Representação em preto e branco

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Por Danielle de Noronha

A fotografia e o cinema nasceram em preto e branco, mas hoje o uso do monocromático é uma opção. No cinema, desde a década de 1960, as cores se tornaram hegemônicas, mas é possível perceber um “retorno” às origens, iniciado nos anos 1990, em que cada vez mais filmes “abrem mão” das cores para suscitar outros significados, sensações e relações com a realidade.

Em 2013, o preto e branco foi debate na Semana ABC, com a mesa Direção de arte em preto e brancoque contou com a coordenação da diretora de arte Ana Mara Abreu. Nesse mesmo ano, pela primeira vez, os sócios da ABC entregaram o Prêmio ABC de Melhor Direção de Fotografia para um filme P&B: Mauro Pinheiro Jr., ABC levou o prêmio por seu trabalho em Sudoeste. O acontecimento se repetiu no Prêmio ABC 2014, quando o prêmio foi entregue à Alziro Barbosa, ABC, pela fotografia de Cores.

Como explica a diretora de arte Monica Palazzo (Cores, Rio Cigano), a decisão da produção de uma obra em preto e branco deve ser prioritariamente baseada na necessidade narrativa do filme. Para ela, é necessário que a escolha tenha a ver com a história que está sendo contada e com a forma com que é contada. “Quando eu leio um roteiro de um filme, tenho um processo criativo muito particular. Eu imagino manchas cromáticas e vou buscar as primeiras referências na pintura, o que eu chamo de imagem da sensação. No caso do Cores, eu li o roteiro e num tive esse processo das manchas cromáticas, e o filme se chama Cores, mas parece que elas estão escondidas. E na primeira conversa que eu tive com o Chico [Garcia], o diretor, ele me falou que o filme é branco e preto, eu não sabia”, conta Monica.

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Cena de Cores

Para Alziro Barbosa (Marighella, Bela noite para voar), o preto e branco reserva sempre a essência do sentido das coisas, já que sem a possibilidade de distração das cores, consegue preservar a essência da cena, do objetivo e vai a fundo no que são os personagens. “O P&B na imagem contemporânea vai ser como vai ser sempre. Ele tem esse objetivo de ir direto na essência das coisas, então a gente foca muito mais nos conceitos e na comunicação com o espectador. Uma coisa curiosa é que o preto e branco é diferente da realidade das pessoas, porque ninguém enxerga em P&B, mas mesmo assim ele consegue ser mais direto no sentido”, pontua o fotógrafo. “Ao contrário do que foi no passado, que ele tinha um vínculo com o jornalismo e com o fotojornalismo, um vínculo documental, hoje ele está mais vinculado à poética porque os nossos espectadores de hoje estão acostumados com fotos na internet e nos jornais, que são coloridas”, complementa.

Como coloca Mauro Pinheiro Jr. (VIPs, Os famosos e os duendes da morte) o preto e branco pode ser encarado como um espaço redutor, já que existe um processo de tirar a cor, mas na verdade ele potencializa a imaginação. “Eu acho que como espectador, é isso que as pessoas esperam, que tenham as suas imaginações potencializadas”, diz o fotógrafo. A montadora Cristina Amaral (Person, Falsa loura) acredita que o cinema “toma um sentido superior quando ousa, rompe barreiras, provoca quem o assiste a olhar de uma forma mais ampla para o mundo, a ver o que não está habituado a ter pela frente, a sair de sua zona de conforto”.

Alziro ainda acredita que atualmente a imagem se tornou um pouco banalizada, já que estamos todo o tempo rodeados por elas, em diferentes tipos de mídias. Nesse cenário, o preto e branco acaba sendo um canal diferente dessa banalização. “Quando você chama um espectador pra ver uma imagem P&B num filme, no começo é mais difícil, mas depois a imagem se torna mais poderosa. Porque ela é menos banalizada, ela tem um vinculo direto com o personagem, parece que você vai se despir da cor para um canal mais direto de comunicação”, explica o diretor de fotografia.

