Pedro J. Márquez: “A última floresta”

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Por Danielle de Noronha

Escrito por Luiz Bolognesi e Davi Kopenawa Yanomami, o filme “A Última Floresta” retrata a vida e a cultura  de uma comunidade Yanomami isolada na Amazônia. No longa, o xamã Davi Kopenawa tenta manter vivos os espíritos da floresta e as tradições, enquanto a chegada de garimpeiros traz morte e doenças para a comunidade. Os jovens ficam encantados com os bens trazidos pelos brancos; e Ehuana, que vê seu marido desaparecer, tenta entender o que aconteceu em seus sonhos.

O filme, que foi vencedor das categorias de melhor equipe de som (técnico som: Rodrigo Macedo; editor e editora de som: Caio Guerin e Rosana Stefanoni; mixadores de som: Armando Torres Jr., ABC e Caio Guerin), melhor montagem para documentário (Ricardo Farias) e melhor direção de fotografia para documentário (Pedro J. Márquez) do Prêmio ABC 2021, se tornou um importante instrumento para visibilizar a luta e as formas de resistência da cultura Yanomami.

Confira nesta entrevista a conversa que tive com o diretor de fotografia Pedro J. Márquez sobre o trabalho no filme.

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Diretor de fotografia Pedro J. Márquez

Você trabalhou com Luiz Bolognesi em dois filmes sobre os povos originários. Como você conheceu o diretor e como aconteceram os convites para dirigir a fotografia de “Ex-Pajé” e “A Última Floresta”?

Conheci ao Luiz durante a produção do filme “Como Nossos Pais”, de Laís Bodanzky, ele era o coroterista e produtor, pelo que acostumava visitar o set. No fim das diárias, junto com a Laís, acostumamos a ter o que a gente chamava de “cineminha”, que era assistir ao material filmado da diária que acabávamos de fazer. O Luiz ficava com a gente e gostava muito da proposta da fotografia, de tom naturalista, e que, por vezes, lembrava uma aproximação quase documental. Antes de acabar a filmagem, o Luiz já tinha me falado do “Ex-Pajé”, e eu fiquei entusiasmado com a ideia, mesmo que nessa altura nem sabia muito o que era um Pajé.

A gente se complementou muito bem durante a filmagem do “Ex-Pajé”, fizemos uma grande parceria e criamos uma amizade muito especial. Mesmo durante a filmagem do “Ex Pajé”, o Luiz já começou a me falar do projeto na Terra Yanomami, e mostrou para mim o livro “A queda do Céu” do Davi Kopenawa, que comprei logo depois de acabar a filmagem.

Como foi o seu processo criativo e de aprendizado para realizar os dois filmes, em especial no caso de “A Última Floresta”?

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A experiência de ter filmados esses dois filmes foi tão transformadora, que só tenho que agradecer por ter participado. Por um lado, aprendi o que significa o etnocentrismo, e como isso está na base do “olhar do outro” no mundo. Eu, como europeu, tive que reconhecer quanto que isso estava em mim, e na cultura onde eu nasci e cresci, e isso me dá muito nojo e muita raiva. Ao mesmo tempo, aprendi que para lutar contra isso temos que trazer outras narrativas que não foram escutadas até agora, e que, para isso, o cinema tem um potencial enorme.

Mas, como traduzir essa luta política numa linguagem cinematográfica sem cair no panfletário? A resposta está na beleza. A luta pela sobrevivência tem que partir do amor, de acreditar na beleza da vida e na esperança no que se deseja para o seu povo. Isso foi o grande aprendizado que o próprio Davi ensinou para a gente durante esse processo de fazer o filme juntos e é a partir dessa ideia que a gente encontrou a estética. Ele foi claro com o Luiz e falou que não gostava do “Ex–Pajé” porque nesse filme o Pajé perde, “quem deve estar contente com o filme deve ser o Pastor, que é quem ganha aí”, falava o Davi. Foi duro escutar isso, mas ele estava certo. A gente fez em “Ex–Pajé” o retrato de um etnocídio, da perda de uma cultura, e isso é muito triste, e te deixa abalado como espectador e espectadora, é uma visão fatalista. Mas o Davi não queria fazer isso, queria mostrar a beleza, a força e resistência do povo Yanomami, porque isso também é uma realidade. E isso é muito poderoso, mesmo sabendo que a luta é difícil, um “Davi contra Golias”, mas essa vontade de lutar é muito inspiradora, é um grande exemplo de resistência e te dá mais vontade de encarar essa luta.

