Por Danielle de Noronha
Nesta entrevista, a diretora de fotografia Licia Arosteguy conta sobre o trabalho na campanha “100 anos Leite Moça”, vencedor da categoria de Melhor Direção de Fotografia para Filme Publicitário do Prêmio ABC 2021.
Como surgiu o convite para fotografar o filme sobre os 100 anos do Leite Moça? Nos conte um pouco sobre as primeiras reuniões e propostas que foram desenvolvidas para o trabalho.
Desde o final de 2020 a diretora Lua Voigt estava envolvida com esse projeto, desenvolvendo tratamento e orçamento, e ela comentou comigo nessa época que seria um trabalho interessante de fazermos juntas. A aprovação veio em fevereiro de 2021 e filmamos no início de março. Foi um período em que a segunda onda da pandemia estava no seu pico e por um tempo não sabíamos onde seria possível filmar. Fizemos algumas reuniões remotas na pré-produção e nos mantivemos sempre em contato trocando referências e ideias. Passamos por propostas diversas, como, por exemplo, desenvolver uma maquete que seria o exterior da casa da moça, para que ela tivesse um aspecto bem mágico. Levantamos algumas referências, como a série Tales From the Loop, nessa época, e pensei em realmente exagerar num visual mais mágico através de fachos de luz que não fossem justificados de uma forma naturalista, e que conferissem um tom mais surreal ao filme. Ao longo do processo algumas dessas ideias foram sendo modificadas por questões de tempo hábil, orçamento e alinhamento com agência e cliente. Temos um exemplo bem sutil da proposta dos fachos de luz que permaneceu no filme, quando a latinha de leite moça surge em cena pela primeira vez, era algo que gostaria de ter explorado mais.
Em quanto tempo ele foi realizado e como estava composta a equipe de fotografia?
Desde as primeiras trocas de referências com a diretora até a finalização da correção de cor foi mais ou menos um mês, contando com algumas reuniões, uma diária de tech scout, três diárias de filmagem em Florianópolis-SC e uma sessão de correção de cor remota com o Fernando Lui/Marla Colour Grading. A equipe de fotografia foi composta entre Floripa e Porto Alegre pelos técnicos: gaffer Guilherme Kroeff, 1º assistente de elétrica Felipe Kuhn, assistente de elétrica Adrião Pereira Barbosa (Neto Baiano), assistente de elétrica Deyvid Miguel da Silva, maquinista chefe Claudiomir Rech, 1º assistente de maquinária Walter Urich Medaglia Filho, 2º assistente de maquinária Marcelo Pacheco (Ferrugem), assistente de maquinária José Silva Neto (Neto Primo), 1AC Marcelo Ostrovski, 2AC Caio Rodrigues, video assist Rafael Simões, logger Anselmo Scarduelli Junior, sistema remoto Aliakim de Sá e steadicam Juliano Dutra.
Quais câmeras e lentes foram utilizadas e por que elas foram escolhidas?
Para esse projeto usamos a Alexa Mini com lentes Cooke Anamórficas SF. Para mim os sensores da Arri são imbatíveis em reprodução de cor, especialmente nos tons de pele, e as anamórficas, com suas características de bokeh e pequenas distorções – no caso das Cooke -, acho que chegam em um bom equilíbrio entre essa viagem mágica que queríamos criar e um visual ao mesmo tempo elegante, sem distorções muito pronunciadas que geralmente ocorrem em óticas mais antigas.
Em um minuto passamos por várias épocas e momentos dos últimos 100 anos no Brasil, em termos de estética e símbolos. Quais referências usaram para criar esses diferentes momentos e o diálogo entre eles?
Quando começamos o processo de pré-produção, fazia pouco tempo que eu tinha visto o filme Promising Young Woman, e o universo da cafeteria e da casa da protagonista tinham chamado bastante atenção por trazerem nas cores um universo “doce”, que no filme de Emerald Fennell tem outros sentidos associados, mas que achei uma ideia interessante de explorar. Também trocamos muitas referências de fotografia still e frames de filmes diversos, buscando achar inspirações para as diferentes atmosferas das cenas.
