Como medir a luz

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Por Edgar Moura

Trecho do livro “50 Anos Luz” de Edgar Moura

O fotômetro de luz incidente nos serve, como serve, a um cego, o seu cão. O “spotmeter é a mesma coisa, fosse esse cão um poeta. O cão não nos deixará ser atropelado e nos levará, mais ou menos, por um caminho. Seguro. O poeta nos falará do belo dia que faz lá fora. Cabe a nós sabermos interpretá-lo. Cão ou poeta, nenhum dos dois valeria nada se comparado aos nossos belos olhos.

Mas a fotografia ainda não é vídeo. Por enquanto, enquanto a imagem for química, será sempre a eterna e delicada alma da fotografia, a “câmera escura”. Aqui dentro vale tudo, arte e ciência… terror e êxtase. Os métodos que existem para expor um filme fotográfico são o que são, métodos… para nos guiar na noite escura.

Existem tantos métodos para se medir a luz quanto existem fotógrafos. O do Ricardo Aronovich, que usa fotômetros tipo “spot”, pode ser conhecido no seu livro “Exponer una Historia” (Editorial Celtia/Gedisa. Buenos Aires) e está discutido no capítulo que se segue (“El Libro de Ricardo”). O método do Ansel Adams, muito próximo ao do Aronovich, está no “Artificial-Light Photography” (New York Graphic Society. Boston) e, já foi tão divulgado e discutido que posso fugir dele aqui.

De qualquer jeito, este método, baseado no “sistema de zonas”, é muito difícil de ser adaptado para a fotografia de cinema porque ajusta a revelação do negativo ao contraste do assunto fotografado. Isto é viável em fotografia “still”, mas praticamente impossível de ser feito na fotografia a cores do cinema, onde existem milhares de imagens diferentes e uma única revelação “padrão”. Nestor Almendros, cujo método está descrito no seu livro, “Días de una Cámera”, usa fotômetros de luz refletida não “spot”, e está sucintamente explicado no capítulo “Como Medir a Luz, Hoje em Dia”, logo a seguir.

O do Ghislain Cloquet, que é o método baseado no “teste de key light”, usa fotômetros de luz incidente e já foi descrito no capítulo com este nome em algum lugar aí atrás. Enfim, todos os métodos “valem a pena, se a alma não for pequena”… e se não nos falharem, é claro.

Pela mesma razão que não se ilumina o que não está em quadro… também pouco importa a quantidade de luz que chega até ao assunto. Importa é a quantidade de luz que chega… até ao filme.

Julio Cortázar tem um livro chamado o “Libro de Manuel”. É a história de um casal de guerrilheiros urbanos de esquerda (anos 1970, é claro) que decidem fazer um álbum de recortes para o filho recém-nascido. Dessa maneira recortariam todas as notícias de jornal que achassem importantes e colariam no tal livro de Manuel. Assim, o pequeno Manuel poderia, quando crescesse, entender a época em que nasceu.

Poderia também conhecer o mundo em que viveram seus pais, que não acreditavam que sobreviveriam o tempo suficiente para contar a história. Além de ser profético em vários aspectos (extermínio dos guerrilheiros de esquerda e da própria idéia de esquerda revolucionária), o livro pode nos ajudar a entender uma outra história – a história do “libro de Ricardo”.

O livro de Ricardo Aronovich – “Exponer una História” – é um “Libro de Manuel” ao contrário. Ao invés de falar de uma série de fatos antigos que são preservados em forma de livro para não virarem mitos, o “libro de Ricardo” é uma série de mitos antigos que são elucidados através de um livro.

Todos esses mitos e histórias fizeram parte da formação dos diretores de fotografia brasileiros de hoje em dia. Durante anos, os fotógrafos que não conheceram Ricardo Aronovich pessoalmente, ouviram contar estas histórias, que, contadas por gente que “ouviu contar que”, nunca contavam direito o que tinha acontecido. Assim, divulgavam os fatos de maneira mitificada.

Por outro lado outros, que mal entenderam o que viram, para não passarem por ignorantes, fantasiaram as histórias. Por isso, esses mitos, como todos os outros mitos, são resultado da falta de fidelidade aos fatos e de uma certa preguiça intelectual. Como Aronovich, hoje em dia, vive e trabalha fora do Brasil, nossa falta de acesso aos fatos só pode ser contornada por uma certa falta de preguiça intelectual.

Ou, para não complicar mais, uma coisa que já não está ficando muito clara, digamos que, em vez de ouvirem as histórias sobre o Ricardo Aronovich, leiam o livro do Ricardo Aronovich. Talvez não seja um livro para iniciantes. Talvez, por ser sucinto e seco, funcione mais como uma “master class” do que como um livro para a iniciação à fotografia de cinema.

Talvez, por cunhar termos (“áreas lúmicas”) que não existem em português, facilite a mitificação e, sobretudo, talvez por dar muita ênfase à medição da luz, não pareça dar igual importância às suas outras componentes. Mas nada disso justifica os mitos criados em torno deles. Livro e autor. Esse mitos são os seguintes: primeiro, o mito mais difundido:

Ouvíamos que “fora do rigor não há salvação”. A falta de rigor era uma espécie de Bicho-Papão que aterrorizava, por um lado, os “fotografinhos” na hora de dormir e, por outro lado, o excesso de rigor assustava os produtores na hora de filmar.