Há pouco tempo tive um lindo papo com a Petra Costa, que foi muito generosa falando sobre o nosso filme. Ela mencionou um texto do Glauber Rocha, que eu não conhecia, que se chama “Estética do sonho”, e que é uma resposta que ele mesmo faz ao seu ensaio anterior “Estética da fome”. Nesse ensaio, ele fala que “restituir-nos a crença no mundo eis o poder do cinema e do pensamento moderno. Cristão ou ateus em nossa universal esquizofrenia precisamos de razoes para crer neste mundo”. Para combater o intolerável e a miséria, Glauber propõe nesse texto uma saída pelo mundo dos sonhos e dos mitos, o que para ele é o único caminho para provocar uma revolução que transforme a fraqueza em força. Recomendo muito essa leitura e aproveito para agradecer a Petra por essa linda ligação do texto do Glauber com o nosso filme.

O livro “A Queda do Céu – Palavras de um Xamã Yanomami” te auxiliou no desenvolvimento do projeto para a fotografia do filme?

Absolutamente, é muito inspirador! É um texto que, além de ser filosófico e político, é de uma literatura primorosa, que estimula a imaginação e te faz viajar pelos sonhos e os mitos da cultura Yanomami, como se tratasse de um encantamento. Eu tinha ele perto da minha cama e lia antes de dormir, pelo que mais de uma vez viajei em sonhos na floresta e estive lá com eles, antes mesmo de ir conhecê-los pessoalmente. Digamos que foi uma visita técnica alucinógena.

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De formas distintas, os dois filmes questionam o modo como, desde 1500 até a atualidade, a sociedade branca ocidental oprime as culturas, os territórios e os conhecimentos dos povos originários. O cinema e o audiovisual, em muitos casos, serviram como ferramentas de reprodução dessa opressão, principalmente quando as comunidades foram retratadas apenas como objeto da imagem, a partir do ponto de vista dessa mesma sociedade. Em “A Última Floresta”, escrito e dirigido em coautoria com Davi Kopenawa e realizado com parte da comunidade Watoriki, a proposta é distinta: buscou-se produzir um filme mais coletivo e horizontal, com diálogos entre não-indígenas e indígenas na forma de representar a comunidade e sua realidade. Poderia nos contar um pouco sobre esse processo conjunto?

Temos que reconhecer que a nossa indústria do cinema está baseada numa política extrativista, na qual a variável tempo é a mais importante. O tempo tem que ser produtivo, sempre. Até quando a gente descansa numa filmagem é tempo de produção, o qual tem que ser o mínimo possível para que a gente volte a produzir. Sair dessa dinâmica que deixa a gente alienada é bem difícil.

O Luiz costuma falar que descobriu durante a filmagem que para fazer esse filme tinha que perder o controle, assumir que não podia impor um ritmo ou uma visão num lugar onde isso não iria funcionar. Isso é um exercício de humildade, e ao mesmo tempo de confiança, muito grande, e que toda a equipe foi assumindo aos poucos para entrar numa nova dinâmica, que nada tinha que ver com a do nosso mundo na cidade. O tempo na floresta é outro, ele parece que não existe.

Eu acho que ter tido a mesma equipe que fez “Ex–Pajé”, a qual já teve um convívio com povos nativos, ajudou a gente ir com outra mentalidade para a Terra Yanomami. No filme anterior, a gente já teve que fazer umas diárias com horários extraordinários, filmando só no começo do dia e no fim do dia, para adaptarmos ao ritmo da aldeia Lapetnahia, dos Paiter Surui. Isso foi maravilhoso, porque o fato de filmar era só uma parte do nosso dia, o resto a gente falava, brincava, comia, descansava, tínhamos tempo para nós, para refletir o que tínhamos feito, o que iríamos fazer, e para conviver com a comunidade. Isso fez com que o filmar se transformasse num ato quase extraordinário, pelo que a gente tinha ainda mais vontade. Esse exercício de se adaptar e respeitar a realidade do outro foi uma lição que a gente já tinha aprendido.