Como o trabalho da fotografia atuou para marcar essa passagem do tempo?
O filme traz uma viagem que foca mais em passar por diferentes situações onde a presença da marca é constante do que por épocas distintas. Temos apenas uma situação no passado, na década de 1940, que remete à criação do doce brigadeiro. Nossa abordagem foi criar diferentes atmosferas para essas cenas, especialmente através das cores e da luz. Queríamos que cada situação tivesse seu tom: a cozinha da moça, que é onde se passa a vida real no filme, com uma luz mais solar; o aconchego da casa da avó, com um clima quentinho, amarelado; o mundo doce da confeitaria, com uma predominância do rosa claro; o aniversário com os amigos, com uma predominância de azul, mas também com uma luz que está em movimento, trocando de cor, remetendo à energia envolvida nas comemorações; e o passado, misturando uma luz do dia mais difusa e fria e luz prática com lâmpadas de filamento, de acordo com a época, somados ao uso um pouco mais intenso de haze para criar uma certa névoa nesse momento.
Um elemento-chave para trabalhar nesse sentido foi o tratamento das janelas, juntamente com a diretora de arte Miwa Shimosakai. Usamos cortinas com cor em algumas cenas, para filtrar a luz e já dar uma intenção de tonalidade, e para os anos 1940, por exemplo, adesivamos a grande janela com um acabamento jateado para difundir a luz sem perder esse elemento bonito da arquitetura, e, ao mesmo tempo, esconder o prédio moderno que era possível ver no exterior.
Optamos por não fazer uma diferenciação do passado através de elementos como filtragem na câmera, tratamento de cor e grão exagerados. Essa diferenciação se deu através da própria paleta de cores da cena, bem mais sóbria que o restante do filme, dos movimentos de câmera (steadicam) e da proposta de luz já mencionada acima. Além disso, na transição para essa cena, a protagonista entra na escuridão para passar para outra época, marcando mais esse momento.
O filme tem uma câmera com muito movimento. Poderia nos contar um pouco sobre esse processo?
Em um filme que envolve uma viagem mágica de um personagem, naturalmente o movimento da câmera ajuda a levar o espectador junto. Grande parte do filme foi feita com câmera no ombro, operada por mim, e na cena de época optamos por usar stedicam, operado pelo Juliano Dutra, para descolar um pouco o passado do presente na narrativa.
Vemos muito azul e toques de vermelho durante todo o filme. Poderia contar um pouco sobre essa escolha – que claramente tem a ver com a marca – e também sobre como o uso dessas cores impacta o trabalho da fotografia e também a forma como trabalhou com a iluminação?
Em grande parte dos trabalhos publicitários hoje, usar as cores da marca não é bem uma escolha, é uma imposição. Ou também “não usar as cores do concorrente”, o que no caso de algumas marcas acaba se tornando um grande problema, porque são tantos concorrentes que de repente você se depara em uma situação em que tem que fazer um filme monocromático. Isso pode funcionar muito bem se for um conceito que se encaixa bem no roteiro, mas na maioria das vezes não é pensado dessa forma. Nesse trabalho para leite moça, acho que tivemos a sorte de poder usar as cores da marca com uma certa sutileza, elas não predominam o tempo inteiro. Usamos o azul na cortina de uma cena para filtrar a luz, assim como usamos amarelo e rosa em outras. O próprio fato de a protagonista usar o figurino igual ao da moça da lata já traz bastante essa presença da marca e suas cores, e acho que forçar isso em todos os elementos ao mesmo tempo se torna redundante e monótono.
Para o trabalho da fotografia, quais as especificidades das diferentes locações?
A locação é a primeira coisa que começa a definir o visual de um filme. A geografia, as entradas de luz, os volumes dos ambientes e suas texturas e materiais. Nem sempre é fácil ou possível encontrar uma locação que tenha tudo que a gente busca. Às vezes conseguimos transformar algumas coisas e às vezes temos que nos adaptar e achar soluções criativas para contornar possíveis problemas.
