Juntar cacos da memória para re existir

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Sergei Eisenstein

Por Renato Vallone

Na trincheira por um cinema sem regras, tomada a posição da invenção contra a convenção criativa, a arte cinematográfica que busca ser possível no Brasil precisa brigar por muitas coisas, a começar por sua liberdade de pesquisa, (des) – envolvimento e criação: onde a autoralidade não caia na armadilha colonial do apagamento, obsolescência e exclusão.

Isso envolve muitos atravessamentos, a invisibilidade e o esquecimento, na perspectiva colonial, é instrumento rancoroso da ancestralidade expedicionária e invasiva, vide a necropolítica, em que criadores eurobrasileiros de uma mesma classe social precisam estar atentos em não repetir o gesto secular do extravio, massacre e roubo do brilho nascido na diferença, mesmo que esses gestos estejam camuflados num feitiço neoliberal do “coletivo” somente para reestabelecer os seus devidos lugares herdados na superestrutura.

Alguns trabalhadores e trabalhadoras da cultura no Brasil e na América Latina, como os montadores e montadoras, essencialmente, ocupam um lugar na infraestrutura do fazer cinema em nosso país e continente dentro de uma lógica historicamente equivocada de fantasmagorias, embora figuras essenciais para compor a história através do manejo das imagens, sons e movimentos.

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“O encouraçado Potemkim” (Sergei Einsenstein, 1925)

Montadores e montadoras não são fantasmas que só servem para serem reencontrados depois que o gesto arqueológico de uma jovem crítica resolve questionar cânones, logo após exaltá-los. Não devemos romantizar apagamentos e exercício de poder na construção de memórias oficializadas no cinema apenas por seus coronéis, bajuladores vislumbrados, pistoleiros e jagunços, como diria Rosemberg Cariri.

Questionar cânones tem a ver com buscar, no hoje, o reconhecimento da sublime experiência COLETIVA de se fazer cinema e, com isso, iluminar autorias, essas compostas de singularidades que precisam ser protegidas, inclusive juridicamente no campo do trabalho, garantidos os seus direitos, do ato agressivo de devoramento, coisificação e expropriação pelo mal-costume neocolonizador.

Acolher a potência do outro e da outra tem a ver com apresentá-la ao mundo sem que ela precise passar pelo “eu” paternalista, confortavelmente bem amparado por estruturas de privilégio e de classe e por uma tradição eurocêntrica de autoria equivocada, na qual diretores são o centro de todas as coisas.

A montagem é o ato trágico e radical da escritura de um filme, em que todos os processos anteriores são consolidados generosamente num modo de existência que abre o portal para o seu nascimento.

Muitos pensamentos e teorias da montagem reconhecidos mundialmente já apontaram e apontam isso, de diversas maneiras. E não é uma prática de anulação de outros processos, pelo contrário, é onde se amalgama e dá forma à todos os encontros (humanos, não-humanos e artísticos) no decorrer do sonhar um filme de ficção, documentário e/ou de não-ficção.

A alteridade radical, ou seja, o choque de mundos, não se limita aqui na extração do exótico ou ao encontro de potências para um único fim, pautado por interesses capitais obscuros diversos de exploração, mas expande sua mirada para aqueles oriundos de outros meios sociais que nos aproximamos cotidianamente para compor nossas forças e construir nossas trajetórias, na vida e/ou na arte. Na luta pela sobrevivência, a arte e sua estética tornam-se então essencialmente políticas e não politicagem.

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“Um homem com uma câmera” (Dziga Vertov, 1929)

Montar A QUEDA DO CÉU, ao longo de quatorze meses de trabalho intenso, manejando estruturas, encontrando forma e sentido dentro de um pouco mais de uma centena de horas de material bruto, expondo nossas fragilidades humanas um para o outro, com risos, choros, inúmeras dúvidas, medos, abraços, descobertas, decepções, ruídos e retomadas, foi uma tarefa árdua atravessada intimamente por materialidade e sonho, ou como dizem o diretor Eryk Rocha e a diretora Gabriela Carneiro da Cunha, numa busca fundamental por um “materialismo onírico”. Mas o corpo fílmico nasceu impreterivelmente nos conflitos de ideias pré-estabelecidas com todas as possíveis e cabíveis forças que são apontadas diretamente por esse acúmulo de material bruto. A linguagem se consolidou ali, na ilha de edição.

Sonhar, cruzar o impalpável, por em choque o devir com a aspereza do mundo real é tarefa da montagem no cinema, da criação no fazer cinema. E nós vivemos isso na ilha, junto aos diretores de uma obra audiovisual. Assim como na cosmologia dos Yanomamis e seu xamanismo caminhante por trilhas do indiscernível, no mundo dançante entre “Hutukara” (Terra-Floresta) e “Hutumosi” (Céu), organizar a forma de um filme como esse é encontrar e se deixar ser encontrado pelo seu sentido.

E quando o sentido do filme nos encontra, já estamos diante de nossas novas versões enquanto humanos.

O esquecer e o invisível aqui, agora ganham outra dimensão: deixar para trás camadas que nos acompanharam na nossa formação e na busca pela forma através do erro mas que agora habitam no extra campo, ou seja, somente em espírito, para nos devolver a força e o senso de comunidade, nosso “dizer sim dionisíaco”. Nossa REAHU, festa de esquecimento. A vanguarda é o risco e a alteridade radical refletida no espelho d’água, na Urihi-Floresta, ou na tela de cinema. Nem sempre, mas às vezes temos a sorte de sermos modificados para melhor.

O cinema feito com essa intensidade, essa duração, faz estórias e se faz história e nos promove a alegria de estarmos vivos, junto dos nossos, no mesmo tempo e espaço, e no lado certo da luta. E a luta dos montadores e montadoras nesse momento no Brasil, se faz, entre tantas coisas, pelo reconhecimento de sua autoralidade diante da chegada avassaladora de tecnologias como a IA (que visa acelerar a experiência para fins capitais).

Assim como roteiristas, argumentistas, diretores e diretoras de fotografia, músicos e musicistas, nós temos uma parcela importante na construção de memórias. Mesmo que essas sejam feitas a partir da percepção e confronto com os cacos da história colonial, nós somos artesãos e artesãs buscando um lugar digno na memória e na existência no cinema.

Clique aqui para ler a versão em espanhol no site da FELAFC.

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