Isso fez com que a gente fosse para a Terra Yanomami com essa vontade de nos adaptar. Nossa relação com os Yanomamis sempre nasceu desde essa humildade e vontade de aprender com eles. Antes mesmo de fazer um retrato deles, instrumentalizando e objetificando para ilustrar a nosso ponto de vista sobre eles, partimos desde a humildade de reconhecer que tínhamos tudo para aprender, fomos os seus alunos, nos encantando a cada dia mais com eles e a beleza que está no seu cotidiano, em cada detalhe. Eu senti que essa nossa fascinação por eles era recíproca, eles também tinham essa vontade de nos conhecer, o encantamento foi mutuo. As nossas culturas, tão distantes, se encontraram no fato de fazer um filme, e esses 80 minutos de filme são o resultado desse encontro.

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Como isso se imprime na direção de fotografia e nas imagens que vemos no filme?

Pierre Clastres falava na “A Sociedade contra o Estado” que “não existe nos povos nativos a linguagem poética, pois a sua linguagem é já em si mesma uma aliança com o sagrado”. A gente reparou nisso também nos Yanomamis, o estilo de vida deles é um canto à beleza da natureza, da vida, e essa poesia estava à volta deles o tempo todo. Desde como contam histórias, como cozinham durante à noite, como se relacionam com a floresta, existe uma beleza na rotina, que só tem que ser observada com calma porque ela está aí. Nós, quando temos sede, pegamos um copo e abrimos a torneira, eles pegam uma linda folha que fazem dobrar como num truque de magia e a transformam num copo que enchem com a água do rio. O que tem mais belo do que isso!? Isso se traduz nas imagens, no nosso cuidado com os planos detalhes que a gente filmou, não como se fosse só um “recurso” na montagem, mas como um acontecimento com identidade própria, que está cheio de estética na sua essência.

Nesse desenvolvimento, como é ter a floresta amazônica como locação?

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Há alguns dias escutei falar o grande Ailton Krenak, que “temos que pensar na floresta como subjetividade, como uma poética da vida”. Para nós, o povo da cidade, a floresta tem um significado como de “recurso natural”, ou seja, como bem de consumo. Para os Yanomamis, é pura “poética da vida”, além do lugar onde tem alimento, onde eles vão a caçar ou trabalhar na roça, é um lugar sagrado onde moram os espíritos da floresta e onde a magia e o misterioso estão em todo lugar. Isso é o que a gente apreendeu lá, e que já estava claro também em “A queda do Céu”. Pelo que o nosso olhar da floresta não era só na procura do “beauty shot”, era da procura de transmitir esse mundo mágico, essa interpretação do espiritual. Tem um plano no qual o personagem de Jocelino está a procura do Pedrinho, o caçador perdido, e nós estamos acompanhando lateralmente a caminhada dele pela floresta e de repente a câmera para num tronco de uma árvore que tem um desenho enigmático formado por folhas e um golpe de luz que é muito misterioso. Isso a gente encontrou casualmente, e reconheço que quando Luiz me falou para eu parar a câmera lá não entendi muito bem o motivo, mas fiz. Quando vejo esse plano no filme, junto com a trilha maravilhosa, tão sutil e elegante, da Thailta del Collado, sempre fico arrepiado, é um momento mágico.

Como foi o processo de preparação e filmagem de “A Última Floresta”, desde a leitura do roteiro, passando pela preparação, processo de filmagem e rotina de vocês na terra indígena Yanomami?

