Por João Godoy
Este texto apresenta uma sistematização da rotina de trabalho do profissional do som direto e suas implicações com as demais áreas técnicas da realização audiovisual.
Como sabemos, som direto é o som captado e registrado em sincronia com as imagens em uma realização audiovisual. O vínculo da captação simultânea entre som e imagem determina os procedimentos de trabalho empregado pelo profissional do som direto.
A fidelidade na representação dos eventos acústicos é compartilhada por diversas áreas profissionais que lidam com a matéria sonora (indústria fonográfica, produção radiofônica, espetáculos musicais, etc.), e a qualidade do som direto é igualmente orientada por esta premissa. Porém, no trabalho realizado pelo som direto os procedimentos empregados estão condicionados à captação simultânea da imagem que, via de regra, determina que os dispositivos de captação estejam fora de quadro, limitando o posicionamento dos microfones. É com esta premissa que se organiza o método de trabalho do som direto.
Numa realização audiovisual convencional, espera-se que o áudio gravado pelo som direto: a) tenha um registro de voz claramente inteligível; b) ocupe um plano sonoro verossímil à imagem correspondente ou que possa ser manipulado em pós-produção para alcançar esta verossimilhança; c) entre os planos que constituem uma sequência, tenha continuidade de timbre e adequação com o espaço fílmico representado; d) forneça os elementos necessários para a edição de som, com os ambientes próprios das locações, com os planos sonoros de cobertura e com os ruídos de características especiais, difíceis de serem recriados na pós-produção.
Na equipe de realização audiovisual, o técnico de som direto têm a incumbência de determinar os procedimentos que objetivam a obtenção de registros sonoros com características técnicas e estéticas que permitam integrá-los à trilha sonora finalizada. Mesmo com as enormes diferenças orçamentárias existentes entre as produções ao redor do mundo, que acabam determinando estruturas de realização bem distintas, é possível localizar procedimentos recorrentes que formam a base de uma prática de captação de som direto.
1.1 Configuração técnica e constituição da equipe
A realidade orçamentária, o objetivo do projeto audiovisual e as demandas do roteiro condicionam a configuração dos equipamentos e a constituição da equipe responsável pelo registro do som sincrônico. Além desses fatores, o tipo de suporte escolhido para o registro da imagem é também determinante. Quando se trabalha captando a imagem em película usando câmeras cinematográficas, obrigatoriamente o registro sonoro será feito separadamente, em um gravador de som independente, numa configuração denominada de double systemi. Em contraposição, nas produções audiovisuais, em que câmeras de vídeo digital são usadas para registrar a imagem, o som pode ser gravado conjuntamente no mesmo suporte, constituindo o chamado single system(ii).
Nas produções em vídeo digital, a opção por gravar o som e a imagem no mesmo suporte é uma decisão influenciada por questões que dizem respeito a: os custos de produção; a maior ou menor necessidade de independência do técnico de som em relação à câmera; o tempo disponível para a pós-produção; e qualidade técnica desejada. Diferentes configurações técnicas impõem ao profissional do som diferentes condições de trabalho.
Considerando as produções em vídeo digital, a opção por registrar o som em double system significa arcar com custos de locação de um gravador de som, além do custo obrigatório com a câmera de vídeo. Além do custo de locação, o double system acarreta um custo a mais ao processo de realização audiovisual, pois cria a necessidade de sincronizar som e imagem antes de iniciar a edição; em contraposição, no single system som e imagem são fisicamente sincronizados no momento da captação. Nos projetos em que o tempo para a pós-produção é escasso, o carregamento do material na ilha de edição já sincronizado é um argumento fortíssimo em favor do single system.