Mauro conta que foi importante entender como funciona o P&B para ele e, para isso, buscou a sua formação: “eu sou de uma geração que aprendeu a fotografar em preto e branco”, diz “A minha grande questão do P&B na época era olhar pra uma realidade e tentar entender como ela seria em preto e branco”, relembra o fotógrafo. “Eu acho que para um fotógrafo essa é uma das coisas principais, que é a construção da abstração, que é você olhar pra uma imagem real, criar um imagem na sua cabeça e usar uma ferramenta para poder materializar essa imagem depois, mas essa imagem veio de mim. Então na verdade eu olhava uma situação, imaginava como ela era em P&B, construía essa imagem na minha cabeça e depois na hora de fotografar eu decidia se utilizaria um filtro vermelho, se eu ia puxar a revelação, como que eu ia fazer para poder aproximar o produto final da imagem que eu tinha pensado. Hoje em dia eu entendo que a formação passa por outro caminho, que é você olhar uma imagem no monitor e aceitar ou não aquela imagem. E a partir dali você pensa”, acrescenta.

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Cena de Satori Uso

Sobre técnicas e estéticas

Mauro explica que a principal questão técnica para os fotógrafos na hora de filmar em preto e branco é conseguir imaginar que cinzas correspondem às cores que se está vendo: “Um exemplo, uma pessoa com uma camisa vermelha, com um muro verde contra um céu azul, é uma imagem dinâmica, se ela for colorida. Mas se elas virarem o mesmo cinza, essa imagem perde a dinâmica, fica uma imagem sem contraste de cor, sem contraste de cinza. Então tecnicamente o grande desafio é esse. É a gente conseguir interpretar os cinzas que essas corres vão virar e saber manipulá-las”. Alziro complementa: “Na fotografia colorida grande parte da profundidade é dada pela profundidade cromática, que é a relação entre os tons de cor, em que muitas vezes você consegue separar um vermelho de um azul, um verde de um laranja. No preto e branco esses tons são as mesmas coisas e vem ai a importância da iluminação, então no P&B a gente vai ter uma separação tonal, e a luz exerce uma função muito importante nesse sentido, onde a luz é responsável por dar essa profundidade”.

Outro ponto citado por Mauro é o diálogo com os outros departamentos. “Como, por exemplo, o figurino, porque eles têm que se preocupar muito. No Sudoeste eu dei uma sugestão pro figurino que era usar variações do mesmo tom, então se a pessoa quer que tenha um detalhe que se sobressaia, pode usar um azul mais claro ou mais escuro, porque você tem certeza que são cinzas diferentes. Esse diálogo, como se trata de um exercício maior de abstração, precisa ser mais estreito, ele precisa acontecer o tempo inteiro entre a arte e a fotografia”.

Monica pontua que para a direção de arte é importante entender qual é o preto e branco de cada trabalho, além de ver as possibilidade das câmeras que serão utilizadas no projeto. Se é um preto e branco mais estilizado ou mais naturalizado. A diretora de arte lembra que os conceitos, padrões e texturas ficam mais visíveis no P&B. “No Cores eu trabalhei com estampas com alto contraste. É importante entender o que temos no cenário e quais são as sensações que elas darão. É trabalhar entendendo qual é a relação desses tons, das saturações das cores e qual é a resposta visual que ela dá no branco e preto”.

O técnico de som Luiz Adelmo Manzano (Hoje, O Palhaço) explica que a priorinão há diferenças no trabalho do som em filmes preto e branco: “Sempre irá depender do diretor e da concepção estética indicada como a escolhida para se trabalhar. De todo modo, imaginando que exista essa proposta diferente por se trabalhar em preto e branco, certamente o som irá procurar ressaltar essa intenção buscada”. Luiz Adelmo ainda ressalta: “Em filmes recentes, feitos em preto e branco, em que trabalhei, normalmente existia um forte tom poético. Nesses casos, a elaboração sonora não era tão carregada de elementos (como efeitos e ambientes), valendo-se muito de música, buscando quase uma contemplação maior do espectador. É quase como uma tentativa de enfatizar o(s) momento(s) em que o espectador se depara com o P&B. Assim, o trabalho com som procurava ser mais criterioso, visto que cada elemento presente na banda sonora tem um impacto maior. Significa não rechear tanto a banda sonora e ser mais seletivo naquilo que se ressalta: enfatizar tem um porquê”.