A escolha do ponto de vista, desde onde vai ser contado o filme, é para mim a maior questão a se debater quando estamos preparando um filme. Isso se traduz tecnicamente no lugar onde será fisicamente colocada a câmera, em que ângulo e a que distância vai estar em relação às e aos personagens. Em “A Última Floresta” a gente queria contar a história desde o ponto de vista dos próprios Yanomamis, pelo que tínhamos claro que a câmera deveria estar perto fisicamente. Mas não só deles, também do que eles estão a ver e sentir, o que faz com que os detalhes do seu dia a dia também sejam importantes, como falei anteriormente. Mas, além dessa vontade de estar próximos, dessa intimidade que queríamos retratar, não tínhamos nenhuma referência mais. A gente queria que a filmagem fosse criada pelo lugar, onde o filme cresceria, porque sabíamos que era junto com os Yanomamis que iríamos descobrir a essência do filme. Claro que tínhamos um roteiro, de não mas de 20 páginas, no qual estava descrito o mito de origem e que nos preparava para o fato de que tínhamos que filmar sequências de ficção com eles. Mas esse mesmo roteiro foi mudando com a colaboração dos próprios Yanomanis, que tinham opiniões muito fortes sobre o mito. Era muito interessante e divertido escutar como debatiam sobre essa representação mitológica porque cada um tinha a sua própria visão. Davi era muito crítico, a gente até tinha medo quando ele passava pela sala onde a gente fazia a logagem porque um simples comentário dele podia acabar com a gente.

A nossa rotina lá tinha uma questão, que a princípio poderia parecer um problema, mas que acho que foi ótimo, que é o fato de que nós não morávamos na aldeia Watoriki, a gente dormia num posto de saúde indígena, que estava a 2,5 km de distância. Pelo que a cada dia tínhamos que andar pela floresta, no mínimo 5 km, mas era sempre mais, claro. Às vezes com o sol a sair, outras com o duro sol do meio dia, outras à noite… Essa caminhada tornou-se um ritual, a gente conversava ou não, tinha dias que fazíamos em silêncio, mas sempre acompanhados por algum Yanomami para nos proteger dos possíveis perigos. Essa caminhada era como um exercício de meditação para nos prepararmos para filmar, e para nos lembrar quanto éramos privilegiados de chegar onde a gente chegava cada dia, nesse lugar maravilhoso e recôndito que é a aldeia Watoriki.

O nosso trabalho com eles era sempre muito calmo, respeitando os tempos deles e da própria aldeia, pelo que todos tínhamos o nosso momento de poder participar na criação da sequência. Não acostumávamos a repetir muito, porque eles perdiam espontaneidade, porque ficavam cansados de ter que fazer o mesmo. Normal, porque, para eles, e também para nós, a filmagem era como uma brincadeira, tinha que ser divertido também. Eles têm muito sentido de humor, então quando é preciso repetir tornasse mais chato, porque é quando parece que é um trabalho, no qual precisam nos obedecer, porque nós que decidimos se está certo ou não, claro. E eles não gostam de ser mandados, e ainda bem!

Mas todos eles estavam muito comprometidos com o filme, sabiam que poderia ser importante para eles porque o Davi tinha explicado. Existe uma rotina na aldeia quando chega a noite: alguém vai ao centro do pátio da aldeia (como na sequência noite do Davi falando no filme) e começa a falar sobre um assunto. É como um teatro ou uma TV para eles, às vezes se fala de assuntos de organização, mas outras vezes alguém vai para lá e começa a falar e todo mundo ri muito, como se fosse um stand-up comedy, tem vários gêneros lá… Nós ficamos sabendo que nesse espaço falavam também do filme, o que eles falavam? Adoraria saber, mas é um grande mistério.

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Quais câmeras e lentes foram utilizadas e por que elas foram escolhidas? Foram realizados testes prévios?

A gente começou a filmagem com as sequências de Harvard, que foram filmadas com a CANON C-300 Markii e lentes Zeiss 1.3 Super Speed, mais um zoom Canon 70-200 que usamos só no momento da palestra do Davi para ter mais versatilidade para mudar o tamanhão do plano rapidamente. Essa filmagem foi com uma equipe muito reduzida e só um dia, pelo que decidimos levar uma câmera mais pequena e prática.

Mas para o resto da filmagem a câmera foi uma ARRI AMIRA com as lentes Zeissv1.3 Super Speed. Para mim era importante ter umas lentes com muita abertura porque sabia que iríamos filmar em condições de luz extremas, ao mesmo tempo essas lentes, com diafragmas mais fechados, têm um ótimo recorte, sem ser duras demais. Para a sequências à noite com fogo usamos a Sony 7s com as mesmas lentes e filmamos entre 32.000 e 64.000 de sensibilidade. Não fizemos testes porque já tínhamos feito no “Ex-Pajé”.

