Por Nestor Grun
No ano 2000 iniciei minha carreira profissional na cooperativa de vídeo em Porto Alegre. Essa cooperativa prestava serviços para o Palácio do Governo, e lá trabalhei como assistente de câmera por 2 anos. Durante meu tempo livre, eu sempre visitava o setor de fotografia do Palácio, e foi lá que começou a minha paixão pela fotografia analógica. Os fotógrafos do Palácio me ensinaram a revelar e copiar, passei inúmeras tardes trancado no laboratório. A magia da química e da física foi instantânea.
Após meu trabalho no Palácio, comecei a trabalhar com fotografia still de curtas e longas. Foi um marco, eu pude ver de perto como era um set de filmagem, pude conhecer pessoas que tinham a mesma paixão que eu. E foi aí que eu conheci as câmeras cinematográficas.
Eu sempre adorei visitar as assistências técnicas, e tinha muito curiosidade em aprender como era o funcionamento das câmeras, as engrenagens, as cortinas. Sempre fui fascinado pela mecânica. Sempre gostei do desafio de consertar algo que estava quebrado, e com isso, pude aprender e estudar como elas funcionavam. Naquela época (há mais de 20 anos) não tínhamos acesso às informações como temos hoje com a internet. Não existiam manuais dos equipamentos.
Assim, a forma que encontrei para estudar os equipamentos foi comprar 2, ou até 3 modelos da mesma câmera, para que eu pudesse desmontar, estudar seu funcionamento, montar novamente e quem sabe, poder salvar uma câmera! (Nessa época, eu descobri que as câmeras de cinema eram escalas maiores das câmeras fotográficas. Eu fiquei muito feliz porque eu já era familiarizado com as câmeras analógicas).
No começo de minha carreira, comecei a trabalhar na equipe de câmera como vídeo assist. Obviamente que o cachê como vídeo assist não era compatível com o meu sonho em ter uma Arri 435. Mesmo que eu guardasse todo o meu cachê, ainda demoraria mais de 100 anos para que eu pudesse comprar uma câmera de cinema.
Muitas vezes eu era escalado para trazer os negativos para telecinar nos laboratórios de São Paulo. Para muitos, essa tarefa deveria ser exaustante, mas eu confesso que adorava. Virado do filme, embarcava feliz para a metrópole e voltava feliz para Porto Alegre. E, foi numa dessas vindas à São Paulo que acabei ficando por aqui. E lá se vão 15 anos.
Passado alguns anos, eu já tinha virado loader.
Lembro-me que as pessoas não podiam ficar em volta da câmera, muito menos tocá-la. Pouquíssimas pessoas sabiam programar as câmeras, ou identificar erros. Naquela época, rodar um filme era muito diferente do que é hoje.
Os focos não poderiam ser feitos com base na monitoração, pois as câmeras de vídeo acopladas ao visor da câmera não forneciam uma definição suficiente. Os assistentes usavam muito mais marcações de foco e trena. E só sabíamos o resultado real após o telecine. Eu lembro que refilmar era muito comum. O set acabava, e ficávamos de sobreaviso por alguns dias, caso fosse necessário refilmar alguma cena. Era muito tenso, mas ao mesmo tempo, quando tudo dava certo, a realização era imensa!
Com o passar dos anos, o digital começou a tomar o lugar do analógico. Cada vez mais os filmes deixaram de usar películas. Elas começaram a desaparecer do mercado, e com isso, a empresas de telecine também.
Mesmo com toda essa mudança ao longo desses anos, eu nunca acreditei que o negativo fosse desaparecer para sempre.
Visitei locadoras na Alemanha e nos Estados Unidos, e ao ver o mercado exterior, só fez com que eu tivesse mais certeza ainda de que estava no caminho certo. Nunca parei de buscar câmeras, seja online, em feiras de antiguidade, em locadoras e produtoras. Muitos me chamaram de “rainha da sucata”. Mas tudo isso fez com que me tornasse o que sou hoje.
Com muita dedicação, ao longo de todos esses anos eu consegui adquirir muitos equipamentos e peças. E, consequentemente, muito conhecimento técnico.
Penso que uma década não poderia substituir um século de tecnologia. As câmeras digitais são constantemente atualizadas e substituídas por uma tecnologia cada dia mais nova. Ao contrário de uma câmera analógica, que perdura por décadas (se bem conservada) e que produz um resultado que até hoje é almejado pelas câmeras digitais.
Com a era digital, a demanda de negativos reduziu muito no mercado brasileiro, fazendo com que as pessoas que quisessem filmar em películas, utilizassem negativos vencidos.
Em 2019 consegui comprar um lote razoável de negativos. Apesar de vencidos, estavam em ótima condição. Com isso, comecei a fomentar a ideia, com amigos, diretores e fotógrafos, para que eles experimentassem em seus filmes, um pouco de 16 e 35mm.
Felizmente, o mercado começou a aceitar muito bem a película. Hoje já é possível comprar negativos novos no Brasil. E, apesar de muitas câmeras já terem saído do país, a disponibilidade de câmeras funcionais vem aumentando.
A única parte do processo que ainda não está disponível na América Latina é o telecine (ainda dependemos de laboratórios nos Estados Unidos e Europa). Mas o envio não é um problema, desde que os protocolos de envio de negativos sejam cumpridos. Normalmente, o laboratório envia o link em apenas 5 dias, com scans que podem ser em 2K, 4K ou 8K.
Enfim, o futuro é promissor.
Eu acredito que o negativo já faz parte da nova realidade cinematográfica brasileira.
Me sinto realizado quando vejo a nova geração (a mesma geração que nasceu na era digital), ter cada vez mais interesse em resgatar as raízes do cinema e da fotografia. Espero que este artigo desmistifique o processo de filmagem em película, e que cada vez mais pessoas comecem a utilizá-lo.
A Semana ABC 2022, que acontece de 25 a 27 de maio, contará uma exposição com minha coleção de câmeras analógicas. Venha conhecer! Confira a programação do evento: https://abcine.org.br/site/semana-abc-2022