Para Luiz Adelmo, se a intenção é enfatizar um estado de espírito pode-se recorrer a elementos específicos, provavelmente não naturalistas, e que ajudem a traduzir esse estado de espírito para o espectador. “Outro exemplo seriam filmes ou trechos de um filme que fazem referência histórica, indicando passado, que não permitem que se descuide do controle de elementos de uma data específica, como um carro que não existia em determinada época, ou elementos de ambiência que caracterizam determinado período. Os filmes O proustiano de Osasco, de Marcos Fábio Katudjian e os curtas de Rodrigo Grotta (Satori UsoBooker PitmanHaruo Ohara) que têm esse recurso ao preto e branco e brincam com a ideia de que se vá além, de que o áudio ajude na construção de uma realidade diferente, enfatizando sensorialmente outras propostas ao espectador”, diz.

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Com direção de Eduardo Nunes, Sudoeste traz a história de Clarice, que numa vila isolada, onde tudo parece imóvel, vive 80 anos durante um único dia, em descompasso com as pessoas que ela encontra e que apenas vivem aquele dia como um outro qualquer. Mauro conta que o filme é uma fantasia e que era importante que isso ficasse claro desde o início: “A gente queria convidar o espectador a participar das regras desse mundo. Então pra dizer que isso era um mundo, eu acho que o preto e branco foi muito importante”. O fotógrafo relembra que num primeiro momento eles pensaram em manipular as cores e achar um outro universo de cor. “Só que as pesquisas que a gente fazia com outros universos me soavam sempre uma imagem artificial. A artificialidade me levava para a irrealidade e a gente precisava que fosse um mundo fantasioso, mas que ele fosse real dentro da lógica dele, buscar a verossimilhança desse outro mundo possivelmente real”.

Sudoeste foi filmando com a câmera Aaton Prod 16 mm, com negativo Fuji colorido (50 asa e 500 asa tungstênio). “Foi o primeiro filme [P&B] que eu fiz utilizando o negativo cor por causa da dificuldade de revelação do negativo P&B no Brasil”, relembra. “Os negativos têm um grão muito organizado, eles investiram muita tecnologia para que o negativo tivesse o grão mais perfeito possível, quando eu vi o resultado disso na tela eu achava que precisava sujar um pouco. Eu queria sujar na captação, então escolhi um negativo mais antigo da Fuji, que tem um grão um pouco mais desorganizado ainda, e ele me fazia ter uma impressão mais harmônica da imagem”, conta Mauro.

O diretor de fotografia ainda explica que o tempo era entendido com um personagem da obra, não apenas um conceito. “Eu tinha lentes antigas, Zeiss 1.3, que me davam uma definição estranha na ampliação, porque o filme ele é 1:3,66, a gente inventou essa janela pra fazê-lo, mas basicamente ela cabe dentro de uma imagem 1:2,35 anamórfica. Nós exploramos muito a definição, mas como é um filme atemporal, eu achava que esse ruído na definição ajudava. Queríamos não deixar claro em que momento aquele filme foi captado. A história da janela é ligada a história do tempo”. E acrescenta: “Quando se fala de enquadramento, a gente usa sempre o homem como referência, e nós queríamos desconstruir isso um pouco fazendo com que não contemplasse o tamanho do ser humano, além do ser humano tem muito assunto, tem muito espaço”.

