A valorização de um ofício

Montagem

Por Danielle de Noronha

Para Umberto Martins, ABC, ser montador é mais do que uma profissão, é um ofício. A montagem é uma arte que se renova a cada novo filme. Toda produção audiovisual exige do montador um novo olhar, que conota diferentes práticas e processos singulares para o trabalho. O único ponto que se repete é a experiência, que se acumula, e dá suporte para o profissional se (re)construir. Neste sentido, a montagem é resultado de uma experiência particular.

Segundo o diretor Paulo Caldas (Deserto Feliz, Baile Perfumado), a montagem é uma das etapas fundamentais do processo de produção cinematográfica, pois é o momento que se constrói o filme. “Acho um trabalho incrível de construção da narrativa, construção de personagens, construção da história”, diz o diretor. Essa também é a opinião de Anna Muylaert (É Proibido Fumar, Durval Discos): “Para mim a montagem é o grande momento. Tudo o mais é preparação. A hora de fazer o filme é a hora da montagem. É a hora que mais me divirto e sofro”.

Nesses últimos anos, a montagem cruzou um longo caminho de transição, devido a implementação do sistema digital de edição. Profissionais de todo o mundo passaram por processos parecidos de adaptação às novas ferramentas que começavam a ficar disponíveis no mercado. Segundo Walter Murch (Apocalipse Now, O Poderoso Chefão III), em 1995, 50% dos filmes já eram montados digitalmente. Em 2001, o editor escreveu, numa nova edição do seu livro Num Piscar de Olhos – A edição de filmes sob a ótica de um mestre, que “o ano de 1995 foi divisor de águas para a edição de filmes. Foi o último ano em que o número de filmes montados mecanicamente se igualou ao daqueles editados digitalmente. Em todos os anos subsequentes, a quantidade de filmes editados em sistemas digitais cresceu, enquanto a montagem mecânica foi proporcionalmente diminuindo”.

A montagem digital

A transição da montagem mecânica, que era feita em mesas de montagem (como a Moviola), para o digital iniciou entre o final dos anos 1970 e o início dos anos 1980, mas só começou no Brasil em meados dos anos 1990. A montadora e professora universitária Vânia Debs, ABC (Deserto Feliz, Durval Discos), que já montou cerca de 25 filmes, conta que para os mais velhos a transição foi um pouco mais difícil, porque era necessário entender de tecnologia, que a principio era a plataforma Avid. Porém, hoje ela diz agradecer pela existência da tecnologia digital. “Eu não voltaria mais pra Moviola porque é um processo extremamente trabalhoso, mas por outro lado, quem passou por esse processo tem um olhar de precisão em relação ao momento certo do corte, por exemplo. O processo auxiliou numa série de regrinhas que fomos absorvendo e criando, que hoje ajuda muito”, explica.

Caldas conta que um dos últimos filmes brasileiros montados na Moviola foi Baile Perfurmado e ele acredita que a principal mudança que ocorreu com a entrada do digital foi a velocidade da operação e a dinâmica do trabalho. “Na moviola demorava muito. Agora você pode experimentar mais. Eu sinto que os montadores formados no digital, as vezes, têm o pensamento um pouco diferente daqueles que vieram da Moviola, do ponto de vista que na Moviola tudo era mais lento, mais complicado, então você tinha que pensar antes como pretendia montar. Essa geração nova já experimenta montando”, pontua o diretor.

Para os profissionais que iniciaram com o digital, a montagem se tornou mecanicamente mais fácil, como para Marcelo Pedrazzi (Meteoro, Ensaio sobre Silêncio), montador de 14 filmes: “Praticamente eu já comecei a trabalhar na era digital. Na época aprendi a editar na plataforma Avid e daí para a plataforma Final Cut. Só depois e por curiosidade é que aprendi a usar a Moviola, onde montei um curta e posso te dizer que não é mole”. Porém, para absorver experiência, Pedrazzi iniciou sua carreira como assistente de montagem: “Me valeu muito o tempo que tive como assistente, pois aprendi muita coisa que me ajudou a construir uma base sólida para avaliar cada trabalho agora, em seu formato e forma”.

Umberto Martins (São Silvestre, Noel – Poeta da Vila), montador há mais de 40 anos, que já montou dez longas e milhares de publicidades, além de passar o seu conhecimento para os seus assistentes, se aproveita dessa facilidade que os mais jovens têm de se aproximar da tecnologia para aprender também com eles. “Os jovens me passam a facilidade que eles têm com a tecnologia da informação e eu entro com a minha experiência, que compartilho com eles”, conta o montador.

