O sol picando o coco dos caipiras

800Px Caipira Picando Fumo

Por Fábio Fraccarolli

Caipira

Quando li o texto “O Desafio da Luz Tropical” escrito pelo Ebert, tentei ter uma idéia do assunto no ponto de vista do cineasta. Mas penso primeiro como pintor, e é como tal que creio poder acrescentar algo ao tema.

Sempre penso na necessidade humana de “registrar” uma “realidade geral”. Algo que se possa crer como real, independente de tempo e espaço. Mas a realidade já nos chega “limitada” pelos cinco sentidos; somente a interpretamos. O que tentamos representar é apenas a maneira como nossos sentidos a interpretam.

Nesse raciocínio, parece mais interessante que representemos a luz brasileira, do que simplesmente a luz. E melhor ainda se for a Nordestina.

Fui com Waldemar Lima a Pinacoteca do Estado de São Paulo ver o “famoso caipira” (Caipira picando fumo, quadro de Almeida Júnior), e conversar sobre a luz brasileira no cinema e na pintura.

De fato, só é possível comentar tais obras, vendo ou tendo visto alguma vez o original. As publicações oficiais da Pinacoteca são bons exemplos do problema da falta de qualidade das reproduções fotográficas das obras.

A boa prosa foi em torno das dificuldades técnicas: pensei que cada um falaria de como pintar ou filmar cada cena. Mas foi muito melhor que isso. A cada obra que interessava, falávamos do céu das gravuras de “Debret” ou do pesadelo do velhinho de “Morangos Silvestres”; de “Barry Lyndon” ou das frases feitas de mestres da pintura; dos corpos feios do modernismo brasileiro e da indisposição de filmar no sol depois do almoço.

Não vou falar pelo Waldemar, nem tentar reproduzir o que disse (até mesmo porque não me autorizou), mas concordamos que o sol de um lado castiga fotógrafo, ator, toda equipe e o orçamento; do outro, o pintor que tinha o desenho de sua composição e corria com as aquarelas para pegar logo a luz daquela hora pra depois juntar tudo, e se ele não se abrigasse à sombra, o ingrato sol secaria sua tinta. ( Só parece não incomodar ao caipira, que pica o fumo tranqüilo com o “côco” descoberto, indiferente ao sol ).

Quanto às dificuldades do pintor, é bom lembrar que antes dos impressionistas, era impensável que um pintor saísse à rua com tinta, tela e cavalete. E embora Almeida Júnior, nascido em Itu em 1850, tenha conhecido aquele movimento francês, se interessou mais por Courbet e Millet durante sua permanência em Paris, não chegando a adquirir o hábito de sair do ateliê munido de seu material.

Almeida Júnior pintou dentro de seu ateliê o interior paulista, tentando de fato representar “o ar do Nordeste”. Mas o que vemos é uma luz de memória. Antes uma interpretação pessoal do que um registro. É tão brasileira por ter sido interpretada de memória. E não se sabe em quanto tempo o artista realizava cada pintura.

Quando olhamos uma pintura nem sempre pensamos em quanto tempo leva pra reproduzir a luz e a cor de cada elemento. Mas não se fazia uma pintura da noite para o dia. Hoje se faz pintura no mesmo tempo em que se faz um filme: alguns em dois dias, outros em dois anos, mas a maioria em alguns meses.

O original do “Caipira…” é bem menos colorido que a maioria das reproduções mesmo porque, ao contrário dos impressionistas, Almeida Júnior utilizava preto e não se envergonhava disso. Mas o colorido ainda era demais, tanto que foi rotulado por Mário de Andrade, de “mau gosto”.

Existem belos exemplos da luz brasileira nas obras de Benedito Calixto, Antônio Parreiras, Batista da Costa e do próprio Almeida Júnior, que além do “Caipira…” tem os representativos “Marinha” e “Cozinha Caipira”, (ambos de 1895) também na Pinacoteca.

Outro pintor que se empenhou na perigosa tarefa chama-se Zé Cláudio. No Palácio dos Bandeirantes há uma série de cem quadros que pintou viajando pelo Amazonas, acho que na década de 70. Mas não há um livro sobre seu trabalho.

É também interessante a maneira como os estrangeiros registraram o Brasil. A maioria tinha que fazer em cada pintura uma coletânea dos elementos estranhos (como a luz), que deveriam ser mostrados à realeza européia.

Destaque para a obra de Debret, Frans Post, Albert Eckhout . (esses dois últimos, estão disponíveis no site da Bienal)

De fato não temos um pintor que tenha representado a luz brasileira como Edward Hopper fez com a americana. É claro que muitos artistas brasileiros a representaram muito bem. E nem é minha intenção compara-los a Hopper. Quero dizer que não se identifica o Brasil em toda a obra de um pintor somente pela luz.

O professor Nelson Leirner (um dos maiores artistas plásticos brasileiros vivos) me disse: “Falta no Brasil, arte essencialmente brasileira. Se é que temos mais a mostrar de bom do que bunda, bola e tucano… Nos resta então mostrar o que querem ver de nós ?! “. Ele é um homem muito exaltado.

Hopper, ao contrario dos brasileiros que citei, se interessou pela fotografia de seu tempo e tinha uma exatidão “cinematográfica” ao retratar a luz da América. Ele não pintava a luz que vemos nos EUA, (pelo menos eu não vejo) mas aquela que vemos nas fotos que tiramos lá.

Nunca escutei uma descrição objetiva do que faz a pintura de Hopper ter essa luz tão americana. Não são as cores que usa, mas as características subjetivas como a atmosfera silenciosa, solitária e dramática. Há uma lenda de que ele não só inspirou o cinema americano (isso é fato) mas que até a Kodak já tentou se influenciar pela maneira com que o olho do pintor interpretava as imagens, ou que seu pincel as representava.

Na obra de Almeida Júnior existe uma dessas características muito subjetivas que ajuda na sua identificação regional: É uma luz “preguiçosa”. Pouco se disse da preguiça de seus personagens que estão fartos pelo almoço a ponto de não se incomodar com o sol (como os pedreiros que vemos dormindo ao sol depois do almoço).

Essa preguiça acontece no mundo todo, mas o que torna sua luz mais brasileira é pensar na preguiça que dá de baixo desse solão daqui. Falta aos pintores brasileiros descobrirem mais algumas características subjetivas da nossa luz e das impressões que ela causa. Talvez, quem sabe, procurando-as no cinema.

Fábio Fraccarolli é artista plástico e restaurador digital nos Estudios Mega em São Paulo. [email protected]

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