Você optou por usar luz natural durante toda a filmagem, em diurnas e noturnas, respeitando a iluminação presente no dia a dia dos Yanomami. De que modo essa escolheu influenciou o trabalho de vocês e se traduziu nas imagens do filme?

Essa ideia reforça o conceito de ir na procura do filme durante a filmagem sem nenhum preconceito prévio. A gente foi sem material de iluminação e sem saber as condições de luz que poderíamos ter. O que pode parecer ao princípio uma limitação, na verdade é um grande detonador de criatividade. Como fotógrafo tinha que estar ainda mais atento ao modo como a luz se comporta e as suas características. Todo lugar tem uma luz única, porque a orientação em relação ao sol, os materiais nos quais a luz reflete, a qualidade do ar, sempre mudam. Nós, fotógrafos e fotógrafas, é que acabamos aplicando uma série de truques que faz que as nossas imagens sejam muito parecidas de um filme a outro. Por que colocar um rebatedor num lugar onde a luz nunca iria rebater numa superfície e direção como essa? Isso acaba por padronizar um conceito de beleza que eu não queria reproduzir. Eu luto contra isso nas minhas filmagens de ficção também, quando uma imagem me lembra a outra acho que alguma coisa está errada. Eu não procuro a perfeição, até porque é um conceito fascista, eu gosto do “imperfeito”, do casual, do que nasce do erro. Por exemplo, existe um preconceito, que também está em mim, de que quando uma imagem tem o fundo desfocado “é mais cinematográfica”. Isso é um outro “truque de beleza” que é fácil de fazer para a gente, mas que também acaba por impor uma visão superficialmente estilizada e que lembra a muitas outras. Eu reconheço que faço muito, mas a cada vez estou com mais vontade de ir na procura da definição, da profundidade de campo e que o uso, ou não, dela, seja uma ferramenta narrativa.

Em “A Última Floresta” filmei os planos mas abertos a 11 e até 16, e nos planos meios tentei fechar mais do que tenho costume, mas reconheço que não aguentei e abri o diafragma completamente em alguns planos fechados, mas quando assisto na tela grande, às vezes, esse foco crítico me incomoda porque sinto a técnica gritar. Tudo isso vem também da minha vontade de poder enxergar mais no frame, porque o entorno no nosso filme era tão impressionante, contava tanto da história, que queria que o espectador e a espectadora pudessem sentir essa sensação esmagadora que você tem quando está na floresta, são milhares de camadas que vão até o infinito, e eu queria sentir essa presença na tela. Igual que à noite, queria sentir essa sensação de luz quase inexistente, que é tão leve que parece um sonífero, e nunca sabemos se estamos acordados ou se já estamos sonhando. Se eu tivesse usado um led para reforçar a mínima luz que saia das fogueiras, a filmagem teria sido mais prática, mas teria quebrado esse ambiente, e teria trazido um look mais padronizado. Mas, por sorte, nos dias de hoje temos câmeras, como a Sony7s, que nos permite filmar até 64.000 de sensibilidade, como a gente fez, e conseguimos capturar esses tipos de ambientes sem intervenção externa. Bom, por vezes jogávamos mais madeira do que era habitual para eles, e isso se tornava tão quente, tão irrespirável por causa do teto baixo do interior, que a gente tinha que deixar de filmar.

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Como foi o workflow de pós e a sua participação nele? Também poderia comentar o trabalho de correção de cor?

