção de sentido acontece portanto, de uma maneira totalmente inesperada, rompendo com a tradicional relação em que o cinema tem que atuar com um quali-signo, na sua relação com si mesmo, que carrega argumentos, os símbolos que são criados na mente do público-intérprete.
Deste modo, o que o cineasta fala ao público no início do filme “Mesmo que vocês possam ver o meu reflexo não valerá a pena refletir muito sobre este filme.” não é nada mais do que uma ironia que se sustenta muito bem na sua postura sempre contraditória e dialética como artista. Em O Grande Chefe Lars von Trier explicita as camadas de criação de sentido, como uma obra de colagem em papel em processo de feitura, da mesma maneira que Brecht fazia no teatro e que Peirce faz com a Semiótica.
Notas
[1] O interpretante final é uma opinião final, que é um ideal normativo que seria produzido se o signo conseguisse representar um objeto de maneira completa através do método científico, isto é, após serem sido testas todas as hipóteses possíveis por uma comunidade científica envolvida eticamente na busca da verdade. [2] O gestus é um procedimento predominantemente físico do trabalho do intérprete, designando suas atitudes e nuances de expressões faciais e corporais, de palavras e entonações, de ritmo e variações com quebras na fala e nos movimentos. (PONTY, Vanda, 2013).Bibliografia
Koutsourakis, Angelos, Politcs as Form in Lars von Trier – A Post-Brechtian Reading. Bloomsbury Publishing Inc, New York/London, 2013.
MASCELLI, Joseph V., The Five C’s of Cinematography – Motion Picture Filming Techniques. Silman-James Press, Los Angeles, 1995.
PEIRCE, Charles Sanders, The Fixation of Belief. Popular Science Monthly 12, November 1877, pp. 1-15
PONTY Vanda, Conceito de Gestus e técnica de construção. Revista Performatus, Ed. 6, Ano 1, nº 6, Setembro de 2013, https://performatus.net/estudos/gestus/.
WARD, Peter, Picture Composition for Film and Television. Focal Press, Oxford, 2003.
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