Nesse filme, a locação da doceria trouxe alguns desafios. Tínhamos três paredes de espelho (fundo e laterais) e apenas um eixo de entrada de luz, frontal. Nosso horário de permissão para filmar era durante a manhã, com o sol entrando de frente para a fachada do prédio. Criamos uma estrutura para fechar completamente a fachada da influência da luz natural e trabalhamos com HMIs e gelatinas de efeito para colorir a fachada de azul e o interior da loja de um tom rosé. No interior, escondemos esses refletores pela locação e usamos os próprios espelhos da paredes para rebater a luz, negativando também alguns deles para controlar um pouco a direção, quando era possível, visto que com três paredes de espelho tudo vira reflexo. Cada troca de setup era um quebra-cabeça para esconder os refletores, equipe e às vezes a própria câmera.
Qual foi o seu envolvimento na pós-produção?
Eu e a Lua enviamos referências de tratamento de cor que gostávamos e fizemos uma sessão remota com o Fernando Lui, da Marla Colour Grading. Normalmente na publicidade nós, diretores de fotografia, não somos contratados para acompanhar a pós-produção, a participação nesse processo acaba acontecendo por iniciativa própria em conjunto com a direção, e também de conciliar agendas. Mas acho fundamental para um bom resultado que esse acompanhamento aconteça. O material que uma Alexa origina, por exemplo, oferece tanta informação que às vezes é possível acabar com todas as intenções da fotografia (e arte, figurino, maquiagem) no grading. O Fernando Lui, no entanto, é mestre em ressaltar tudo de melhor que tem na imagem, valorizar o trabalho de todos os departamentos nesse toque final e tão determinante. Sou uma grande admiradora do trabalho dele.
Na sua opinião, quais são as especificidades de fotografar um filme publicitário?
Passar uma ideia ou contar uma história em tão pouco tempo é uma delas. E nisso não falo apenas dos 30, 60, 90 segundos que a peça final vai ter, mas também de todo processo de pré, produção e pós, que geralmente tem muito menos tempo do que o que seria necessário ou “saudável”. Conseguir conciliar as ideias da tantas instâncias criativas que atuam além da direção (agências, clientes) e ainda assim chegar em um resultado coeso e interessante também é, sem dúvidas, desafiador.
Para finalizarmos, qual a importância de ter recebido o Prêmio ABC por este trabalho?
Receber o Prêmio ABC é algo muito especial, por ser um reconhecimento entre nossos colegas, diretoras e diretores de fotografia. Ser mulher e receber esse prêmio também tem um gosto de conquista coletiva, e fica o desejo de ver cada vez mais diversidade não só nas premiações, mas em todo o processo que envolve chegar a bons resultados. No caso da publicidade: que os bons roteiros e orçamentos não fiquem sempre nas mesmas mãos.
Assista ao filme:
Ficha Técnica:
Cliente: Nestlé – Leite Moça ®️
Agência: FCB Brasil
Ano de produção: 2021
Direção: Lua Voigt
Direção De Fotografia: Licia Arosteguy
Assistente De Direção: Juliana Antich
Direção De Arte: Miwa Shimosakai
Figurino: Roberta Ahrons
Casting: Cintia Cristina Capellano
Maquiadora: Gabriela Alvares
Food Stylist: Duda Pedone
Diretora Executiva: Luciana Mattar
Produtora Executiva: Tathi Pires
Line Producer: Elisa Mello e Rafael de Paula
Coordenação de Produção: Grayce Felix e Felipe Cavassin
Gerente de Projetos (Fill): Daniel Lombardi
Direção de Produção: Magali Heinze
Assistente Criativo: Carolina Alberti e Dario Caregaro
Pós Produção: .PSTVFX
Produção executivo de Pós Produção: André Serra
Assistente Coord. Pós Produção: Bruna Veber, Diego Nascimento e Lucas Marini
Finalizador: Israel Requene
Montadora: Nathalia Kamura
Comp: Picma Post
Motion: Raphael Santos
Assistente pós produção: Danilo Ferreira
Assitente de Ilha: William Maxwelli
Cor: Marla Grading
Produtora De Som: Cabaret Studio