A cor do preto e branco

Llano, ABC, escreve sobre a fotografia em preto e branco de “Álbum de Família”
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Por Llano, ABC

Muito tem sido escrito sobre os conceitos de fotografia ou cinematografia em preto e branco. Especialmente o que significa, ou melhor, como é traduzido para o(a) espectador(a). A importância das linhas e composições no plano, bem como a sensação de equilíbrio entre formas, luzes e sombras dentro da pintura.

Da mesma forma, sua abordagem técnica permitiu múltiplos tratados teóricos baseados na obra de grandes mestres e mestras, dos quais surgiram metodologias para alcançar exposições “corretas”, seja pela medição refletida ou incidente da luz, seja pela mistura de ambas.

Mas o que no mundo fotoquímico parecia uma fórmula “simples” na escolha do filme ortocromático, pancromático ou infravermelho e na mistura de alguns filtros na câmera ou no ampliador/copiadora para criar a magia, no mundo digital tornou-se um pouco mais complexo (mas não em sua aparência). Embora também possamos dizer que quando bem planejado, ele abre um mundo de possibilidades completamente diferentes.

Mas dessa vez não me interessa questionar a tecnologia – como o sistema digital monocromático –, mas sim compartilhar os processos criativos que desenvolvemos para rodar o último filme do diretor peruano Joel Calero, “Álbum de Família” (ADF), que acaba de estrear em competição oficial no Festival de Cinema de Lima, no Peru. 

Então, fazer uma reflexão focada na resolução técnica a partir da criação visual.

A primeira luz

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Fotografia instantânea, fuji fp-100 b – circa 2009. Llano, ABC

A partir do incentivo inicial do próprio diretor para investigar as possibilidades narrativas do preto e branco para ADF em 2022, iniciamos nossa jornada criativa com uma série de testes. Primeiro para definir o caminho em relação à densidade e qualidade daquele preto e branco, bem como para definir o suporte em que faríamos a captura. Os objetivos eram obter uma imagem característica que traduzisse a intenção do roteiro, com pretos ricos e profundos e realces com detalhes. O filme era um álbum familiar e, portanto, cada quadro tinha que ser um reflexo dessa memória.

Com esse pano de fundo, cinco meses antes do início da pré-produção, a equipe de câmera realizou um primeiro teste que definiria o caminho da textura e confirmaria o que eu já vinha trabalhando há vários anos: a transformação de um material capturado em cores para um projeto em preto e branco usando o sensor CMOS padrão Bayer.

Até então, havia três condições determinantes a serem consideradas. A primeira, e uma das mais importantes, é que Joel realiza seus projetos pensando principalmente na exibição no cinema, fundamental para a definição de textura e resolução, e que proporciona uma certa liberdade criativa, pois não está sujeita às restrições dos algoritmos de compressão das plataformas de streaming. A segunda, que teríamos uma mala de lentes Zeiss CP.3 XP disponível para filmagem e; a terceira, e não menos importante, é que faríamos a pós-produção em 2.35 – Colômbia, onde, uma semana após o teste, eu me sentaria ao lado de Jose Espinosa para finalizar a cor de outro projeto de Calero (“La Piel Más Temida”), quando poderia administrar o tempo para analisar os resultados desses testes projetados nesse mini cinema.

Até aquele momento, quando as buscas por referências sobre a visualidade do ADF estavam apenas começando, nosso principal objetivo era verificar registros (range dinâmico), texturas e o comportamento de lentes full-frame em dois tipos diferentes de tamanho de sensor (S35 e Full Frame), mas principalmente como cada uma das cenas se sentia.

Após a análise por meio do monitor de ondas, aplicando alguma textura nas cenas escolhidas para cada um dos sensores e simplesmente observando e sentindo, a decisão inclinou-se para o sensor Full Frame, basicamente pela flexibilidade que permitia para o trabalho, mas principalmente porque utilizava toda a gama de cobertura das lentes, o que permitiria um trabalho mais solto, especialmente em ambientes fechados, sem ter que pensar no recorte, especialmente de nossas lentes grande angulares. Ao mesmo tempo, porque entregava uma visualidade mais “clássica”, que geralmente fazia parte da proposta estética do filme.

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Relação de tamanho dos sensores full frame e S35 utilizando uma lente 18 mm Zeiss Cp.3

Sobre cores (ou cinzas)

Desde minhas primeiras experiências no trabalho com filme preto e branco, entendi os múltiplos caminhos que era possível escolher dentro da fotografia em preto e branco, seja filme negativo de várias marcas, até exposições instantâneas, experimentando texturas, contrastes, latitudes e claro em todos eles a transparência da imagem. 