O trabalho de correção de cor teve que ser a distância entre a colorista Luisa Cavanagh, o Luiz e eu, porque a gente fez no meio da primeira onda da Covid-19 em 2020. A gente usou o programa Frame IO, que é uma ótima ferramenta para visualizar e para marcar comentários. Antes disso, eu pedi para assistir ao corte com uma marcação básica numa tela grande. Acho fundamental para sentir a dimensão do filme e para tecnicamente poder ter uma análise mais profunda de questões como a definição, textura e contraste. O trabalho a distância funcionou muito bem quando a gente falava de conceitos e esses eram aplicados numa primeira versão, mas quando a gente aprofundava nos detalhes, o trabalho a distância tem suas limitações porque a gente não pode debater em detalhe sobre, por exemplo, a profundidade dos pretos, porque cada um estava assistindo numa tela diferente, em ambientes diferentes e em horas diferentes. Não é igual assistir ao material durante a parte da manhã ou no fim do dia. Tudo isso tem uma influência. Os parâmetros de cor e contraste podem ser analisados como dados concretos, sim, mas a uma interpretação subjetiva que é difícil alinhar, porque o que para um é escuro demais, para outro não.  Então esse tipo de discussões é melhor ter todos juntos, numa sala de projeção ao vivo para que todo mundo tenha a mesma referência.

Mesmo assim, o trabalho criativo da correção de cor foi um grande prazer, a Luisa Cavanagh é uma grande artista, cheia de sensibilidade e vontade, pelo que trabalhar com ela é como voltar a fotografar o filme. Foi ela quem trouxe a ideia de ter uma alta carga de cor no filme, e isso funcionou muito bem porque resultou numa maior presença da pele quase vermelha dos Yanomamis, que produzia um contraste cromático lindo com o verde da floresta. Ao ser essas cores complementárias, o efeito que provoca é quase tridimensional, os e as personagens parecem que estão saindo da tela. Outra questão interessante foi o tratamento das sequências dos sonhos, ns quais surgiu um debate sobre se os sonhos deveriam ter um look diferente da realidade, sendo que para os Yanomamis não existe diferença, porque para eles os sonhos são parte da realidade e, por tanto, o que acontece neles é real. A gente acabou por fazer uma ligeira diferença, esquentando um pouco a imagem, pelo que as folhas da floresta estão mas perto do amarelo que do verde, e também aplicamos um leve glow nas highligths. O objetivo era que quando entrasse uma sequência de sonho no filme, o look não esteja denunciando que é um sonho, mas, ao mesmo tempo, seja um pouco misteriosa.

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Qual a recepção da comunidade ao assistir ao filme pela primeira vez?

Esse foi um dos momentos mais lindos que eu já vivi com o cinema. Era a primeira vez que se projetava um filme na aldeia, e o fato de poder chegar ate lá com uma tela grande, um projetor e um pequeno gerador já foi uma grande aventura. Durante a projeção eles riam muito, até nos momentos mais tensos, como o ataque aos garimpeiros, eles riam. Parecia que a gente tinha filmado uma comédia e não sabíamos. Eu acho que, por momentos, deve ter sido para eles como assistir um vídeo das férias da família, com o pai fazendo maluquices. Ao mesmo tempo, achei importante eles poderem ver o que Davi faz quando sai da aldeia e vai falar com o povo da cidade, como na sequência da palestra em Harvard. Mas quando acabou a projeção, ninguém bateu palmas, claro, porque eles desconhecem esse ritual, eles se levantaram ou começaram a ir embora em silêncio. Então para nós foi meio estranho, porque estávamos ansiosos para saber a reação, a gente parava eles para perguntar, mas eles falavam um simples “sim, sim, o filme está bom, está bom, gostei” e aí mudavam de conversa e falavam de qualquer outra coisa que tinham que fazer. Eu achei incrível, amei essa reação. Foi um banho de humildade porque o que eu interpretei foi: ok, vocês são cineastas, vieram à minha aldeia para fazer um filme, fizeram, voltaram para mostrar para a gente, então já está, isso é o que vocês fazem, agora vamos fazer outra coisa. Quando um caçador chega na aldeia, eles não batem palmas e falam, “nossa, que caça incrível que você fez, parabéns”. Então por que iriam fazer isso com a gente? Realmente há todo um narcisismo em volta do cinema e da gente que faz cinema, que fica muito explícito nas estreias, quando todo mundo te fala do incrível que é o filme e o teu trabalho, às vezes só querendo falar deles mesmos, do que eles acham, tudo com muita vaidade. Quando, na verdade, nós, cineastas, somos só uma parte da sociedade, que participa dela fazendo filmes, entretendo, mas que isso não é nem mais nem menos importante que qualquer outra profissão, que não se vangloria tanto.

