Sobre o olhar feminino na Direção de Arte

Maíra Carvalho escreve sobre os olhares possíveis na direção de arte
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Brainwashed Sex Camera Power (Nina Menkes, 2022)

Por Maíra Carvalho

Há 40 anos, nós éramos pouquíssimas mulheres nas equipes do cinema Brasileiro. Hoje, na Arte, somos um pouco mais da metade e somos o departamento mais feminino do audiovisual brasileiro. Entretanto, os desafios ainda são muitos.

Neste ensaio, sobre o olhar feminino[1] na Direção de Arte[2], escrevo sobre o OLHAR, ou melhor, sobre OLHARES possíveis.

Estamos falando de direção de arte, que é responsável por criar UNIVERSOS, imagens e imaginários e que está em constante diálogo e troca com a direção e a direção de fotografia nessas criações. Essas últimas duas, em geral, são áreas majoritariamente masculinas. Segundo dados recentes da Ancine, são somente cerca de 24% de mulheres na direção, 14% na fotografia e 50% na arte[3].

Nessa criação coletiva, quanto do nosso olhar de mulheres chega às telas?

E qual a importância da multiplicidade de olhares no cinema, no audiovisual, nas artes e na vida em geral?

Quando falamos das desigualdades entre a visibilidade de homens e mulheres na cinematografia e analisamos os dados[4], vemos o reflexo da exclusão de inúmeras visões de mundo. Vemos a invisibilização de olhares.

E que olhares são estes colocados à margem?

É muito comum falarem em um “olhar feminino”? Será que existe mesmo esse olhar? Ou será que o termo correto seriam “olhares femininos” ou “olhares de mulheres”?

Pensar em UM OLHAR FEMININO, a meu ver, é uma visão sexista e essencialista ultrapassada e superada pelo feminismo.

Existem olhares femininos violentos, agressivos e pesados, assim como existem olhares masculinos sensíveis, doces e suaves. O feminino ou o masculino dizem respeito ao gênero de quem observar, mas, para mim, não é característico de uma forma de olhar ou se portar no mundo e de criar.

A quem interessa estigmatizar e nos convencer de que cada gênero, cada raça, cada geração só é capaz de um olhar?

É claro que nossa formação cultural ocidental patriarcal nos molda a partir de preceitos que formam nossas personalidades, mas elas não podem nos limitar. Não em 2024!

Eu me sinto tão capaz de fazer um filme sobre um garimpo quanto um filme sobre uma professora de balé, sobre uma antropóloga que ama futebol ou um mafioso que adora perfumes, sobre um cineasta russo nos anos 1920 ou uma menina Kayapó que sonha em ser astronauta, sobre um mundo distópico povoado por bovinos e máquinas…

Enfim, faz parte do nosso trabalho mergulhar em universos distintos ao nosso, pesquisar para chegar no que precisamos de conteúdo e informação para criar. Isso não é limitador. Somos investigadoras do mundo. No nosso processo de pesquisa, acolhemos outros olhares, incluímos a diversidade. Pois, no tripé criativo que se forma entre direção, fotografia e arte, somos a equipe que mais se abre ao mundo. Nesse sentido, termos, por exemplo, os Kayapós fazendo parte da criação sobre sua realidade é sempre mais enriquecedor para o processo e para a obra em si.

Que fique claro que eu não estou querendo dizer que não há diferença entre os olhares de homens e mulheres, claro que há. Nossa perspectiva foi forjada ao longo de nossa história e isso deixa marcas no nosso corpo, na nossa forma de nos portar no mundo e de vê-lo. Mas, isso não é definidor, pois somos indivíduos únicos e multifacetados. Por isso tamanha importância, por esse caráter próprio e único.

Quanta riqueza há em um olhar de uma diretora de arte, de uma figurinista, de uma maquiadora?

O quão raro é termos chefes de equipes negras, indígenas e transgêneros no cinema brasileiro e diria no mundo? Quantos olhares nós perdemos com essa invisibilização?

Tem um livro que eu adoro, da bell hooks, que muda a nossa visão de mundo como um todo. Ela trata sobre isso, se chama “Olhares Negros”. hooks analisa as narrativas culturais e discute formas alternativas de se observar a negritude e também a branquitude. Porque se a pessoa branca se sente à vontade de falar sobre a negritude, a pessoa negra também deve se sentir para falar da branquitude. E o mesmo em relação a homens e mulheres.

Há quantos séculos somos vistas a partir do ponto de vista masculino? Nas artes visuais em geral, na literatura, nas ciências etc.?

Será por isso que o corpo feminino é tão objetificado? Por que somos tão sexualizadas?

Por que o corpo feminino nu, assim como o corpo negro e indígena nu, é banalizado nas telas enquanto o corpo do homem branco é poupado e está sempre no lugar de consumidor enquanto somos consumidas?