Estas histórias são aquelas em que vemos Aronovich verificando as temperaturas de cor das foto-floods, uma por uma, e quebrando, qual cossaco de filme americano quebra seus copos de vodka vazios, aquelas que estavam “velhas”. Só o fato de se usar foto-floods já parece, para a gente, hoje em dia, uma coisa do outro mundo. Já a necessidade de rigor, não; continua a mesma. A dele e a nossa.

O segundo mito era aquele onde se rezava que, “só o uso do ëspotmeterí garante o bom sono do fotógrafo”. Quer dizer, além do Bicho-Papão, tinha também a Cuca para aterrorizar o sono das criancinhas.

E, finalmente, “tínhamos medo de chegar em casa e encontrar o Ricardón”; era o mito de que “só existe uma única exposição correta”. Por isso, dever-se-ia comprimir os contrastes por um lado e expandir as latitudes pelo outro, até conseguir enfiar o mundo inteiro dentro do filme.

Ao lermos o livro, damo-nos conta que não é bem assim. Na realidade, a tese central do livro do Ricardo sintetiza estes três mitos, ou seja: “Só o uso do ëspotmeterí permite o rigor necessário para se chegar à exposição correta”. Não há o que se contestar nisso. É verdade que “pouco importa a quantidade de luz que chega até ao assunto, o que importa é a quantidade de luz que chega até ao filme” e, só o “spotmeter” é capaz de medir a luz que chega até o filme.

Só o fotômetro “spotmeter” mede a luz refletida pelos objetos. O que se pode contestar é a ênfase que Aronovich dá a esta tese no livro. As idéias em que se baseia esta tese se diluem, tanto no dia a dia dos fotógrafos, quanto no próprio livro. Fotógrafos não ficam medindo e remedindo a luz refletida por cada objeto que está em cena. Medem áreas específicas para saber qual a quantidade de luz que está sendo refletida.

Controlam, por exemplo, a relação de contraste no rosto da atriz; medem uma parede lá atrás dela, regulam uma janela que não deve “estourar” e… filmam. Quanto à diluição da tese, dentro do próprio livro, pode-se constatar isto nestas outras frases, que também fazem parte do livro e que são baseadas em outras idéias.

Quanto ao uso “spotmeter”, garantir o bom sono dos fotógrafos, libertando-os do terror do “!?Qué veremos mañana?!” ou “!?Habrá algo en el negativo?!”, Aronovich lembra que sempre será preciso “ter coragem para decidir onde colocar a exposição” e que “este sistema não fará com que todos sejam diretores de fotografia geniais”. Também é bom lembrar que a “exposição correta” nunca foi um problema para os diretores de fotografia de televisão e, nem por isso, garantiu o emprego de ninguém.

Quanto a existir “una única manera de exponer y sólo una”, “isto não quer dizer que, (depois) de marcada, no fotômetro, uma latitude de 1:64 (seis “stops”), estejamos obrigados a colocar tudo dentro desta latitude de exposição”. Ou seja, sempre haverá nuvens brancas e gatos pretos. Substituir as nuvens brancas por nuvens de tempestade e gatos pretos por gatos cinzas para, desta maneira, enfiar tudo dentro da latitude de pose do filme não me parece uma maneira muito prática de se fotografar; nem isso nunca foi proposto por Aronovich.

Quanto ao fato de “só interessar, ao fotógrafo, a luz refletida nos objetos, e não a sua fonte”, pode-se, no entanto, ler, na página 57 que: “uma fonte (de luz), colocada a (uma certa) distância, permite que os objetos que estão iluminados por ela fiquem em um tom 4”. Essa frase, que extraída assim do contexto parece de um esoterismo total, quer apenas dizer que: “Com esta luz, a esta distância, os objetos ficarão mais ou menos escuros”.

Isso, se você prestar bem atenção, contradiz a proposta inicial de onisciência do “spotmeter” contra “o fotômetro de luz incidente (que) não diria nada da luz que o assunto reflete para a câmera”. Enfim, é razoável admitir que os diferentes fotômetros servem para o que foram fabricados. O de luz incidente serve para uma primeira regulagem da luz (incidente). O de luz refletida, o “spotmeter”, serve para fazer a sintonia fina.

Calma! Não estou querendo achar contradições no livro de ninguém nem destruir nenhuma tese. Só quero lembrar que os slogans e os livros também têm serventias diferentes. Os primeiros servem para atiçar a curiosidade das pessoas e levá-las a interessar-se por um assunto; enquanto os últimos, ao contrário, quando lidos e analisados por inteiro, são mais complexos e flexíveis.

Tanto o livro do Ricardo quanto este aqui. O mais estranho ao lermos os livros de outros fotógrafos, porém, é nos darmos conta de que a gente não tem a menor idéia de como os outros trabalham. Fotógrafos trabalham sozinhos. Depois de um período de aprendizagem, inventam suas próprias soluções para os problemas concretos e nunca mais saberão, direito, como os outros fazem o que fazem.

Quando lêem o livro de um outro fotógrafo, ficam perplexos: “Quer dizer que é assim que ele faz. Mas isso não dá certo! Eu já tentei.”. Aí se lembram do mais importante: as imagens que já viram dele. Aquelas fotografias que ele fez nos filmes que fez. Aí, o livro, os conceitos, as teses e as teorias desaparecem e dão lugar à única coisa que, realmente, conta na direção de fotografia: as imagens na tela. No lugar do “palavras, palavras, palavras” – imagens. Por isso não vou me alongar mais na crítica do “libro de Ricardo”. Leiam o livro e vejam os filmes. Dele.

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