Em um momento em que vemos crescer a taxa de violência contra pessoas indígenas e o aumento do desmatamento, o documentário tem tido grande repercussão tanto no país como no exterior. Na sua opinião, o que o filme tem a dizer para não-indígenas e como ele colabora para a resistência da luta das comunidades indígenas?

O Davi sempre quis levar a sua voz e a dos Yanomais ao povo da cidade para que conheçam a sua cultura e as ameaças que estão vivendo. Não queria transmitir a ideia de um povo coitado ou vitimado. Isso acho que a gente conseguiu. Então, cada pessoa que assista ao filme vai poder entender melhor essa realidade, e acho que vai se encantar com a beleza e força dos Yanomais, pelo que isso pode provocar uma maior empatia com a sua luta. Realmente acredito que o filme pode provocar isso na gente, e essas pequenas mudanças são muito importantes, porque são mudanças de mentalidade, e é assim que as revoluções começam, com uma ideia que passa de pessoa a pessoa. Eu fico muito emocionado quando tenho a grande honra de assistir ao filme em lugares como Berlim, Polônia ou o Teatro Municipal de Manaus, lugares tradicionalmente reservados à cultura do povo da cidade, onde nunca antes chegou um Yanomami, com a sua língua e a sua cultura. Eu vejo isso como um ato político de ocupação muito simbólico e poético, e que mexe com a gente.

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O seu trabalho no filme foi premiado no Prêmio ABC 2021. Qual a importância desse prêmio para você?

Foi uma grande emoção, fiquei muito feliz por muitos motivos. Primeiro, pelo que considero um reconhecimento à beleza do povo Yanomami, que ficou impressa na nossa câmera, sim, mas que pertence a eles. Depois fiquei feliz pelo reconhecimento à equipe, com os prêmios para o som e para a montagem, que junto com da fotografia, faz que todos eles estejam fundidos entre si, como a sinergia que temos entre nós. E, pessoalmente, eu sendo um convidado estrangeiro a uma festa do cinema brasileiro, me sinto tão agradecido e acolhido pelos companheiros e companheiras que votaram em mim, que isso me deixa muito feliz.

Algo mais que gostaria de acrescentar?

Complementando o que acabei de falar, queria aproveitar para agradecer a todas as equipes com que já trabalhei no Brasil, que sempre me acolhe tão bem, todas elas foram extremamente competentes, cheias de talento, de alegria e amor pelo que fazem. Me sinto muito honrado e privilegiado de poder participar e aprender com uma cinematografia tão rica e única, e que admiro tanto. Viva o Cinema Brasileiro!

Ficha Técnica:
Escrito por Davi Kopenawa Yanomami w Luiz Bolognesi
Dirigido por Luiz Bolognesi com Davi Kopenawa Yanomami, Ehuana Yaira Yanomami, Pedrinho Yanomami, Joselino Yanomami, Nilson Wakari Yanomami, Júnior Wakari Yanomami, Roseane Yanomami, Daucirene Yanomami, Genésio Yanomami e Justino Yanomami
Direção de Fotografia: Pedro J. Márquez
Primeiro Assistente  de Câmera: Alessandro Valese
Segundo Assistente de Câmera e Operador de Drone: Filipe Caneo
Montagem: Ricardo Farias
Direção de Produção e Assistente de Direção: Carolina Fernandes
Som Direto: Rodrigo Macedo
Trilha Sonora: Talita Del Collado
Mixagem: Armando Torres Jr., ABC e Caio Guerin
Supervisão de Edição de Som e Mixagem: Caio Guerin e Rosana Stefanoni
Supervisão de Imagem: Luisa Cavanagh
Supervisão de Efeitos Visuais: Eduardo Schaal
Supervisão de Pós-Produção: Patrícia Nelly
Coordenação Internacional: Laura Rossi
Coordenação de Lançamento: Larissa Santos
Coordenação Financeira: Andrea Marcondes
Produção Executiva: Ana Saito, Pablo Torrecillas e Daniela Antonelli Aun
Produzido por: Caio Gullane, Fabiano Gullane, Laís Bodanzky e Luiz Bolognesi
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