Esse é o grande desafio quando o registro é digital. Encontrar a forma, não imitar o trabalho fotoquímico, mas alcançar certas estéticas que se encaixem nas buscas narrativas, nas referências físicas e, claro, entregar características um pouco mais orgânicas à imagem e, portanto, mais agradáveis aos olhos. Em suma, recriar a partir do próprio imaginário.

Uma das primeiras conversas, depois de entender essa primeira parte da pesquisa, foi com a diretora de arte Blanca Martínez, para discutir a paleta de cores, tanto para os figurinos dos personagens quanto para os ambientes. Algo vantajoso foi que Blanca já havia trabalhado antes em um projeto p/b, então compartilhar a maneira como ela estava pensando em fazer o trabalho de captura foi muito rápido.

Dessa forma, os conceitos que ela estava a trabalhar rapidamente se juntaram ao que eu estava a imaginar e com isso chegamos a uma linguagem comum de forma a construir uma imagem que não pertencesse a uma ou ao outro, mas sim ao projeto.

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Relação de cores e p/b nos estudos para ADF

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Como conceito básico para a abordagem técnica do trabalho em preto e branco no ADF, há o entendimento da captura por meio de três canais: Vermelho (R), Verde (G) e Azul (B), algo como um processo Technicolor de três tiras, mas na direção oposta, na qual a formação do p/b ocorre a partir de 3 fontes idênticas separadas, filtradas pelas três cores básicas do sistema aditivo. Isso não é algo novo nem revolucionário, mas a diferença está em estar ciente do processo para usá-lo de forma eficiente.

A partir daí, a colaboração entre os departamentos de fotografia, arte e pós-produção é essencial. Primeiro, porque a seleção da paleta de cores dos figurinos e cenários é fundamental para conseguir uma boa representação dramática do roteiro e, também, porque essa decisão deve ser sincronizada com as de luzes e configurações de câmera. Tudo isso, para chegar à fase de pós-produção com um objetivo claro e assim alcançar um revelado digital mais preciso e direto.

Com tudo isso, nenhuma decisão é isolada. Com a definição do estilo fotográfico proposto para o projeto, criamos um LUT em conjunto com o TID Juan Moreyra, não apenas como uma visualização no set da proposta de conclusão, mas também como um guia para o departamento de arte em suas opções cromáticas.

É fundamental entender que cada uma das decisões tomadas em relação às densidades em cada um dos canais impactará a percepção final da imagem em p/b, pois afeta proporcionalmente a escala de cinza que está sendo construída ou interpretada. Um bom exemplo disso é como os tons de pele vão reagir a essas alterações e junto com isso o resto da escala, ou também a escolha das cores nos figurinos para criar diferenças entre os(as) personagens, sempre entendendo que certas cores ou tons podem registrar mais ou menos no mesmo nível de cinzas.

A partir disso, foram definidas algumas regras para filmagens, não só no uso de LUTs para ambientes internos e externos, mas principalmente para o uso de fontes de luz. À primeira vista, poderíamos dizer “é preto e branco: não devemos nos preocupar com as temperaturas de cor de nossas lâmpadas”, o que nesta configuração seria um erro grave.

Entendendo que nossa imagem em preto e branco está sendo criada a partir de 3 canais de cores primárias, a temperatura de cor de qualquer fonte que esteja sendo usada influenciará diretamente o registro. Se, por exemplo, tivermos uma luz com temperatura mais alta, será o canal azul que é mais estimulado e, portanto, a faixa de cinzas que ele representa. Ainda mais complexo se pensarmos nos eixos X e Y, aqui os ajustes serão cada vez mais finos.

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Gráfico nodal simplificado do trabalho RGB do colorista Jose Espinosa.

Mas como isso afetou ou como determinou as filmagens de “Álbum de Família”?  Primeiro, na seleção do nosso conjunto de luzes divididas entre LEDs e tungstênio, o primeiro a dar continuidade à luz externa em seu modo daylight e; em seu modo 3200ºK junto com os refletores de tungstênio, para iluminar os rostos dos(as) personagens, bem como para melhorar as entradas de luz.

Qual é a lógica? No caso dos tons de pele, com o fato de todos(as) os(as) personagens terem sido iluminados(as) com luz mais “quente”, o canal vermelho será mais estimulado e, portanto, seria mais fácil separar na pós-produção. Para o desenho da luz exterior, algo muito semelhante, não “precisaríamos” somente de intensidade para conseguir um destaque, desde que a área seria naturalmente marcada por meio de uma informação maior nesse canal.

O resultado: essas “pequenas” diferenças permitiram, por exemplo, resgatar detalhes nas texturas das peles dos(as) personagens, em sua maioria latinos(as)-americanos(as) ou indígenas, bem como em algo que me interessa pessoalmente na criação de imagens: fortalecer a sensação de tridimensionalidade em um espaço bidimensional.