Ademais de todas as facilidades que a tecnologia digital trouxe para a área da pós-produção, uma das questões mais citadas pelos entrevistados é a “desmistificação do oficio”, como pontuou Martins. “Teve um fenômeno que é um software. Nós trabalhávamos com Avid e as produtoras começaram a impor o Final Cut, que é mais barato. O Avid foi sempre muito caro e, com o fácil acesso ao programa [Final Cut], houve uma desmistificação do oficio. Todo mundo hoje monta. Na fotografia também foi assim. Houve uma abertura”, esclarece o montador. Pedrazzi também pontua que, apesar de atualmente existirem mais cursos para a área, é comum ver pessoas montando, mas sem a experiência de ser assistente, o que ele acredita ser “um pulo de etapa”.

Essa também é a opinião de Vânia, que considera que o fácil acesso existente hoje às tecnologias e às plataformas de edição pode banalizar a profissão. “Hoje, quase todo mundo diz que sabe editar, que sabe montar. Porque sabem operar o programa, as pessoas acreditam que sabem editar, mas não entendem de dramaturgia, não entendem de desempenho de ator. Enfim, de uma série de cuidados e aprofundamentos que você tem que ter nesse processo. Então é comum ver filmes bons, mas maus acabados”, diz a montadora. “Na montagem você precisa entender da área de som, tem que entender de fotografia, tem que entender de roteiro. Então, você tem que ter uma abrangência de conhecimento na área relativamente grande. Na faculdade isso deveria ser ensinado com certa profundidade, embora fazer uma graduação talvez não seja tão importante se a pessoa for disciplinada e procurar aprimorar o próprio olhar assistindo filmes, lendo e fazendo cursos esporádicos, que têm vários. Agora, acompanhar um profissional mais experiente é fundamental. Você aprende muito na prática, porque cada filme é uma experiência diferente”, complementa Vânia.

Uma das qualidades que o diretor Paulo Caldas acredita ser fundamental para um montador é a capacidade de interpretar o material e, desta forma, ter a possibilidade de acrescentar mais para o resultado do filme. “São várias qualidades que o montador tem que ter, mas a qualidade principal dele é a capacidade de ter uma interpretação própria do material. Eu não quero uma pessoa que vá operar a máquina, se não eu não preciso do montador, preciso de um operador de máquina. O montador ele tem que me acrescentar coisas. Ele vê o material, interpreta e acrescenta. Ter uma capacidade de entender a narrativa, além da capacidade técnica, como o conhecimento técnico do corte dentro da sequência”, diz.

O material é rei

A transição para as câmeras digitais também afetou a profissão. Em relação a parte mecânica, a alteração foi mínima. “Bastou aprender que você não digitalizaria mais fitas, e sim “ingestaria” arquivos, e saber que cada câmera tem seu próprio arquivo”, explica Pedrazzi. Mas há outras questões que também influenciaram no trabalho realizado na montagem. “Na estrutura geral de um processo de um filme, a área perdeu um pouco de status para a finalização. Porque como a finalização e a criação de efeitos estão sendo muito valorizadas, as pessoas acabam passando com mais rapidez pela montagem porque têm um processo complexo de finalização depois”, considera Vânia. Porém, Muylaert lembra que “A finalização vem depois e sem uma boa montagem e um bom ritmo narrativo, a finalização não passa de firula”.

Outra questão é o acesso mais fácil às câmeras digitais, que traz como um dos aspectos positivos mais democratização para o cinema. Contudo, Vânia acredita que as pessoas chegam na filmagem muito despreparadas: “Hoje em dia, muito diretor chega no set, coloca duas câmeras, filma de todos os lados e acha que está se garantindo para a montagem. Depois, o montador tem que lidar com um número imenso de material e tem que criar uma estratégia para selecionar esse grande volume, que muitas vezes não garante a estrutura de uma sequência de forma eficiente. Filmou muito, mas sem planejamento”. Caldas concorda: “A captação em digital permite que você não tenha limites econômicos tão estabelecidos como acontecia na película, o que também atrapalha o processo da montagem porque as pessoas filmam demais e acaba que o montador não tem tempo nem de filtrar onde está o melhor material. Eu tenho procurado estabelecer parâmetros para que isso seja favorável na montagem. Isso tende a alcançar o equilíbrio com o tempo. Outra discussão é sobre o armazenamento dos arquivos digitais, onde vai armazenar esse material. Muita coisa vai sendo jogada fora. Todas as pessoas que trabalham no meio precisam discutir isso ainda mais”.

Umberto faz coro: “Muito material é filmado. Devia ter mais dinheiro e mais tempo pra montar. Acontece com filmes publicitários com frequência. Pode rodar em digital, mas não pode perder os critérios que eram usados na película. Mas acho que é só uma fase, daqui a pouco vão começar a seguir alguns critérios”. E para Umberto, para resolver essas questões, é preciso não esquecer uma das premissas principais do cinema: “O material é rei”.

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