Por Danielle de Noronha
Construindo Pontes é um filme que não distingue a política da vida. Primeiro longa-metragem dirigido por Heloisa Passos, a obra parte da relação entre um pai engenheiro e uma filha cineasta para questionar a trajetória política do Brasil. Com base em imagens de arquivo familiares, ela procura conhecer melhor o pai e isso os leva a discussões muitas vezes acaloradas e carregadas de emoção. Projeções, mapas e fotos são usados como primeiras pontes para se chegar ao passado. Entretanto, é o inevitável presente que golpeia Álvaro e Heloisa quando, diante da conturbada situação política do Brasil de hoje, eles estão em lados opostos. Através de suas perspectivas distintas, compreendem a complexidade da relação.
O filme, que recebeu o prêmio Marco Antônio Guimarães no 50˚ Festival de Brasília de Cinema Brasileiro e estreou internacionalmente no IDFA (International Documentary Filmfestival Amsterdam), estreou no dia 17 de abril e acaba de entrar em sua quinta semana nas salas de cinema em São Paulo, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Curitiba e Fortaleza (e no dia 24 de maio ainda irá estrear em Teresina).
Confira a entrevista com Heloisa Passos sobre o filme.
Em outra entrevista que fizemos, você contou que o Construindo Pontes nasceu de uma coleção de rolinhos super-8 com imagens das Sete Quedas que ganhou de presente. Como o projeto se desenvolveu a partir daí? Desde então, quanto tempo ele levou para ficar pronto?
O disparador do filme foi essa coleção de rolinhos super-8 que ganhei de um amigo do meu pai. Nesses rolinhos encontrei imagens de uma família em vários lugares no Paraná, na praia, na casa, na piscina e nas maiores cachoeiras em volume de água do mundo, Sete Quedas. Esse lugar me conectou com uma viagem que eu não fiz quando eu tinha 15 anos, eu não conheci a cidade de Guaíra e nem as cachoeiras no início dos anos 80. Esse lugar desapareceu, foi submergido para a construção da maior Usina Hidrelétrica em geração de energia do mundo, Itaipu.
Num primeiro momento, fui para esse lugar que passei a chamar de deserto d’água e comecei uma pesquisa de um filme contemplativo, ouvindo moradores na região. Nas minhas passagens por Curitiba, comecei a gravar conversas com o meu pai. E aí nasceu um segundo momento, a minha descoberta que o filme não seria mais um deserto d’água, passou a ser Construindo Pontes. As pontes de ferro, concreto que meu pai, engenheiro, construiu no período da ditadura civil militar e as pontes afetivas que poderíamos construir fazendo o filme. São 7 anos entre desertos d’águas e construindo pontes.
Quando você propôs ao seu pai realizar o filme, quais foram suas primeiras reações? O que ele achou do resultado?
Foi um processo longo para eu assumir que o filme se concentrava em dois personagens, eu e meu pai. Comecei um filme contemplativo, olhando e ouvindo as pessoas que de alguma forma tinham ligações com as cachoeiras que foram submergidas (Sete Quedas). Num passo mais largo, introduzi um gravador de áudio e comecei a gravar conversas com ele. O meu convite para meu pai e minha família realizarem o filme comigo foi aparecendo nesse processo de pesquisa e conversas gravadas. Eles receberam de braços abertos, estavam atentos e amorosos. O desejo desta família assim como de muitas outras é de estar junto, assim sendo, essas conversas me levaram ao coração do filme que tenho hoje, que é o relacionamento de pai e filha.
Depois de estrear na mostra competitiva no Festival de Brasília do ano passado, fui para Curitiba e mostrei o filme para ele e minha mãe numa sala de cinema. Estava muito apreensiva, ele ainda não tinha visto nenhuma sequência do filme. No final do filme, ainda ouvindo o Belchior cantar: saia do meu caminho, eu prefiro andar sozinho…. Ele disse: “achei que você não ia conseguir, achei que o filme ia ficar chato. Você conseguiu. Esse filme não deveria ser taxado como um documentário, ele é uma história familiar. Não tem perdedor, nem ganhador. Pode mostrar para quem você quiser. Esse filme é uma passagem”.