Em 1975, Laura Mulvey escreveu o texto germinal para os estudos feministas no cinema “Prazer visual e Cinema Narrativo”[5], que discute a relação entre a imagem e o olhar predominante no cinema narrativo clássico. Nina Menkes, em 2022, lançou o documentário “Brainwashed Sex Camera Power”[6]. No longa, a diretora estadunidense literalmente desenha para analisar detalhadamente como os cineastas homens, e algumas mulheres, objetificam a figura feminina, causando danos irreparáveis à psique e até mesmo estimulando diferentes tipos de abusos fora das telas. É estarrecedor constatar que quase 50 anos após a publicação de Mulvey, o cinema segue sendo majoritariamente machista e misógino.

Até quando homens brancos cis serão majoritariamente os narradores das histórias de mulheres, lgtqiapn+, indígenas, negros? Quando as mulheres deixam de ser objeto e passam a ser sujeito?

Deixam de ser desejadas e passam a ser desejantes?

Até quando a carne mais barata do mercado será a carne negra, a indígena, a feminina?

A meu ver isso só acontecerá quando tivermos mais mulheres, mais negras, mais indígenas e seus olhares no fazer cinematográfico, nos postos de comando, na política e em todos os espaços.

Não é questão de uma hora para outra invertemos o olhar do mundo, de tomarmos o espaço (uma afirmativa muito recorrente de ouvirmos), mas, sim, de dividirmos esse olhar, de o compartilharmos, de termos escolha de qual olhar nos interessa mais naquele momento.

Há outro livro que me vem à mente, “O Perigo de Uma História Única”, da autora nigeriana Chimamanda Ngozie Adchie[7]. É um livro (apesar de bem pequeno) esclarecedor, como tudo que ela escreve. A autora traz diversas histórias que ilustram o que estou tentando dizer. Logo no início, conta que aprendeu a ler muito cedo e que os livros que chegavam para ela eram em sua maioria estrangeiros e que quando começou a escrever suas próprias histórias, também muito cedo, escrevia sobre personagens “brancos, de olhos azuis, que brincavam na neve, comiam maçãs e falavam sobre o tempo e como era bom o sol ter saído”, mesmo ela sendo uma menina negra que morava na Nigéria. Até ali, ela acreditava que livros só podiam versar sobre aquele universo. Até que ela descobriu a literatura africana, com muita dificuldade de acesso, mesmo lá. Aí, percebeu que meninas como ela também podiam existir na literatura. E conclui: “A história única cria estereótipos, e o problema com estereótipos não é que sejam mentira, mas que são incompletos. Eles fazem com que uma história se torne a única história”.

Nossas histórias importam, assim como nossas vidas importam e nossos olhares, perspectivas e formas de narrar o mundo importam.

Acho que nosso desafio é dar visibilidade a esses olhares múltiplos, coloridos, de diferentes pontos de vista e que podem fazer o mundo muito mais rico e interessante.

E se somos mais 50% da população, que possamos produzir, pelo menos, 50% desses olhares, narrar 50% das histórias, acho que este é nosso desafio.

Muito obrigada pela atenção![8]


[1] Feminino é usado aqui no sentido de um olhar a partir do ponto de vista das mulheres e não como um adjetivo que define estilos estéticos, como é usado comumente para reforçar estereótipos.

[2] Ensaio original apresentado na Mesa de Direção de Arte “Mulheres na Direção de Arte: conquistas e desafios”, da Semana ABC 2020, e editado em 2024.

[3] Disponível em: https://www.gov.br/ancine/pt-br/oca/publicacoes/arquivos.pdf/Estudo%20genero%20e%20raca%20no%20setor%20audiovisual.pdf

[4] Na pesquisa desenvolvida pelo coletivo Brada, em que tive a oportunidade de participar, há números contundentes que exemplificam a desigualdade de visibilidade e oportunidades mesmo no departamento com mais mulheres do cinema brasileiro. Disponível em: https://bradacoletivo.com/pesquisa/

[5] MULVEY, Laura. “Prazer Visual e cinema narrativo”. In: XAVIER, Ismail (org). A Experiência do Cinema: antologia. Rio de Janeiro: Edições Graal: Embrafilme, 1983.

[6] MENKES, Nina. Documentário Brainwashed Sex Camera Power. EUA, 2022. 1h45min.

[7] ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O perigo de uma história única. São Paulo: Companhia das. Letras, 2019.

[8] Gostaria de deixar um agradecimento especial à Tainá Xavier pela leitura e revisão carinhosa.

Sobre a autora

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Maíra Carvalho, além de Diretora de Arte premiada em Festivais como o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro e no Festival de Gramado, foi professora de audiovisual e direção de arte em faculdades por 10 anos, é  Mestre em Comunicação e graduada em História e Bacharel em História pela Universidade de Brasília, especialista em História e Estética do Cinema pela Universidad de Valladolid (Espanha) e em História da Arte pela Faculdade Dulcina de Moraes. É sócia fundadora da BRADA, Coletivo de Diretoras de Arte do Brasil, sócia da Associação Brasileira de Cinematografia, da Academia Brasileira de Cinema e da Associação das Produtoras Independentes (API). 

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