Marcando as cores em "Álbum de Família"

Por Jose Espinosa – colorista - 2.35 / Colômbia

A partir do que foi discutido nos testes de câmera, um passo fundamental para estabelecer um diálogo fluido com o diretor de fotografia, iniciamos o processo de correção de cores explorando a luz e a textura do material. Esse processo posteriormente nos permitiu focar em capturar o momento dramático de cada cena através da densidade dos tons.
Nossa premissa sempre foi identificar os cinzas certos para cada cor, mantendo o preto e branco (com saturação zero) como a fase final da correção de cores. Antes de trabalhar com o lift-gamma-gain, fizemos ajustes no deslocamento vermelho, verde e azul para encontrar a luz certa. Em seguida, com a separação por canais (RGB Splitter) e a classificação em sombras, médios e altas luzes, intensificamos os tons de pele, aumentando a saturação dos tons quentes sugeridos pela luz de tungstênio.

A cor proposta na arte foi usada estrategicamente para ajustar sua intensidade e expandir nossa gama de cinzas. Quando a correção foi concluída, trabalhamos com o grão, selecionando realces baixos e altos para se encontrarem no meio, permitindo-nos controlar os tons médios. Aplicamos o mesmo grão a cada plano, ajustando sua intensidade de acordo com o nível de cinza correspondente. Embora o filme seja em preto e branco, todos os departamentos originalmente o conceberam em cores, e essa foi nossa premissa durante todo o processo.
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Processo de colorização por etapas de “Álbum de Familia”

Observar, observar até ver diferente

A jornada de criação por meio das imagens em movimento é alimentada, principalmente, pela coleta de experiências, em que a troca entre cada um(a) dos(as) membros(as) da equipe de filmagem desencadeia uma série de movimentos criativos que permitem um cinema consciente.

Não é a técnica, mas os pequenos avanços na observação que nos dão a capacidade de construir quadros onde a emoção leva em conta. Trata-se de colocar mais peso em sua história como criador(a) do que nas ferramentas que você usará. Claro, elas podem fazer a diferença nas sutilezas que você espera alcançar tecnicamente, mas não vão dar conteúdo a algo que não o tem.

Da mesma forma, nada desse longo caminho de questionamentos e pesquisa técnica faz sentido se a única coisa perseguida for o aspecto estético. Lembremos que somos contadores(as) de histórias e, portanto, é o aspecto narrativo que tem o maior valor.

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Sabina – Paulina Tacac- numa das cenas de “Álbum de Familia”

Como numa das cenas que mais amo neste filme, na qual Sabina, interpretada pela artesã Paulina Tacac, revela sua história na cozinha de barro de sua casa, tudo está contido lá. A atuação, a arte, o trabalho de toda uma equipe de câmera e fotografia, bem como de cada um(a) que colocou sua energia para encontrar aquele momento.

O quadro tem milhares de leituras. Em cada canto, em cada pedacinho de textura, está a memória contida naquela fotografia do álbum.

O roteiro é o nosso fio condutor. Essa é a essência do projeto. Nós, cinematógrafos(as), nada mais somos do que tradutores(as) visuais das chaves que ali são depositadas. Somos mais um(a) dos(as) acompanhantes(as) desse processo coletivo.

Ficha Técnica:

Direção: Joel Calero
Elenco: Emanuel Soriano, Maria Fernanda Valera, Lucho Cáceres, Natalia Torres, Camila Ferrers, Paulina Tacac
Cinematografia: Llano, ABC
Direção de Arte:  Blanca Martínez, Rafael Polar
Colorista: José Espinosa / 2.35 Digital, Colômbia
D.I.T.: Juan Moreyra
Som Direto:  Omar Pareja
Gaffer: Miguel Angel Rojas
Foquista: Stephanie Altamirano
2da AC:  Grécia Avilés
Vídeo Ass. Jorge Paredes
Montagem: Roberto Benavides

Lentes: Zeiss Cp.3 XD
Câmera: Sony Venice / x-ocn xt (6k) 2.39:1
Sobre o autor

Llano, ABC é um cinematógrafo, diretor e artista visual latino-americano.
Tem formação em Cinema no Chile e nos Estados Unidos, colabora com diversos diretores em projetos de ficção, documentários e videoclipes. Desde 2023 é professor convidado da Cátedra de Cinematografia da Escola Internacional de Cinema e TV (EICTV), Cuba e atualmente pesquisa a experiência física do cinema como material para seu primeiro livro. É o atual secretário geral da Federação Latino-Americana de Autores de Fotografia Cinematográfica, FELAFC

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