Janelas, a Lei do Quadrado da Distância, Vermeer e outras observações

Life Vermeer Rijksmuseum 768X512 1

Por Carlos Ebert

“A intensidade da luz sobre determinada área é inversamente proporcional ao quadrado da distância da fonte da luz.”

Essa é uma lei importante para fotógrafos. Quando se lida com o sol, é fácil: na distância em que ele está, sua intensidade não varia se nos aproximarmos ou afastarmos alguns metros dele. Mas se você está simulando o sol com o auxílio de um refletor, a coisa complica um pouco.

Vejamos um exemplo: Se com um refletor de 2Kw a 3 metros v. obtêm um iluminamento de 10800 lux, a 4 metros você vai ter 6100 , a 6 metros 2700 e a 10 metros apenas 970 lux. Problema…

Estas observações têm como ponto de partida o filme “Uma Vida em Segredo”, dirigido por Suzana Amaral, fotografado por Lauro Escorel, ABC e com direção de arte de Adrian Cooper,

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No filme, a casa onde a personagem principal, Biela, passa a viver após ficar orfã, é uma personagem tão importante no filme quanto aquela representada pela atriz Sabrina Greve. Situada no centro de uma pequena cidade, ela existe como um mundo paralelo em oposição ao seu mundo de origem – o “fundão”- o espaço aberto da fazenda onde vivia.

Nesse novo mundo, a casa de seus primos, as janelas são interfaces. É por elas que esse mundo fechado e convencional se comunica com o exterior urbano que ela irá explorar timidamente. Da exuberância de seu mundo anterior restará apenas o som monótono de um monjolo batendo. Lauro explora até as últimas conseqüências os fundamentos desta interface. Regula com método e rigor as luzes que por elas entram, desvelando o que se passa no interior da casa e dos personagens.

A janela aberta é a fonte de luz natural por excelência. Sugerir, recriar e reproduzir fotográficamente esta luz pode parecer fácil, mas não é. A lei do quadrado da distância esta sempre lá, cobrando atenção. O problema é velho e antecede em muito a fotografia.

O pintor flamengo Vermeer (1632-75), em toda sua vida pintou por volta de 30 quadros apenas. São em sua maioria mulheres, em diversas situações, frente à uma janela invariavelmente situada à esquerda de quadro. As pinturas reproduzem maravilhosamente luminosos tons de azul e amarelo, brilhos intensos e sutis gradações nas luzes refletidas, além de uma perspectiva impressionantemente exata para o padrão da época.

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Recentemente, alguns estudiosos, entre eles Philip Steadman e David Hockney , observaram que Vermeer deixou em suas obras, sinais bem evidentes de ter se utilizado de uma camara escura para captar as cenas que depois trabalhou com tintas e pincéis. Bem antes disso em 1891, o gravador norte americano James Pennell já havia notado a presença de “uma perspectiva fotográfica” no quadro “O Soldado e a Garota Sorrindo”, onde a figura do soldado em primeiro plano é desproporcionalmente maior do que o esperado, mostrando um tipo de aberração óptica típica de uma lente grande angular.

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Neste outro quadro “A moça de Chapéu Vermelho”, o tratamento dado às altas luzes nas superfícies brilhantes mostram pequenos círculos brancos, exatamente iguais aos círculos de confusão que pontos de luz intensa e ligeiramente desfocados, produzem numa fotografia. Notadamente no brinco e no entalhe do braço da cadeira, nota-se um desfocado típico de objetiva fotográfica.

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O fato de Vermeer ser conterrâneo e contemporâneo de Anton van Leeuwenhoek, o inventor do microscópio, e da Delft de então ser quase uma aldeia, induz-nos a especular se as lentes usadas por Vermeer em sua camera escura não teriam sido fornecidas por Leeuwenhoek…

Lawrence Gowing num livro de 1952 , observou com muita perspicácia que Vermeer parecia transpor as cores, luzes e sombras diretamente para o quadro, sem se apoiar num traçado de contorno feito anteriormente sobre a tela.