A realização de matérias jornalísticas para a televisão tem como premissa a configuração single system em função da maior rapidez no processo de finalização. Considerando exclusivamente a qualidade do áudio digital, sabemos que, embora “a taxa de amostragemiii e o bit depthiv sejam similares nas câmeras de vídeo digitais e nos gravadores de som, nestes últimos, por serem destinados exclusivamente ao registro sonoro, contarão com conversores analógico-digital/digital-analógico (AD/DA)v de maior qualidade e outros acessórios que garantem melhores resultados” no registro sonoro digitalizado (SEBA; LOREDO, 2005, p. 64).
Estas configurações técnicas podem ser sistematizadas, das mais simples às mais complexas, do seguinte modo:
• Single system – som e imagem gravados no mesmo suporte.
Microfones conectados diretamente à câmera de vídeo.
Microfones conectados a um mixer portátil que se conecta à câmera de vídeo.
• Double system – som e imagem registrados em suportes independentes.
Microfones conectados a um mixer portátil que se conecta a um gravador digital portátil. Equipamentos presos ao corpo do técnico de som. Alta portabilidade.
Microfones conectados a um mixer ou console de mixagem que se conecta a um gravador digital. Equipamentos instalados em plataforma fixa ou em um carrinho de som. Baixa portabilidade.
A primeira configuração é a mais vantajosa em termos orçamentários, porém limita muito o trabalho do técnico de som direto. O controle de ganho do sinal de áudio fica localizado no corpo da câmera, com difícil acesso para o técnico de som, impedindo correções de volume durante a captação da cena. Nessa configuração não é disponibilizado, para o técnico de som, instrumento de monitoração visual do volume do som captado e a monitoração auditiva é de baixa qualidade e desajeitada, pois é feita por meio de uma longa extensão que conecta o fone de ouvido do técnico de som à saída de fone da câmera. Além dessas restrições, acrescenta-se o fato de que o número de microfones é determinado pela quantidade (geralmente dois) de canais de áudio disponíveis na câmera, e não pelas demandas da cena. Essa configuração é usada apenas em produções de baixíssimo orçamento e sem maiores pretensões em relação ao som.
Um arranjo ainda mais simples que esse pode ser constituído pela fixação de um microfone no corpo da própria câmera, procedimento pouco usual em realizações profissionais.
O segundo arranjo do single system, com a presença de um mixer portátil, proporciona condições mais apropriadas ao trabalho do técnico de som direto. Entre as características básicas, encontradas na maioria dos mixers, podemos citar: os potenciômetros que permitem o ajuste de ganho individual para cada canal, proporcionando o controle dinâmico do volume do áudio captado; os filtros para a atenuação de ruídos indesejados; os VUsvi e/ou os peakmetersvii que possibilitam a monitoração visual do nível do áudio captado; e a saída de fone de ouvido com sinal transparente, volume ajustável e ganho adequado que disponibilizam uma referência auditiva confiável do material captado. Além dessas ferramentas fundamentais para o controle da captação, os mixers portáteis, com grande variedade de modelos, oferecem até seis canais de entrada, possibilitando ao técnico de som o emprego de um maior número de microfones para a execução de estratégias mais complexas de captação. A maioria dos mixers portáteis possui duas saídas principais mixadas (master output), por meio das quais se envia o sinal de áudio para a câmera. A principal limitação dessa configuração é a conexão física, feita por intermédio de cabos, com a câmera de vídeo, situação que restringe o livre deslocamento e obriga o técnico de som a posicionar-se em função das escolhas da câmera. Esse “cordão umbilical” pode tornar-se um estorvo em situações com deslocamento intenso da equipe, como em gravações de rua ou festas populares, comuns nas realizações documentárias que empregam o single system com bastante frequência.
Uma configuração mais sofisticada desse sistema permite que a conexão entre o mixer e a câmera seja estabelecida via rádio, suprimindo o “cordão umbilical” que limita a movimentação da equipe. No entanto, sistemas de radiotransmissão eficientes são onerosos e criam uma exigência desgastante: a contínua monitoração do sistema de transmissão. Considerando que, o funcionamento do sistema de transmissão via rádio é dependente do fornecimento de energia de baterias internas dos transmissores e receptores, e que a interrupção do sinal, pela queda de energia, pode invalidar uma cena, cabe ao técnico de som, além de todas as atividades para a captação do som, dedicar atenção contínua para garantir o funcionamento ininterrupto do sistema de transmissão.