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Cores, dirigido por Francisco Garcia, é uma história de amizade e desilusão entre três jovens amigos em uma grande metrópole. “O título do filme é uma brincadeira porque é um mundo cheio de cores, a gente faz alusão a elementos coloridos sempre, mas não tem cor. No Cores, é um mundo que tem cores, mas essas cores não pertencem aos personagens, eles são excluídos dessa perspectiva das cores da vida”, explica Alziro.

O diretor de fotografia conta que a ideia partiu de Mendes por causa dos personagens. “O filme trata do universo de três personagens que vivem num certo limbo social, que não se inseriram nas novas vagas de trabalho e ficaram nos “subempregos”. Então, o filme fala dos sonhos deles, as perspectivas, que quase nunca se concretizam porque eles são barrados socialmente. A cor, de certa maneira, é uma coisa que traz mais elementos e traz mais variações, um mundo mais aberto. O preto e branco, do jeito que a gente trabalhou, deixa o mundo mais fechado para os personagens, a ausência de cor está relacionada à ausência de perspectiva”.

Num primeiro momento, o Alziro e o diretor do filme queriam película, então ele seria filmado em 16 mm, já que questões financeiras impediam que se utilizasse o 35 mm. Alziro conta que não estava muito satisfeito porque o filme tinha ambientes muito pequenos e o 16 mm promoveria uma profundidade de campo focal muito grande. Entretanto, teve a oportunidade de fazer testes com a Red Epic e percebeu que a profundidade da câmera possibilitaria um destaque maior nos personagens. “Apesar de ser uma câmera digital, eu usei todo o conceito que trabalharia em negativo, igual à estrutura que eu estou acostumado. Pensar a luz como se fosse impressa no negativo, conceito de exposição, etc. O digital foi uma opção, mas o conceito foi o mesmo que sempre usei”. Segundo o diretor de fotografia, foi o primeiro filme com esse tipo de equipamento realizado no Brasil.

Alziro ainda destaca a importância da pré-produção para o planejamento do Cores. “A gente teve um conceito novo que se chama pré-pré-produção. Três meses antes de entrar em pré-produção a gente reúne a equipe principal do filme e já define os conceitos. Ai quando a equipe entra na pré, as pessoas estudaram, amadureceram a ideia, os conceitos. Então, a gente chega na pré-produção consciente”, pondera. “Eu fiz o planejamento visual, uma apresentação visual do filme e nela eu defini todos os conceitos fotográficos com a arte antes de rodar o filme. Eu acho que essa foi uma das questões importantes que deixaram o set bastante tranquilo”, conta. Monica concorda e acrescenta: “Uma coisa legal do Cores é que o Alziro estava muito próximo na pré, a gente teve muita troca e conversamos muito. O Chico tinha um arsenal incrível de referências. Tivemos uma pré muito comprida e foi super importante, o resultado você vê na tela, existe uma harmonia”.

Para finalizar…

Luiz Adelmo conta que ao ver um filme em preto e branco espera encontrar, dentro da narrativa proposta, uma justificativa para seu uso. “Considerando que a grande maioria dos filmes hoje é feita em cores, usar o preto e branco deve vir acompanhada de alguma indicação de estado de personagem, indicando tom de cena ou mesmo referência temporal, algo nesse estilo, de expressar uma intenção ao menos implícita”. Para Cristina, existem inúmeros exemplos na história recente do cinema em que o preto e branco contribuiu para colocar na tela um estado particular, que não poderia ser expresso de outra maneira. “Nesses casos, ele se torna essencial. O uso P&B só incomoda quando é feito por modismo, daí fica esvaziado, banalizado, à toa”.

Mauro defende que o P&B não tem um propriedade estética definida. “Eu acho que o preto e branco tem umas escolas como o expressionismo alemão ou o filme noir americano, que são marcados por luzes duras, sombras bem definidas, mas eu não acho que isso seja uma propriedade do P&B, é uma propriedade dessas escolas, que o utilizaram assim. Existe o preto e branco com baixo contraste, com alto contraste ou com milhões de tons de cinza. O P&B não vem com uma estética pronta, ele vem somar a sua proposta estética”, finaliza o fotógrafo.

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