Como se desenvolveu a pesquisa para o filme (histórica e pessoal) e como foram utilizadas as imagens de arquivo?
Eu sempre quis trabalhar com o Antônio Venâncio, um dos maiores pesquisadores de imagem do cinema brasileiro. Comecei uma amizade com ele muito antes do projeto ter o financiamento. Fui enviando para ele minha pesquisa, que eu chamava arquivo de imagem da Helô, uma mistura de material que eu filmei e arquivos pessoais.
Eu passei um bom tempo imersa em álbuns da família, nessa pesquisa pessoal, encontrei muitas fotos e também um material super-8 da minha infância. Antes de entrar na sala de montagem o Antônio propôs algumas buscas em arquivos específicos em Curitiba, este primeiro passo foi uma descoberta fundamental para a montagem, conseguimos parte de um arquivo com imagens de algumas obras que meu pai construiu nos anos 60 e 70. Esse material fez parte das projeções que eu fiz na casa dele e foi incorporado na primeira etapa da montagem.
Em Construindo Pontes, você é uma das protagonistas, é diretora, fotógrafa, produtora. Como foi desenvolver tantos papéis e como você se sente em cada um deles?
Em filmes experimentais, autorais, filme-ensaio, documentário ou qualquer outro filme que não seja comercial, é muito comum que o diretor seja também o produtor do filme.
Me coloquei num desafio, quando eu vi estava envolvida num processo fascinante e não tinha mais volta. Decidi filmar na casa do meu pai, sem uma equipe, fui obrigada a descobrir como fazer isso. Passei algumas noites me preparando numa sala com a mesma geografia que a sala da casa dele para entender como seria colocar duas câmeras, um gravador de som e diferentes tipos de projetores (slide, vídeo, super-8). Fiz alguns testes de câmera com os projetores e um estudo de decupagem nesta sala com projeções.
A minha experiência na direção de fotografia, tanto na ficção quanto no documentário, no filme experimental e em instalação foi importante para eu estar aberta ao improviso e receber o acaso.
Quais câmeras foram utilizadas para o projeto e como se desenhou a fotografia do filme?
O filme possui quatro texturas cinematográficos distintas, que são as paisagens (paisagem natureza e paisagem concreto), a casa do pai, a viagem e o material de arquivo.
Comecei filmando a paisagem de concreto, o espaço vazio ou simplesmente um trabalhador numa construção gigantesca. Realizei esses planos com lentes grandes angulares, o homem fica pequeno na escala da grandeza do concreto construído. Usei a câmera em movimento na Usina, utilizei os próprios carrinhos que os trabalhadores usam para se locomoverem entre as 20 turbinas construídas.
As cachoeiras submergidas, um lugar inundando, destruir para construir, a paisagem da natureza foi filmada em duas etapas, em 2010 e 2016. Nos dois momentos usamos tanto a câmera que observa esse rio que virou lago quanto a câmera que se aproxima com velocidade das arvores secas no meio de um deserto d´água imposto pelo homem. Em 2010 usamos a câmera fixada no barco para adentar nestas galhadas secas e em 2016 filmamos a força da desolação com um drone.
A viagem foi um estudo de cinco posições de câmera, três dias de viagem variando posições de câmera. Tive o cuidado de filmar nas horas mágicas, tanto de manhã cedo quanto no final do dia.
Construindo Pontes é um filme que trata sobre muitos temas, como família, geração, diferença, política e, sobretudo, sobre a relação entre pai e filha. Como foi levar essa relação para o filme e construir essas tantas pontes?
O caminho do filme é uma longa estrada, foi construída com uma turma que eu chamo, mulheres da pesada. Tive parceiras desde os primeiros passos, a Daniela Capelato e a Tina Hardy estão desde 2010 comigo. A Dani como consultora de roteiro, e a Tina, produtora criativa e depois se tornou a montadora do filme junto com Isabela Monteiro de Castro. Depois entrou a Stefanie Kremser, Leticia Simões e Luciane Passos.