O double system possibilita a independência em relação à câmera e é a configuração técnica mais complexa. A existência de uma plataforma específica para o registro do áudio desfaz o “cordão umbilical” e possibilita o controle total sobre o registro do áudio com as ferramentas adequadas para: a monitoração do registro sonoro, o ajuste do nível do sinal de áudio e a filtragem de ruídos.
Os equipamentos de som na configuração double system podem ser estruturados num arranjo compacto, com os aparelhos presos ao corpo do técnico de som direto, buscando o máximo de portabilidade. Essa conformação é largamente empregada em produções documentárias que normalmente exigem rapidez no deslocamento e uma estrutura enxuta de captação. Normalmente nessas situações, a equipe de som direto é constituída por um único profissional que executa todas as funções exigidas para o registro do som. A Foto 1 ilustra a configuração double system empregada na realização do documentário La terre et la peineviii. Num típico arranjo para a realização documentária, o técnico de som realiza o registro sonoro, ao mesmo tempo em que opera o microfone.
Tecnicamente, essa configuração disponibiliza ao profissional do som as ferramentas adequadas para a realização do trabalho à custa de um enorme esforço físico. Cuidar simultaneamente do registro sonoro e da operação do microfone direcional, carregando uma considerável sobrecarga de peso – que pode chegar facilmente a dez quilos –, exige disposição e resistência física.
A Foto 2 ilustra uma situação relativamente comum na realização documentária, na qual, durante uma tomada, o técnico de som necessita controlar o ganho do microfone. Dessa forma, com uma das mãos o técnico suporta o boom, mantendo o microfone na posição correta para a captação e com a outra faz o ajuste necessário para o controle do nível de gravação.
Na realização de longas-metragens ficcionais é empregada a configuração double system com os equipamentos de som, normalmente, num arranjo de menor portabilidade com o técnico de som direto trabalhando numa situação mais confortável. É comum a disposição dos equipamentos sobre uma plataforma móvel denominada “carrinho de som”, que permite que os componentes (mixer, gravador, microfones) estejam conectados e prontos para uso. O “carrinho de som” possibilita a organização dos equipamentos e acessórios que são utilizados corriqueiramente e permite pequenos deslocamentos, com certa agilidade e pouco esforço, sem a necessidade de desmontar o sistema. Nessas situações, a quantidade de equipamentos alocados é normalmente maior, dependente da demanda e do orçamento da produção. São comumente empregados: amplo conjunto de microfones; mixer de mesa; gravador multipista; monitor de vídeo para referência visual da cena captada; sistema de comunicação com o microfonista; sistema de rádio para transmissão do áudio captado para a direção e continuísta; entre outros. As necessidades de realização determinam o tipo de arranjo técnico empregado, e a organização do sistema é fundamental para a eficiência do trabalho do som direto.
A Foto 3 mostra o técnico de som, durante a tomada de uma cena, com os equipamentos dispostos sobre a plataforma móvel, “carrinho de som”, num típico arranjo utilizado em longas-metragens. A composição da equipe de som direto varia também em função da realidade orçamentária da produção, porém, em geral, integram a equipe, além do técnico de som, ao menos um microfonista e um assistente de som.
O emprego de arranjos de alta portabilidade não é exclusividade de realizações documentárias. Demandas específicas na realização ficcional exigem também esquemas ágeis e compactos, emprega-se o jargão “esquema voador” para designar estas configurações. Nessas situações, o técnico de som é assistido pelos demais componentes da equipe, porém, no momento da captação, opera o equipamento num arranjo semelhante àquele empregado nas realizações documentárias.
Como pode ser visto na Foto 4 e na Foto 5, nas quais foi utilizado o “esquema voador” para ocupar o interior do porta-malas do veículo usado na realização da cena.