“Uma Vida em Segredo” me lembrou imediatamente “La Dentellière” 1977, filme dirigido por Claude Goretta e fotografado por Jean Boffety, onde a extrema timidez da personagem central ( interpretada por Isabelle Huppert), tinha como referência iconográfica o quadro de Vermeer de mesmo nome (“A Rendeira”). No filme a expressão final da personagem, introvertida e irremediavelmente fechada sobre si mesma, era comentada em off enquanto se fundia com a pintura.

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No caso de “Uma Vida em Segredo” a imagem do cartaz exibe igualmente a mesma luz modulada pela janela dos quadros de Vermeer, com a personagem olhando para fora e buscando escapar para o exterior.

“Luz, mais luz ” teriam sido as palavras finais de Goethe em seu leito de morte, pedindo para que abrissem as janelas do quarto. Nossos olhos, também janelas (como atesta o “Janela da Alma” de João Jardim e Walter Carvalho), buscam sempre mais luz.

Voltando à questão da simulação da luz originaria de uma janela: Se a condição no exterior é de sombra ou tempo nublado, a fonte artificial colocada na direção da janela será ampla e difusa, quase não criando sombras no interior. Se lá fora brilha o sol, o facho do refletor pode irromper direto através da janela e projetar sombras definidas na parede oposta.

Em “Uma Vida em Segredo”, verifica-se mais a primeira opção. Mesmo nas poucas ocasiões em que ela incide diretamente, é trabalhada por difusão, e não chega a atingir diretamente os personagens. Em determinados momentos as janelas permanecem apenas entreabertas, acentuando ainda mais um clima denso.

A luminosidade das imagens no interior da casa percorre um trajeto que vai da treva, à luz radiante da cena do vestido de noiva, para depois voltar progressivamente à penumbra. Exatamente como o animo da personagem que esmorece após ser preterida pelo noivo de ocasião.

Cromáticamente, ambiente interior da casa é dominado por um tom sutil de magenta que vem das paredes. Não por acaso, a cor complementar que se opõem aos verdes da fazenda que ficou para trás.

Com uma luz difusa mas sempre direcionada, o colorido do ambiente se esbate suavemente, até alcançar tons profundos nas sombras e no mobiliário. Essa escala, rica em gradações, é quase sempre realçada pela presença simultânea no quadro de uma área bem clara e outra bem escura. Minimalista, a paleta de cores acompanha o rigor da narrativa extraindo sua expressividade de uma funcionalidade quase natural, sem afetações ou modismos. Daí talvez a evocação de Vermeer em minha memória…

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No decorrer da narrativa, a personagem cada vez mais deslocada nas dependências “sociais” da casa, muda-se para um quarto de despejo fora. Ai, as imagens tornam-se mais sombrias. Menos luz ingressa do exterior. Em alguns momentos cruciais, como na cena da das moedas sobre a cama, a intervenção de uma luz zenital, nada naturalista mas perfeitamente justificada, sublinha as intenções sem contudo torná-las óbvias.

Recentemente, durante um debate realizado após a Sessão ABC de São Paulo, em que Walter Carvalho, ABC debateu a cinematografia de “Abril Despedaçado”, o diretor de arte Cassio Amarante reconsiderou algumas observações feitas por ele no passado sobre a impertinência de se discutir referências pictóricas à imagem cinematográfica. Fiquei agradavelmente surpreso pois acredito ser essa aproximação fundamental.

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A história da representação gráfica e pictórica tem milhares de anos, e a não ser que queiramos ficar reinventando tudo a todo instante, é nosso dever estuda-la e extrair de seus nexos tudo aquilo que possa ser pertinente esclarecedor e expressivo para a cinematografia.

Se a arte de Vermeer e a Lei do inverso do quadrado da distância podem de alguma maneira ajudar a expressão visual e a narrativa de um filme passado no sertão de Goiás, ótimo. Vamos a elas.

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