Passamos um bom tempo pensando em como entrelaçar memórias históricas, memórias afetivas e as memórias inventadas. Iniciamos um ciclo de conversas que persiste até hoje entre nós, no filme, fora do filme e espero que além do filme. Como fazer que a vida de personagens quaisquer se confunda com os destinos pessoais e a “memória do mundo”?
Em 2016, foi o ano que filmei os meus encontros com o meu pai e neste mesmo ano a nossa Presidenta foi impedida de governar o país. Os temas atuais foram jorrando no dia a dia das filmagens em Curitiba, me senti dentro de uma das cachoeiras submersas. Passei muito tempo sem entender que filme estava fazendo. Foi um processo longo medir os diferentes temas e assumir o coração de CONSTRUINDO PONTES. A partir do momento que entendi que o norte do filme é a relação entre o pai e a filha, as coisas ganharam mais sentido e uma identidade clara para mim.
Então, levando em consideração o momento do país, como ele se insere nos atuais debates políticos?
Quando decidi fazer Construindo Pontes, o meu maior desafio era fazer com que um filme pessoal se convertesse em uma experiência coletiva. Estamos vivendo, no Brasil de hoje, um momento extremamente turbulento politicamente e a polarização tomou conta do nosso país, inclusive nas relações familiares. Ao me debruçar na relação que tenho com meu pai, entendo que, através dos afetos, podemos compartilhar o aprendizado do diálogo e exercitar cotidianamente a prática da democracia.
Outra questão que merece destaque é que mais de 70% da equipe é composta por mulheres. Como aconteceu a escolha da equipe?
É um filme pessoal, convidei pessoas que tenho intimidade, e naturalmente se formou uma equipe feminina. A equipe é formada por 72% de mulheres. Parceiras, guerreiras, amigas, amores que acreditaram e acreditam no filme.
Como foi a pós-produção e qual foi a sua participação nesta etapa?
Desde o início da montagem do filme convidei a Laura Futuro, que foi muito mais que uma coordenadora de pós-produção. Ela se tornou nossa consultora para todos os assuntos de pós do filme, quando um DCP não abre em alguma cidade do Brasil, falamos com Laura, grande parceira.
O Hugo Gurgel conheceu o projeto do filme desde o início e a Quanta Post se tornou uma parceira fundamental. Tive o privilégio de realizar a marcação de luz com a Luisa Cavanagh. Não posso deixar de falar dos meninos do som: Beto Ferraz e André Tadeu. Como produtora, diretora e fotógrafa do filme, participei o máximo que pude nessa etapa. Me senti muito bem acompanhada na pós-produção do filme. Aprendi muito.
Algo mais que gostaria de acrescentar?
Quero agradecer a ABC por essa oportunidade de reflexão e escrita sobre o filme. Vida longa para a ABC. Obrigada.
Ficha Técnica:
Direção: Heloisa Passos
Produção executiva: Luciane Passos
Produção: Tina Hardy e Heloisa Passos
Roteiro: Letícia Simões, Stefanie Kremser e Heloisa Passos
Montagem: Tina Hardy e Isabela Monteiro de Castro
Direção de fotografia: Heloisa Passos, ABC
Assistência de Câmera: Luz Guerra e Paula Monte
Som direto: Elenton Zanoni e Valéria Ferro
Desenho de som: Beto Ferraz
Mixagem: André Tadeu
Trilha Original: Bid e Beto Ferraz
Coordenação de pós-produção: Laura Futuro
Colaboração de roteiro: Daniela Capelato e Fernando Kinas
Consultoria de montagem: Karim Aïnouz e Marta Andreu
Pesquisa: Antônio Venâncio
Direção de produção: Daniel Caldeira e Max Leean
Assistência de montagem: Leticia Mota
Pintura do cartaz: Janaina Tschape
Arte: Marina Willer
Coordenação de distribuição: Andrea Lanzoni
Produção executiva de distribuição: Beatriz Ferrari Masson
Produção de distribuição: Anna Horta
Assessoria de Imprensa: Margo Oliveira e Carolina Moraes
Coordenação de mobilização social: Lili Almendary
Assistente de mobilização social: Paula Berbert
Comunicação digital: Babi Sonnewend