A configuração dos equipamentos e as atividades desenvolvidas pelo técnico de som direto devem ser entendidas como rotinas de um método de trabalho que visa adequar-se às condições orçamentárias e à proposta estética da realização. Esse método tem procedimentos comuns que se repetem em realidades de produção muito distintas, formando uma mesma base de trabalho compartilhada pela maioria dos profissionais da área. Porém, esses procedimentos apresentam aspectos particulares, desenvolvidos para solucionar as demandas específicas de cada produção. O trabalho do técnico de som direto na realização de uma produção específica pressupõe opções de estratégia, iniciativa, invenção e arte que se somam a uma base comum, historicamente desenvolvida e reiteradamente aplicada, conformando um método em contínua reconstrução.
Este texto é um excerto da Tese de Doutorado intitulada Procedimentos de trabalho na captação de som direto nos longas-metragens brasileiros Contra todos e Antônia: a técnica e o espaço criativo, o acesso ao texto integral pode ser feito através do link: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27153/tde-02062011-111819/pt-br.php
Confira a segunda parte do artigo.
REFERÊNCIAS
HOLMAN, tomlinson. Sound for film and television. Boston: Focal Press, 2002.
SEBA, Alejandro; LOREDO, Leandro. Sonido directo: algunas consideraciones. In: Kane 02 – ciudad universitaria. Buenos Aires: Imprenta Triñanes, 2005, p. 62-70.
XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. São Paulo: Paz e Terra, 1984.
NOTAS
i. A captação em double system foi uma prática dominante no registro cinematográfico desde o advento da captação óptica em câmera separada da imagem em meados de 1929.
ii. Na prática da realização audiovisual brasileira, o termo é normalmente empregado em inglês.
iii. Taxa de amostragem ou sampling rate é a frequência de amostras do som original, colhidas para serem representadas numericamente. A taxa de amostragem normalmente empregada na captação de som direto é de 48 KHz. Na indústria fonográfica, a taxa de amostragem utilizada na confecção dos compact discs é de 44,1 KHz.
iv. O bit depth é um dos parâmetros que determinam a qualidade do som digital. Bit depth é a magnitude de cada número utilizado para representar o som contido em cada pequena fração de tempo utilizada na amostragem – sampling rate – do sinal sonoro original. Quanto maior o bit depth, maior o intervalo dinâmico alcançado pelo som digital. Atualmente, na captação de som direto são empregadas taxas de 16 ou 24 bits.
v. Conversores AD/DA são microprocessadores que transformam sinais analógicos em sinais digitais e vice-versa. A qualidade do processo de conversão analógico-digital/digital-analógica é determinada pelas características técnicas desses dispositivos.
vi. VU é a abreviatura de Volume Unit, dispositivo padrão usado para medição do nível médio do sinal de áudio. Instalado em diversos equipamentos de som, ele possui tempo de resposta semelhante à audição humana, o que possibilita a avaliação da chamada “sensação de volume de um sinal de áudio”.
vii. Peak Meter é um dispositivo de medição de intensidade sonora que reage instantaneamente aos sinais que transitam no sistema, propiciam a monitoração visual dos curtos transientes elétricos que podem causar distorção do sinal sonoro por excesso de intensidade.
viii. A TERRA . Direção de Frédéric Létang. 1997. 1 filme (90 min): son., color,; 35 mm.
ix. FÉ. Direção de Ricardo Dias. Superfilme: Dist. Riofilme, 1999. (91 min), son., color,; 35 mm.
x. O MENINO da porteira. Direção de Jeremias Moreira Filho. Moracy do Val: Dist. Sony Pictures, 2009. (94 min), son., color,; 35 mm..
xi. NÃO POR ACASO. Direção de Philippe Barcinski. Globo Filmes: Dist. Fox Filmes do Brasil, 2007. (90 min): son., color.; 35 mm.